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Francisco Sarsfield Cabral
Opinião de Francisco Sarsfield Cabral
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A pandemia e o estado social

08 mar, 2021 • Opinião de Francisco Sarsfield Cabral


Numa altura em que o modelo social europeu parecia em crise, a necessidade de combater os efeitos económicos e sociais da pandemia voltou a colocar a dimensão social na ordem do dia. Há hoje um consenso relativamente amplo quanto à necessidade de reformas num capitalismo que se tornou por vezes selvagem. Na UE e também nos Estados Unidos.

A ideia de que os mercados tudo resolveriam ganhou força com o colapso do comunismo soviético. Mas cedo surgiram as desilusões. A crise dita do “subprime” (empréstimos hipotecários irresponsáveis), desencadeada nos EUA em 2007 e logo espalhada pelo mundo, foi um forte abalo nessa ilusão. E a crise só não foi maior porque o Estado federal americano entrou em força na economia.

Entretanto, sucessivos Papas chamavam a atenção para os limites do mercado – um importante factor de crescimento económico, desde que politicamente enquadrado - e até para o risco de a economia se sobrepor à política. Mas as suas intervenções, bem como, em geral, a Doutrina Social da Igreja, não interessavam os políticos e os agentes económicos, ainda que alguns se dissessem católicos. O Papa Francisco falou de maneira a ser mais ouvido; por exemplo, ao condenar a “economia que mata”. O que ajudou a que muitos que não são colectivistas apareçam, agora, a reclamar reformas num capitalismo que se tornou por vezes selvagem.

A Europa comunitária foi hesitante e conservadora face à crise das dívida soberanas que, anos depois, atingiu a Grécia, a Irlanda e Portugal. Mas hoje a atitude de Bruxelas tornou-se mais favorável à intervenção estatal para contrariar os dramáticos efeitos económicos e sociais da pandemia. A Comissão Europeia teve luz verde para emitir dívida nos mercados, obtendo dinheiro destinado a distribuir pelos Estados membros sob a forma de empréstimos a juros baixos e, sobretudo, de dádivas a fundo perdido. As regras restritivas do euro foram suspensas e as autoridades comunitárias incitam os países da UE a gastarem para travar a crise.

Voltou, assim, a falar-se do modelo social europeu, isto é, de um capitalismo com preocupações sociais. O modelo floresceu a seguir à II guerra mundial, ajudado por um forte crescimento económico que durou 30 anos. Mas a economia europeia abrandou a partir da década de 70. E a aprovação no Senado federal, com poucas alterações, do plano do presidente Biden – envolvendo quase 10% do PIB dos EUA – mostra que os americanos não poupam meios para atenuar as dramáticas consequências económicas e sociais da pandemia.

O modelo social europeu parecia obsoleto para os que acreditavam que o mercado, só por si, seria capaz de corrigir as suas falhas. Uma ilusão, repito. E o rápido envelhecimento da população europeia ameaçava reduzir o financiamento dos trabalhadores ativos para pagar o volume crescente de pensões de reforma. Mas o coronavírus ultrapassou essas limitações. Na Europa, a dimensão social está a ser revalorizada. E, com o presidente J. Biden, os EUA parecem inclinados a aproximarem-se do tal capitalismo com preocupações sociais.

O impressionante crescimento das desigualdades económicas no interior das economias nacionais, principalmente nos EUA, reclamam políticas fiscais com maiores impostos sobre os mais ricos. E o mero crescimento do PIB, mesmo quando era alto, revelou-se incapaz de eliminar a pobreza na América e na Europa, designadamente a pobreza infantil e a ditada por preconceitos raciais.

A tradição europeia valoriza a dimensão social das políticas económicas, pelo menos nas intenções afirmadas pelos políticos. Nos EUA não existia essa tradição, tirando algumas medidas contra a depressão tomadas por Roosevelt nos anos 30 do séc. XX. Veja-se o caso de Trump, que teoricamente veio tentar salvar os sacrificados pelo progresso económico e tecnológico. Ora Trump desceu os impostos... para os ricos. Os EUA viveram longas décadas com muitos milhões de americanos sem qualquer rede de segurança para situações de doença. Mas com Joe Biden na Casa Branca e a maioria, ainda que ténue, dos democratas nas duas câmaras do Congresso federal, há uma esperança de que as coisas comecem a mudar. Já tinha havido um primeiro passo nos seguros de saúde, com Obama.

Claro que o “welfare state” (estado social) tem que ser modernizado. As opiniões públicas nos EUA e na UE parecem inclinar-se nesse sentido. A rede de segurança não pode valer apenas para situações de emergência, como a pandemia, mas deve atender a situações passageiras mas susceptíveis de levar à miséria pessoas e famílias.

Portugal continua a ser um país pobre e com uma grande dívida pública. O que limita os apoios sociais. O dinheiro que virá da UE, a maior parte do qual a fundo perdido, pode ajudar a melhorar a dimensão social da recuperação económica. E o anúncio do Presidente da República de que acompanhará de perto a aplicação da “bazuca” vai no sentido positivo.

Este conteúdo é feito no âmbito da parceria Renascença/Euranet Plus – Rede Europeia de Rádios. Veja todos os conteúdos Renascença/Euranet Plus

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  • Ivo Pestana
    09 mar, 2021 Funchal 13:26
    Não existem sistemas perfeitos e vemos isso, em outras sociedades. Agora o pior, é a corrupção, as injustiças sociais e a indiferença de quem, pode ajudar o mais próximo. Antes da pandemia, Portugal estava a andar em cima dos carris...vamos esperar, pois temos um país maravilhoso e um povo bom, no geral.
  • Maria Oliveira
    08 mar, 2021 Lisboa 21:02
    Qualquer pessoa de bem deve rejeitar o capitalismo selvagem, especulativo, que nada acrescenta à economia. Mas é preciso ter cautela com o Estado social demasiado amplo em países, como Portugal, que não apresentam um crescimento económico que o sustente. Não pode distribuir-se com dinheiro emprestado porque isso significará mais dívida e mais impostos.