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Papa no Iraque

Em terra de perseguição, Francisco fala de um Deus que exalta os fracos

06 mar, 2021 - 15:48 • Filipe d'Avillez , Aura Miguel

O Papa celebrou missa segundo rito da Igreja Caldeia, em Bagdad, e recordou aos católicos iraquianos que a virtude descrita nas bem-aventuranças de Jesus não está na força e no poder, mas na mansidão e na fraqueza.

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O Papa Francisco dirigiu esta tarde palavras de encorajamento aos cristãos do Iraque, que têm sido duramente perseguidos ao longo dos últimos anos.

Na sua primeira missa em solo iraquiano, na Catedral de São José da Igreja Católica Caldeia, Francisco elaborou sobre o evangelho das bem-aventuranças e disse que Deus valoriza o perdão, a fraqueza e a mansidão, ao contrário da lógica do mundo.

“Bem-aventurados, para o mundo, são os ricos, os poderosos, os famosos! Vale quem tem, quem pode, quem conta! Para Deus, não: não é maior quem tem, mas quem é pobre em espírito; não quem pode tudo sobre os outros, mas quem é manso com todos; não quem é aclamado pelas multidões, mas quem é misericordioso com o irmão”, disse Francisco.

Pelo contrário, aquilo que Jesus propõe rompe essa lógica e embora pareça condenado ao fracasso, na realidade triunfa. “A proposta de Jesus é sapiente, porque o amor, que é o coração das Bem-aventuranças, embora pareça frágil aos olhos do mundo, na realidade vence. Na cruz, provou ser mais forte do que o pecado; no sepulcro, derrotou a morte. Foi este mesmo amor que tornou os mártires vitoriosos na provação… E houve tantos no último século! Mais do que nos anteriores.”

“O amor é a nossa força, a força de tantos irmãos e irmãs que também aqui foram vítimas de preconceitos e ofensas, sofreram maus-tratos e perseguições pelo nome de Jesus.”

As palavras sobre os mártires terão tocado certamente os cristãos iraquianos presentes na catedral, embora em menor número do que seria de esperar em tempos pré-pandémicos. Não há cristão no Iraque, seja de que confissão for, que não tenha sentido na pele as dificuldades das últimas duas décadas que levaram centenas de milhares a fugir do país e deixaram um rasto de morte e sangue.

Durante a sua visita Francisco tem insistido nos seus discursos e encontros privados na necessidade de se dar plenos direitos aos cristãos e outras minorias religiosas perseguidas no Iraque. Este sábado, aos seus fiéis, o Papa recordou que Deus opera mudanças no mundo precisamente através de quem é fraco e se sente mais incapaz.

“Deus faz bem-aventurados aqueles que percorrem até ao fim o caminho da sua pobreza interior. Esta é a estrada; não há outra. Olhemos para o patriarca Abraão: Deus promete-lhe uma grande descendência, mas ele e Sara são idosos e sem filhos. Precisamente na velhice paciente e confiante deles, Deus realiza maravilhas e dá-lhes um filho. Vejamos Moisés: Deus promete-lhe que libertará o povo da escravidão e, para isso, pede-lhe para ir falar ao Faraó. Moisés observa que tem dificuldade na fala; e no entanto Deus cumprirá a promessa através das suas palavras. Olhemos para Nossa Senhora, que é chamada a ser mãe, justamente quando, nos termos da Lei, não pode ter filhos. E olhemos para Pedro: renega o Senhor e, todavia, é precisamente a ele que Jesus chama para confirmar os seus irmãos. Às vezes, queridos irmãos e irmãs, podemos sentir-nos incapazes, inúteis. Não lhe demos crédito, pois Deus quer fazer maravilhas precisamente através das nossas fraquezas.”

A todos os cristãos que se sentem perseguidos, especialmente aos iraquianos, o Papa deixou palavras de encorajamento a fechar a sua homilia, garantindo que Deus tem os seus nomes escritos nos céus.

“Querida irmã, querido irmão, talvez olhes para as tuas mãos e te pareçam vazias, talvez sintas insinuar-se no coração a desconfiança e penses que a vida é injusta contigo. Se tal suceder, não temas! As Bem-aventuranças são para ti, para ti que estás na aflição, com fome e sede de justiça, perseguido. O Senhor promete que o teu nome está escrito no seu coração, nos Céus. E hoje agradeço-Lhe convosco e por vós, porque aqui, onde na antiguidade surgiu a sabedoria, nestes tempos se levantaram tantas testemunhas, muitas vezes transcuradas nos noticiários mas preciosas aos olhos de Deus; testemunhas que, vivendo as Bem-aventuranças, ajudam Deus a realizar as suas promessas de paz.”

Primeiro Papa a celebrar no rito caldeu

A missa foi celebrada na Catedral de São José e para além de marcar a primeira vez que um Papa celebrou missa no Iraque, foi ainda a primeira vez que um Papa presidiu a uma eucaristia segundo o rito caldeu.

Em bom rigor, a celebração eucarística neste rito não se chama missa, mas sim Santa Qurbana, ou Santo Qurbono, segundo o dialeto siríaco, a língua oficial desta Igreja Católica de rito oriental que está e comunhão plena com Roma, mas tem a sua própria liturgia e costumes. Qurbono significa sacrifício em siríaco.

O rito desta celebração é, por isso, muito diferente do rito latino que o Papa costuma celebrar e que é o mais comum nos países católicos ocidentais, como é o caso de Portugal. O Papa estará a celebrar o rito de Adai Mari, que data pelo menos do Século VII e tinha a particularidade de, na sua forma original não incluir as palavras da instituição da eucaristia na consagração. O rito usado pelos caldeus integrou essas palavras posteriormente, embora a Igreja Católica tenha acabado por concluir que a eucaristia que não as emprega não deixa de ser válida.

A Igreja Católica Caldeia é a maior confissão cristã no Iraque, embora haja católicos de outros ritos, como os siro-católicos. O encontro de sexta-feira com os líderes da comunidade católica realizou-se numa Igreja siro-católica.

Siro-católicos e caldeus derivam todos da mesma família de igrejas de tradição siríaca, centrada em Antioquia, uma das principais sedes patriarcais do Cristianismo primitivo. Depois de se ter separado de Roma, a seguir ao Concílio de Calcedónia, a Igreja Siríaca acabou por sofrer várias divisões internas. O primeira cisão levou à criação da Igreja Caldeia, que se encontra em comunhão com Roma e mais tarde uma nova separação levou à criação da Igreja Siríaca Católica, ou siro-católica, que também entrou em comunhão com Roma. É por isso que existem pelo menos duas igrejas católicas de tradição siríaca no Iraque, embora existam mais fora do Iraque, nomeadamente a Igreja Maronita, na região do Líbano e as igrejas Siro-Malabar e Siro-Malankara, na Índia.

No Iraque existe ainda a Igreja Siríaca Ortodoxa, a Igreja Assíria do Oriente e a Antiga Igreja do Oriente, que não estão em comunhão com Roma, mas são também de tradição siríaca.

O programa do Papa para este sábado termina com esta missa, mas continua no domingo com uma visita a Erbil, capital do Curdistão iraquiano, a Mossul e a Qaraqosh, a maior cidade cristã do Iraque.

Na segunda-feira Francisco volta para Roma.

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