A pandemia vista pelas ciências sociais

"Ficarei bastante surpreendido se o Governo mantiver a sua popularidade incólume"

18 mar, 2021 - 07:00 • João Carlos Malta

Pedro Magalhães, politólogo e uma das vozes mais autorizadas para falar de sondagens em Portugal, olha para os efeitos que a pandemia tem nos diversos regimes políticos e como os põe em comparação. A solidez que o Governo apresenta nas sondagens não o surpreende, mas tem reservas relativamente ao futuro, com o desgaste que a crise de janeiro e fevereiro trouxeram.

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Para o politólogo Pedro Magalhães, em resultado da resposta à pandemia, o risco de haver uma atração por regimes autoritários no Ocidente é bem menor do que o fascínio que assistimos pela tecnocracia.

Segundo o investigador do Instituto de Ciências Sociais esse encantamento reside na ideia de que a ciência e os especialistas têm as respostas certas para todas as questões e "que a única razão para não se estar a lidar bem com o problema é o de os políticos não fazerem o que os cientistas dizem". E essa é uma ideia enganadora, garante.

Em relação à forma como ditaduras e democracias lidam com a crise, duvida que alguma vez possamos fazer uma comparação. Porquê? A forma como a informação é recolhida e tratada, e a possibilidade de condicionar a vida em sociedade não são as mesmas.

Relativamente a Portugal, chama a atenção para a cacofonia televisiva de especialistas e cientistas, cuja legitimidade se anula quando deixa de haver uma triagem e filtragem do que dizem. "O que temos é que cada pessoa se agarra à conclusão de que mais gosta".

Nesta entrevista à Renascença, Pedro Magalhães diz que as eleições em pandemia não revelam um aumento da participação, antes pelo contrário. Fala ainda do crescimento da extrema-direita e do que a Covid-19 pode trazer de novo à política.

Um ano depois, quem é que está a lidar melhor com a pandemia, os regimes totalitários e ditaduras ou as democracias?

Há em relação a isto e a outros temas um pressuposto de que numa situação destas, que exige uma reação rápida, que exige que se mobilizem muitos recursos e que se imponham medidas restritivas à população, que de alguma forma os regimes autoritários poderiam ter algumas vantagens em relação às democracias. É uma questão muito difícil de responder e que continuará a ser muito difícil, mesmo quando chegarmos ao fim da parte pior da pandemia.

Em primeiro lugar, todas estas análises dependem de dados, de informação. A informação sobre infeções, sobre óbitos, sobre hospitalizações, sobre testes e todos os itens de informação que são usados para de alguma forma mediar a capacidade de resposta de diferentes países à pandemia não são da mesma qualidade em todos eles. Percebemos que tal como sucede em outras estatísticas há uma grande variação na qualidade destes indicadores.

Também sabemos que tal como noutros indicadores, os regimes autoritários têm incentivos e capacidades para manipulá-los, não vai ser fácil ultrapassar esta dificuldade, o da qualidade da informação que temos para fazer esses juízos.

Não poderá então haver uma avaliação justa e equativa entre os dois sistemas, porque não estão a jogar com o mesmo nível de dados e de regras?

Não digo nunca. Há dezenas de “papers” sobre esta questão, que padecem desta dificuldade. Uma outra questão importante: quando é que vamos poder fazer essa análise? Basta pensar no caso português, e o que se passou aqui ter-se-á passado em muitos outros países, se fizéssemos a análise há seis meses, Portugal aparecia como um país que lidou bem e com sucesso com a pandemia. Se tirarmos essa fotografia hoje, esse retrato é completamente diferente.

Temos de ter a noção de que isto não é uma fotografia, é um filme. É uma realidade dinâmica, em relação à qual pode ainda ser cedo para fazer estes diagnósticos. Lidar bem com a pandemia não é lidar apenas com a questão de saúde pública, é lidar com o outro tipo de impactos sejam eles económicos ou sociais.

Basta olhar para a lista que temos hoje, de várias fontes, sobre quem está a lidar melhor com a pandemia − há um instituto na Austrália que está a recolher estes dados. Os países que aparecem no topo são a Nova Zelândia, Vietname, Tailândia, Taiwan, Chipre e Ruanda. Isto dá-nos uma ideia de como vai ser difícil destrinçar o efeito do regime nesta eficácia.

Além de dizer que países que não têm fronteiras terrestres estão a ter melhores resultados, o que era previsível, não é fácil hoje perceber o que é que está a ser decisivo, até para tomarmos em conta esses outros fatores para isolar o efeito do regime.

O que se pode dizer para já é que é muito difícil, se é que será possível, responder se ser um país autoritário ou uma democracia facilitou a resposta à pandemia.

"O caso chinês revela algum sucesso no combate à pandemia, mas há democracias que estão a portar-se muito melhor. Como cidadãos ou observadores não devemos colaborar com a utilização que alguns países fazem em termos políticos, até na Europa, de usar regimes autoritários como exemplos de sucesso."

O mesmo sucede em relação a muitas outras questões, muita gente investiga se democracias ou regimes autoritários produzem mais crescimento económico, ou se têm mais corrupção. São questões muito difíceis de responder, começa com dados, e vai até um caráter mais geral de que critérios temos de levar em conta para isolar o efeito regime numa questão tão complexa como esta.

As dezenas de “papers” que já foram escritos sobre este assunto devem ser lidos com muita cautela e muito ceticismo.

Ainda assim, e sem se poderem tirar grandes conclusões, no início da pandemia muito se falou de uma possibilidade de haver uma sedução por parte das sociedades ocidentais por soluções mais autoritárias e que pareciam estar mais aptas para controlar uma crise deste tipo. O risco é visível? Confirmou-se?

A China é, muitas vezes, usada como exemplo, mas é apenas um regime político entre centenas. Muitas vezes, abusa-se em termos de generalizações que se podem fazer no caso chinês. Não há dúvidas de que o que estamos a assistir, por parte de alguns destes regimes políticos, é a ideia de que isto legitima restrições aos direitos e às liberdades das pessoas.

O que acho que temos de tomar em conta é que o caso chinês revela algum sucesso no combate à pandemia, mas há democracias que estão a portar-se muito melhor. Como cidadãos ou observadores não devemos colaborar com a utilização que alguns países fazem em termos políticos, até na Europa, de usar regimes autoritários como exemplos de sucesso.

"A principal sedução nas populações europeias, do que os dados vão mostrando, não é tanto o do autoritarismo, mas mais da tecnocracia."

Há muitos regimes autoritários no mundo e mesmo com todas as limitações que temos não é de todo evidente que estejam a ter mais sucesso no combate à pandemia do que muitas democracias.

Não há dados dessa possível sedução?

A principal sedução nas populações europeias, do que os dados vão mostrando, não é tanto o do autoritarismo, mas mais da tecnocracia.

A ideia de que a ciência e os especialistas têm as respostas todas certas para estas questões, e que a única razão para não se estar a lidar bem com o problema é a de os políticos não fazerem o que os cientistas dizem, também é perigosa e enganadora.

De que forma?

O principal risco, e isso vê-se até nas discussões portuguesas, está na ideia distorcida de que as pessoas têm da ciência e da resposta que a ciência tem para dar a estas questões.

Nós imaginamos − e de um certo sentido entende-se porquê, tem a ver como se ensina a ciência nas escolas − a ciência como uma coleção de factos incontestáveis, de soluções ótimas para os problemas e de respostas definitivas a todas as questões, e achamos que para lidar com um problema como este a solução é a de recorrer a esse património de respostas que nos vai dar a solução definitiva para todos os problemas.


Mas a ciência não é uma coleção de factos, nem de respostas ótimas para os problemas, a ciência é um método. E aquilo que se vem observando ao longo do tempo, durante esta pandemia, é que as respostas da ciência são provisórias. São tentativas, probabilísticas. Nunca são definitivas.

Nas democracias há problemas de legitimidade diferentes, muitas zonas cinzentas entre a liberdade e o controlo da pandemia. O sistema tem conseguido reagir?

É mais uma ilustração de como as respostas tecnocráticas não chegam. Quando nós temos cientistas e especialistas a pensar sobre estas questões, os cientistas são por definição especialistas, ou seja, sabem muito sobre uma determinada dimensão do problema e não são, nem pretendem ser, qualificados para falar sobre outras dimensões do problema.

Esta é a grande diferença entre ciência e a política. É que os políticos, as decisões políticas e as políticas públicas estão por definição a lidar com problemas multidimensionais. Quando se toma uma decisão sobre restringir movimentos, o que se está a fazer não é só agir sobre o fenómeno contágio, mas sobre a pandemia, sobre a sociedade e as responsabilidades cívicas.

E em diferentes países, e em diferentes contextos, estes compromissos foram procurados de forma diferente.

"A ciência não é uma coleção de factos, nem de respostas ótimas para os problemas, a ciência é um método. E aquilo que se vem observando ao longo do tempo, durante esta pandemia, é que as respostas da ciência são provisórias. São tentativas, probabilísticas. Nunca são definitivas. "

Os políticos são obrigados a pensar na opinião pública. E isso tem aspetos positivos e tem aspetos negativos. Os positivos é que ao pensarem na opinião pública são obrigados a pensar de forma pragmática sobre até que ponto é realista e vai ser aceite socialmente implementar, na prática, um conjunto de medidas.

O negativo é quando pensam na opinião pública na perspetiva de não serem culpados de desenvolvimentos negativos. Isto gera mais um elemento de tensão entre ciência e política.

Muitas vezes ouvimos os especialistas a falarem, a exporem os seus pontos de vista, que depois os políticos não levam em consideração. Isso não leva a perturbação na comunicação e gera confusão no público?

Causa, mas o problema começa antes da política. Em Portugal temos tido uma situação em que a ciência não tem falado com uma única voz, como é natural que não fale.

"Temos tido no espaço público diferentes cientistas e diferentes especialistas a apresentarem não só as conclusões do que investigam, mas também prescrições sobre o que deve ser feito. Isso é desde logo a primeira confusão. É desde logo um fator de perturbação e de ruído"

Tem a ver com o que falámos há pouco, sobre a incerteza e o caráter provisório de muitas conclusões. Temos tido no espaço público diferentes cientistas e diferentes especialistas a apresentarem não só as conclusões do que investigam, mas também prescrições sobre o que deve ser feito.

Isso é desde logo a primeira confusão. É desde logo um fator de perturbação e de ruído. Não estou a dizer que as pessoas devam ser censuradas ou caladas.

Os cientistas devem apresentar soluções e não medidas concretas...

O problema é que na ciência há mecanismos que fazem com que diferentes conclusões e resultados, a que os diferentes cientistas chegam, sejam debatidos e filtrados.

Quando se envia um artigo para ser publicado há outros cientistas que o leem, comentam, analisam, pegam nos dados, reanalisam os dados, há todo um processo de transparência e de diálogo que vai filtrando aquilo que é mais sólido, e menos sólido.


EVOLUÇÃO DA VACINAÇÃO EM PORTUGAL

Quando trazemos para o espaço público diferentes cientistas que são entrevistados todas as noites nas televisões a dar não só as suas conclusões sobre o vírus, as suas variantes, sobre a velocidade de propagação, mas também a serem questionados sobre o que deve ser feito, o que temos é uma multiplicação de opiniões em relação às quais não há um mecanismo de filtragem. Não há um mecanismo de apuramento.

A ciência e os cientistas falam com uma autoridade que é muito reconhecida pelas pessoas. Quando temos cada cientista, com a sua autoridade, a defender coisas diferentes numa arena em que não há espaços de filtragem, o que temos é que cada pessoa se agarra à conclusão de que mais gosta.

Depois avaliamos as políticas públicas à luz de algo que já vem, não filtrado, mas de um ruído, de uma cacofonia generalizada sobre o que devia ser feito. Isto tem sido um problema, que hoje em dia dá sinais de ser um pouco mitigado. Vamos ver o que acontece no desconfinamento.

Em Portugal assistimos a algumas críticas em relação ao papel do Governo e do Estado na gestão da pandemia, sobretudo no pós-Natal. Essas críticas são de que o Governo não liderou, mas tentou representar as ânsias da população. Ou seja, foi menos liderante e mais representativo. Numa pandemia, que efeitos resultam de governar sobredimensionando a voz da opinião pública?

Não sei se foi exatamente isso que aconteceu, mas se foi isso que aconteceu não devemos ter memória curta e devemos lembrar-nos de fevereiro e de março.

"A ciência e os cientistas falam com uma autoridade que é muito reconhecida pelas pessoas. Quando temos cada cientista, com a sua autoridade, a defender coisas diferentes numa arena em que não há espaços de filtragem, o que temos é que cada pessoa se agarra à conclusão de que mais gosta."

Nessa altura, quando o Conselho Nacional de Saúde Pública recomendou que não era preciso fechar-se as escolas, o Governo fechou-as. E isso foi recebido pela opinião pública com uma aprovação generalizada.

Chegamos ao fim do ano, e vemos na sessão do Infarmed alguns especialistas a dizerem que era fundamental fechar as escolas, e outros a dizer que as escolas não são um meio de propagação, e o Governo decidiu manter as escolas abertas.

Hoje em retrospetiva, muita gente diz que o Governo fez mal, o Governo seguiu aquilo que era a vontade da população, ao invés de seguir o que era o consenso científico. O problema é que a forma como são percecionadas pela população é a de que não há qualquer consenso científico.

Da mesma forma que o Governo terá seguido aquilo que na altura era uma vontade maioritária, e isso é visto como negativo, em março de 2020 fez o mesmo e foi visto como positivo.

É como se nessa altura tivéssemos tido o pecado original em que uma organização, neste caso o Conselho Nacional de Saúde Pública, com especialistas, representantes da sociedade civil, com representantes do Estado, foi contrariado com óbvia aprovação da maior parte das pessoas. É como se a partir desse momento o sistema tivesse deixado de funcionar.

Tudo é julgado consoante os resultados que vieram a seguir.

Há um perigo de o Governo seguir a vontade maioritária da opinião pública?

Não sou especialista destas questões do interface entre a ciência e as políticas públicas, mas por pouco que se procure ler e saber sobre isto, sabe-se que entre a comunidade científica e a tomada de decisões políticas tem de haver uma filtragem.

Têm de haver instituições e organismos que estejam na fronteira entre a ciência e as políticas públicas e que têm de recolher o máximo de informação para que as decisões políticas se possam basear sobre elas, mas procurando consensos mínimos, para que eles, depois assumindo a sua responsabilidade, tomem as decisões que devem tomar, tomando em conta os impactos dessas decisões.

O que tivemos em Portugal não foi isso. Começámos por ter um organismo que parecia ter essa função e foi contrariado imediatamente num primeiro momento.

E passámos a ter reuniões do Infarmed com cada um a dizer a sua coisa, uma multiplicidade de especialistas em epidemiologia e virologia na televisão, e nas redes sociais, cada um a dizer a sua coisa. Tivemos ruído, não tivemos filtro, nem um agregador da informação científica que desse a possibilidade ao Governo, por um lado, de tomar decisões com base no consenso científico e serem responsabilizados pelas decisões que tomaram.

Os dilemas nas decisões entre saúde pública e economia, saúde e educação têm sido os mais visíveis. Havia possibilidade de que estes antagonismos não fossem tão evidentes?

É muito difícil, desde logo quando olhamos para o que a opinião pública foi dizendo ao longo deste período. Fizemos algumas sondagens no ICS e no ISCTE para perceber qual a importância que as pessoas atribuíam a diferentes temas e havia uma coisa evidente: as pessoas nas suas respostas não faziam uma troca entre as consequências económicas da pandemia e as consequências da saúde pública.

"Tivemos ruído, não tivemos filtro, nem um agregador da informação científica que desse a possibilidade ao Governo, por um lado, de tomar decisões com base no consenso científico e serem responsabilizados pelas decisões que tomaram. "

As pessoas estão preocupadas com ambas. Em geral diria que havia uma tendência mais restritiva, ou seja, uma maior preocupação com as consequências de não confinar, do que com as consequências de confinar. Isso também dependia um bocadinho da posição em que as próprias pessoas estavam.

Quando nós procurávamos qual a sua situação profissional, qual era sua ocupação, qual o nível de rendimento, entre as pessoas com mais baixo nível de rendimento que foram desproporcionalmente afetadas pelas decisões do confinamento, a dimensão económica tornava-se um pouco mais importante.

Sem nunca fazer desaparecer a preocupação com a questão da saúde pública e da sua própria saúde. O que torna tudo isto difícil é que mesmo um Governo que quisesse seguir cegamente o que a opinião pública quer num determinado momento não tinha uma resposta óbvia.

Nesses estudos, além do nível de rendimentos e classe económica há outros fatores que condicionam as respostas?

Não estamos propriamente a falar de uma clivagem em que as pessoas com mais alto rendimento defendiam mais confinamento e as pessoas com mais baixo rendimento defendiam a abertura total. Isso não havia.

Em toda a sociedade havia uma grande preocupação com as duas dimensões do problema. Penso que as pessoas, e de forma acertada, não tinham uma forma fácil de decidir se um problema era mais importante do que outro.

"Fizemos algumas sondagens no ICS e no ISCTE para perceber qual a importância que as pessoas atribuíam a diferentes temas e havia uma coisa evidente: as pessoas nas suas respostas não faziam uma troca entre as consequências económicas da pandemia e as consequências da saúde pública. "

Em Portugal, a popularidade do Governo, a atestar pelas sondagens, não baixou. Mesmo numa altura de altíssima pressão e propensa a impopularidade como a 3ª vaga. Porquê?

Em primeiro lugar desde janeiro que temos quatro sondagens. Umas mostram o Governo a manter, mais ou menos, a mesma intenção de voto, outras mostram uma descida. Penso que é muito cedo para dizer que o Governo passou incólume.

Especialmente em relação ao que se passou até fevereiro, em que houve dois desenvolvimentos muito negativos: o número estratosférico de casos e de mortes, e, como já se passa noutros países europeus, uma frustração com o avanço do processo de vacinação − em relação ao qual havia grande expectativa e grande esperança a certa altura.

Esperança justificada porque o que se passou em relação à capacidade de se produzir vacinas para esta doença não tem paralelo na história, foi rapidíssimo. Mas depois falta a questão de colocar o programa de vacinação em prática e na Europa isto tem sido bastante frustrante.

Temos de ver mais sondagens que possam medir o que se passou no último período. De uma forma mais geral, isto não aconteceu apenas nesta pandemia, tende a acontecer sempre que há situações que correspondem a perceções de ameaça generalizadas para o país em situações de guerra, situações de grande crise.

Há um fenómeno que os norte-americanos costumam chamar o “rally round the flag”. São momentos em que as pessoas depositam uma confiança e uma esperança na capacidade de o Governo resolver o problema e unem-se.

Também se deve ao facto de as oposições, nesse momento, tenderem a evitar uma oposição intensa, porque não querem ser vistas como desleais num processo e resposta que gere unidade nacional. Este é um fenómeno muito conhecido quando se tenta explicar a popularidade dos governos nestes momentos. Esse efeito não dura para sempre.

Em Espanha, por exemplo, durou muito pouco tempo, e aconteceu devido a um contexto político de polarização muito grande em que a oposição rapidamente começou a atacar a estratégia do Governo, que assim perdeu popularidade durante algum tempo

"Em Portugal não me surpreende que [o nível de popularidade] dure bastante tempo. Em primeiro lugar porque a atuação do principal partido da oposição durante bastante tempo foi o de manter esta unidade nacional e também porque os indicadores dos efeitos da pandemia no terreno eram bastante positivos. "

Em Portugal não me surpreende que dure bastante tempo. Em primeiro lugar porque a atuação do principal partido da oposição durante bastante tempo foi o de manter esta unidade nacional e também porque os indicadores dos efeitos da pandemia no terreno eram bastante positivos. Agora ficarei bastante surpreendido se o Governo mantiver a sua popularidade incólume após os desenvolvimentos do início do ano.

Mesmo sem mais dados, não era previsível que as intenções de voto mostrassem já uma queda acentuada, depois do que aconteceu com a 3ª vaga?

Não, tendo em conta a realidade no terreno de março até ao final deste ano. Temos o momento inicial de união em torno de uma ameaça externa.

Uma união não só da opinião púbica, mas visível entre as elites políticas. Temos algum aumento de contestação, mas temos indicadores no terreno que são globalmente positivos em comparação com outros países.


NÚMERO DE MORTES DIÁRIAS EM PORTUGAL

Tivemos um esforço, talvez não o suficiente nem sequer o necessário, para lidar com o impacto social da pandemia, mas houve muitas medidas corretas como o "lay-off", até uma série de subsídios, de moratórias e pagamentos de dívida que no terreno mitigaram as consequências sociais e económicas da pandemia. A grande mudança, a meu ver, dá-se no princípio deste ano.

Não me surpreende e não somos caso único.

"Os exemplos que temos de eleições em sistemas políticos com que nos possamos comparar facilmente indicam que a pandemia é um contexto de aumento da abstenção. "

Falando agora do efeito deste tempo que vivemos na participação eleitoral. Que impacto podemos esperar, uma maior participação ou um aumento da abstenção?

Os exemplos que temos de eleições em sistemas políticos com que nos possamos comparar facilmente indicam que a pandemia é um contexto de aumento da abstenção.

Sucedeu no País Basco e na Galiza nas eleições regionais. Aconteceu nas eleições locais em França, aconteceu em Portugal apesar de esse aumento não ter sido tão grande como o que se temia.

Na Catalunha, a abstenção aumentou 25 pontos. A ideia de que este momento podia ser de mobilização não se está a realizar, porque num contexto de pandemia, e não existindo um hábito e oportunidades suficientes de se exercer o voto de outras formas, os efeitos têm sido negativos sobre a participação.

Mais negativos para quem?

Os dados são contraditórios. Em Espanha, no País Basco e na Galiza, curiosamente a abstenção desce em todos os escalões etários. Não há um efeito pronunciado sobre os mais velhos que era algo que se anunciava, porque essa população teria mais receio de se deslocar às urnas.

Mas em França já vemos esse fenómeno, o que favoreceu alguns partidos que tendem a ser apoiados por eleitores mais jovens, em particular os Verdes.

Não há sinais de que a pandemia leva a um aumento da participação eleitoral, pelo contrário, os sinais são de uma menor participação eleitoral. Em Portugal, nas presidenciais a participação baixou mais nos municípios em que a incidência do Covid era maior.

Em Portugal, além dessa descida de participação nos municípios com mais casos de Covid, há algum outro fenómeno novo?

É um fenómeno interessante que pode estar relacionado com este que estou a dizer, mas que teremos de ver se assim é.

É um estudo muito recente de um politólogo chamado Alexandre Afonso, que trabalha na Universidade de Leiden, e que mostra que quanto maior era a incidência de contágios a votação em André Ventura tendia a ser beneficiada por esses contextos.

Resta saber se isto é um sintoma de descontentamento, ou se é resultado de nesses municípios a participação ser menor em geral, e de os apoiantes de André Ventura estarem mais mobilizados. Não é claro, mas é outro padrão que foi identificado.

Como é que podemos contextualizar a subida da extrema-direita que não se fez com um discurso virado para pandemia?

Parte do discurso do Chega tem sido de contestar o estado de emergência e os excessos do Governo, desse ponto de vista.

Há alguns artigos de jornal a falar da ligação do Chega a organizações mais negacionistas. Mas não sei se é isso que justifica a subida do seu líder enquanto candidato presidencial.

Desde que o Chega elegeu um deputado em 2019, nós temos assistido a uma subida claríssima do partido nas intenções de voto para as legislativas, e estas presidenciais confirmam essa subida e esse crescimento.

Porque é que sobe? É difícil de responder a essa pergunta, mas diria que há três fenómenos de fundo que temos de tomar em conta.

"É um estudo muito recente de um politólogo chamado Alexandre Afonso, que trabalha na Universidade de Leiden, e que mostra que quanto maior era a incidência de contágios, a votação em André Ventura tendia a ser beneficiada por esses contextos. Resta saber se isto é um sintoma de descontentamento, ou se é resultado de nesses municípios a participação ser menor em geral, e de os apoiantes de André Ventura estarem mais mobilizados."

Em primeiro lugar, desde há muitos anos uma coisa que distingue a opinião pública portuguesa em relação à de outros países, e que ao mesmo tempo a torna parecida à de países como a Grécia e Itália, é um sentimento generalizado muito negativo em relação à classe política, em relação ao funcionamento das nossas instituições, à representação política e à corrupção generalizada da elite política.

Nós tínhamos há muito tempo uma procura destas forças políticas e não tínhamos oferta. Agora temos oferta, e concretizou-se no Chega, e é normal que o discurso de crítica ao sistema recolha apoio dentro de bastantes pessoas.

Outro ponto importante que não devemos esquecer é que apesar de a população portuguesa, do ponto de vista das suas atitudes culturais e políticas, ter mudado muito nos últimos anos, houve uma coisa que não mudou, especialmente entre pessoas de baixa instrução e os mais velhos, que é a questão da segurança, a lei e a ordem.

E um partido que transforme isto no bloco central da sua atração política é um partido que terá em princípio algum potencial para crescer.

Finalmente é preciso lembrar que o Chega está desde o seu início muito ligado a um discurso em torno da população cigana, em torno da sua associação a tensões sociais, criminalidade, abuso de subsídios e esta é uma ideia que parece vingar numa parcela importante da população.

Há cerca de um terço dos portugueses que diz que não gostaria de ter um cigano como vizinho. É o tipo de afirmação que só fazem sobre alcoólicos e toxicodependentes.

"A minha expectativa é que nas autárquicas e nas legislativas por força do que se passou no último ano, talvez Portugal se desvie do uso atípico e errático dos meios de comunicação eletrónica para a mobilização política. Talvez fosse a mudança que mais esperaria ver nos próximos tempos."

Há uma imagem muito negativa que o Chega tem procurado explorar aparentemente com algum sucesso. Outra coisa que se verifica é que os resultados de André Ventura nas presidenciais foram particularmente elevados nas zonas raianas, onde se julga que há mais população cigana.

Para terminar, nota alguns indícios de que há algumas diferenças de fazer política que este período tenha acentuado?

É difícil de responder. Até agora, o que mais esperava ter encontrado e que ainda não encontrei seria na maneira de fazer campanhas. Portugal é um caso um pouco extremo para um uso muito pouco sistemático, dirigido e profissional das redes sociais, e dos meios de comunicação eletrónica nas campanhas eleitorais.

Em Portugal é muito mais fácil de encontrar arruadas e comícios. Nas presidenciais não se encontraram indícios dessa transformação, talvez por o vencedor estar mais ou menos visto por garantido, nem se decidir quem vai governar, talvez não fosse o lugar onde esperar esta mudança.

A minha expectativa é que nas autárquicas e nas legislativas, por força do que se passou no último ano, talvez Portugal se desvie do uso atípico e errático dos meios de comunicação eletrónica para a mobilização política. Talvez seja a mudança que mais esperaria ver nos próximos tempos.

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  • Ivo Pestana
    19 mar, 2021 Madeira 12:12
    Surpreendido com a popularidade deste governo? Eu não fico, pois a oposição é mais fraca que o governo e não vejo ninguém melhor que António Costa. Os portugueses têm é de ficar preocupados com o valor das alternativas a este governo. O Chega sobe cada vez mais, porque será?
  • José Pena Condesso
    19 mar, 2021 Póvoa do Concelho-Trancoso 11:15
    Considero um trabalho estruturado

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