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ENTREVISTA

“No Curdistão, cristãos, muçulmanos e yazidis têm um respeito incrível pelo Papa”

04 mar, 2021 - 15:48 • Ângela Roque

Visita de Francisco ao Iraque inclui região curda, onde é aguardada com “expetativas altas”, conta à Renascença a irmã Irene Guia. A religiosa portuguesa, que ali trabalhou com o Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS), espera que a deslocação “corajosa” e “histórica” ajude a consolidar a presença cristã na zona onde quase desapareceu por causa do radicalismo islâmico.

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Irene Guia pertence à congregação das Escravas do Sagrado Coração de Jesus, de espiritualidade inaciana. Atualmente em missão na Irlanda, continua a acompanhar de perto a situação no Médio Oriente, em particular na região autónoma do Curdistão iraquiano onde, entre 2016 e 2018, foi responsável pelos projetos do JRS de apoio aos refugiados do Iraque e da Síria, obrigados a fugir por causa da perseguição do autoproclamado Estado Islâmico.

Em entrevista à Renascença a irmã Irene conta que todos na região depositam grande esperança na visita que o Papa vai fazer ao Iraque e ao Curdistão iraquiano. Diz que, para os cristãos, “é uma graça ter o Papa lá”, mas os muçulmanos e os yazidis também veem nele um “porta-voz das minorias”, e consideram-no o grande promotor da paz e reconciliação.

O Papa irá como “peregrino”, mas Irene Guia não tem dúvidas de que a visita terá “impacto político”, e destaca a coerência dos gestos e intervenções de Francisco na promoção da “fraternidade humana” e da “comunhão na diversidade”, como garantias fundamentais para a paz.

Como é que vê esta iniciativa do Papa visitar o Iraque e o Curdistão iraquiano?

É uma viagem muito significativa, como foi a primeira que fez. A sua primeira saída de Roma, depois de ser eleito Papa, foi a Lampedusa, quando os refugiados estavam a chegar e o Mediterrâneo era um cemitério. Agora há outra vez uma situação mundial estranhíssima, e a primeira viagem que o Papa faz em época de pandemia é ao Iraque.

Ele queria ter lá ido antes, mas por razões de segurança não aconteceu, não permitiram, e vai agora. Creio que isto é muito significativo.

O Iraque é o berço das três religiões abraâmicas, e leio aqui um sinal de continuidade, não só de gestos, mas da construção que o Papa tem tido sempre em mente e tão central, da comunhão e da capacidade de construir um mundo novo entre as religiões.

O Papa vai, como ele diz, em peregrinação, e com uma mensagem de esperança para os cristãos, mas não é exclusivo, será muito mais abrangente. Mesmo a nível não religioso será uma viagem histórica.

E corajosa?

Sim, e corajosa. O Iraque é ainda um Iraque ferido, muita gente ainda tem armas em casa. O Papa sujeitar-se ao nível de segurança que vai ter, onde tudo é possível, creio que é um símbolo de paz. É também por isso uma visita histórica.

A visita vai abranger também o Curdistão, onde a irmã esteve em missão com o JRS. É significativo que o Papa tencione ir também a esta região?

Sem dúvida! E eu fico tão contente que ele lá vá! Primeiro, porque o Curdistão, durante o tempo do Daesh e da ocupação daqueles territórios pelo Estado islâmico, foi o refúgio de milhares e milhares de cristãos, de muçulmanos e de yazidis: os muçulmanos e cristãos de Mossul, os yazidis de Bashika e de Sinjar.

Não sei qual é a intenção de ele ir ao Curdistão, mas eu leria esta ida como uma visita merecida. Os curdos, dentro do Iraque, são um povo com uma identidade e dignidade que é notável. Com os peshmerga, conseguiram defender o seu território do Daesh, que não entrou lá, e têm sido aliados do Ocidente permanentemente, embora o Ocidente não seja da mesma forma… por isso, esta viagem do Papa ao Curdistão, onde existem tantas minorias - é verdade que há caminho a fazer, mas que são respeitadas -, creio que é uma visita que os próprios curdos e as autoridades curdas sentem como privilégio, sem sombra de dúvida.

Dos contactos que tem mantido com o Curdistão iraquiano, o que é que lhe dizem? Como é que estão a encarar esta visita?

As expetativas das pessoas são positivas e são altas. Que o Papa seja voz das minorias é uma que é transversal, que o Papa seja promotor da reconciliação e da coexistência entre as diferentes religiões, todos como cidadãos iraquianos.

Que o Papa seja esta referência, que leve uma mensagem de paz, e que por levar estas mensagens seja um motor para uma verdadeira reconciliação. E apesar do Papa, como eles dizem, não se ir meter em política, através dos encontros que está a promover e que vai ter, terá certamente impacto político num Iraque mais unido para todos.

É isso que lhe dizem?

Sim.


Portanto há expectativa, não só da parte dos cristãos?

Não só da parte dos cristãos. Perguntei a yazidis, a muçulmanos, e sem sombra de dúvida que há esta vontade de construir e de continuar a promover um Iraque "novo", entre aspas, onde esta coexistência das diferentes religiões, minorias e etnias seja realidade.

Os cristãos, naturalmente, mas vários amigos meus muçulmanos, e os yazidis também, têm um respeito incrível pelo Papa, é alguém que toda a gente considera e respeita. Os yazidis acham que esta ida do Papa é importantíssima, é um momento histórico, mas têm pena que no programa não esteja a ida Sinjar, onde tantos foram eliminados pelo Daesh, é uma cidade que é como que o símbolo do genocídio contra os yazidi. Mas esperam que o Papa seja voz das minorias, isso é transversal, e que seja voz desta coexistência pacífica, pela qual todos anseiam. Todos.

O que é que esta visita poderá significar para a vida concreta dos iraquianos, em geral, e no Curdistão, em particular? Poderá marcar a diferença?

Creio que sim. Esta visita não vai ser só seguida pelos cristãos. Para os cristãos é uma graça ter o Papa lá, e a sua presença de alguma forma irá solidificar a permanência dos cristãos no Iraque, daqueles que ainda permanecem lá.

Qarakosh está reconstruída com o apoio internacional e com todas as recolhas de fundos entre as comunidades cristãs, está reconstruída. Os cristãos que estavam em Mossul foram viver para Qarakosh, algumas famílias, poucas, que estavam em França, na Alemanha e no Canadá, também regressaram. Mas, creio que esta ida do Papa é muito significativa. Ir a Qarakosh dar uma mensagem de esperança à comunidade cristã cria a vontade de permanecer no Iraque dessa mesma comunidade cristã, e isto é de um valor incalculável!

As outras minorias, como os yazidi, e os próprios muçulmanos - embora haja uma oposição de alguns radicais muçulmanos sobre o que é que o Papa vai lá fazer -, reconhecem o esforço do Papa. O encontro que ele vai ter com o líder do Islão xiita, ayatollah Ali al-Sistani, será um encontro muito significativo.

As gerações mais novas, enquanto houve a ameaça do Daesh, entre 2014 e 2017, ouviram sempre o Papa alertar o mundo para a Síria e para o Iraque, ouviram-no como o grande defensor deles enquanto estavam a padecer e a sofrer terrivelmente, por isso, este respeito e esta autoridade o Papa tem, porque esteve sempre do lado daqueles que estavam a sofrer, para que estes conflitos terminassem. Por isso, é uma voz respeitada e terá impacto.

Não tenho qualquer dúvida de que todos vão seguir aquilo que o Papa disser, como vão ouvir o que Ali al-Sistani vai dizer, porque ele insiste também constantemente na 'fraternidade humana', e considera que os cristãos têm os mesmos direitos e as mesmas responsabilidades dos muçulmanos no Iraque, a sua cidadania une-os, então, a segurança de uns assegura a segurança dos outros.

E o Papa tem sido, a nível mundial, este construtor de pontes e de comunhão da diversidade, com a encíclica 'Laudato Si', sobre ecologia integral, e a 'Fratelli Tutti’ (‘Todos Irmãos’), vemos que a direção e o pontificado do Papa Francisco é de reino, é um mundo como o reino, é a Casa Comum, onde todos somos irmãos.


Há uma grande coerência nos seus documentos e nos seus gestos e intervenções?

Uma coerência no que diz e no que faz, e não são só gestos. O gesto é significativo, mas não são só gestos. Ele tem esta visão, este acreditar que a sua missão é a de criar comunhão na diversidade neste nosso mundo, e que isso promove a paz, promove a ausência de conflitos armados através de uma reconciliação e de trazer para o centro da cidade aqueles que estão fora dela, os vulneráveis, os que estão à margem, fazer com que as políticas sejam feitas através de pensar.

Pôr-se fora da cidade e ver como é que os que estão fora olham para a cidade e tomar as decisões a partir daí, e não ao contrário, deixará de fazer com que haja cidadãos invisíveis, descartáveis. Este Papa tem feito tudo neste sentido. Não são gestos, ele tem dado a vida por este reino e acredito que continuará assim. Isto é o Papa Francisco e é esta importância que também o mundo lhe reconhece.


Imagino que gostasse de estar no Curdistão a acompanhar esta visita?

Naturalmente que sim.

Deixou um bocadinho do seu lá?

Sim, sem sombra de dúvida. Tive uma equipa formada por cristãos, muçulmanos e yazidis, e havia comunhão a dois níveis: comunhão ao nível da gente comum, existe essa comunhão, e comunhão a nível do mundo político, que tem um ritmo muito mais lento, porque há interesses laterais tidos como principais.

E aqui há que reconhecer que os líderes religiosos estão na vanguarda para criar as condições de paz permanentes neste nosso mundo através da diversidade. Estão na vanguarda, e vimos isso com o primeiro encontro do Papa com o imã sunita Ahmad al-Tayyeb, da Universidade de Al-Azhar, em Abu Dabhi, e agora com o xiita, al-Sistani. Creio que estes homens ao fazerem isto publicamente estão a indicar para onde é que se deve ir a nível político, têm sido os líderes religiosos das religiões abraâmicas a fazer isso, sem sombra de dúvida, têm sido eles, é inquestionável. Estão a ser uma luz para o mundo, e estão na vanguarda.

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