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Reportagem 20 anos depois

​Tragédia de Entre-os-Rios. “Acredito agora que eles morreram em vão”

04 mar, 2021 - 11:22 • Vítor Mesquita

O acidente é uma memória pesada. Duas décadas depois, familiares das vítimas não escondem as marcas deixadas pela queda da ponte Hintze Ribeiro. Esperavam mais do país. Há promessas por cumprir.

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Era noite de futebol. Com jogos de Benfica e Porto. Lá fora, chovia. Nos dias anteriores, a subida dos caudais tinha feito crescer Tâmega e Douro. O rio estava “grande”. Pouco depois das 21h00, um estrondo deixou inquieta Maria Emília, de Torrão - Marco de Canaveses.

“Nós estávamos a comer. Nisto, o meu filho saiu e aconteceu aquele estrondo. Pensei: foi um carro que bateu. Cheguei aqui em baixo, a ponte caiu, a ponte caiu”, recorda.

Na outra margem, junto à ponte, Maria Pereira também suspeitava de um acidente. “Na altura, até estava a dar o futebol e nós ouvimos aquele barulho, aquele impacto e pensamos que foi carro que tinha batido e caído ao rio. O meu marido foi até lá à frente, viu os reflexos de luzes na água e começou a mandar as pessoas andar para trás. Foi aí que vimos que a ponte tinha caído”, conta.

A ponte Hintze Ribeiro tinha desabado. 59 pessoas caíam desamparadas às águas turbulentas e implacáveis do rio. Um autocarro em fim de passeio e três viaturas ligeiras não chegaram ao destino.

Joaquim Rodrigues, atualmente comandante dos bombeiros de Castelo de Paiva, sentiu-se fora da realidade. “Quando lá cheguei e me deparei com o cenário que lá estava, na altura, parecia um sonho. Ainda hoje, não só passando lá, mas passando lá fico com uma imagem de desilusão por não ter conseguido fazer mais por quem lá ficou”, diz.

O comandante lembra ainda as dificuldades das várias forças mobilizadas para resgatar pessoas e viaturas - em especial nas primeiras horas. “Foi uma operação muito complicada, tendo em conta muitos fatores. Com as correntes de água, não era possível meter qualquer meio no rio Douro para tentar resgatar qualquer corpo que estivesse dentro do autocarro, ou dentro dos carros que tinham lá caído. Foi muito difícil, muito difícil”, explica Joaquim Rodrigues.

Olhos postos em Entre-os-Rios

Os sucessos e insucessos das operações estavam nos noticiários de Portugal e do Mundo. Para o local foram destacados repórteres de órgãos de informação estrangeiros. Menos de 24 horas depois, um ministro caía. Jorge Coelho, do Equipamento Social. A frase “a culpa não pode morrer solteira” ainda hoje ecoa, quando o desastre é recordado. Era, precisamente, nas notícias que Felicidade Moreira, natural da freguesia de Raiva, se informava sobre os trágicos acontecimentos.

Perdeu a mãe e o irmão. Estava em Lisboa. “Os primeiros momentos foram de espanto” com a informação de que a ponte tinha desabado. “Havia algumas dúvidas sobre o que teria acontecido. Até às 4h da madrugada tentámos confirmar se nos tocava ou não. Por volta das 6h da manhã regressei cá e o nosso foco estava na recuperação dos corpos”, recorda.

Pessoas ligadas à tragédia, curiosos, forças de segurança, jornalistas, políticos, eram inúmeras as pessoas que visitavam o local da tragédia. Num primeiro momento, Felicidade não se abeirou. Junto à ponte só havia rio, diz. Pela televisão a informação chegava mais depressa.

Mais à frente, passada a agitação, o ritmo das visitas pendia entre o diário e o semanal, antes e depois da construção do memorial às vítimas. Um monumento que trazia pessoas das diversas origens e Felicidade sentia necessidade de falar sobre os acontecimentos. Falar das pessoas desaparecidas e de como tudo aconteceu. “Eu tinha necessidade de que isto se perpetuasse. Foi uma tragédia muito grande. É importante que ela fique na memória. É História de Portugal”, refere.

Mortes em vão, promessas por cumprir

O impacto na freguesia de Raiva, onde vive, foi avassalador e Felicidade Moreira acredita que o luto ainda está por fazer. “Eu falo da tragédia, mas percebe-se, vinte anos depois, que muitos familiares não falam. Temos familiares que falam e agora deixaram de falar. Isso significa que o luto não está feito. E quando eles nos dizem que não vão falar porque o assunto está encerrado, acredito que se eu não falo nele o assunto não está arrumado”, considera.

Toda a região recorda com mágoa as perdas humanas. A freguesia de Santa Maria de Sardoura também foi atingida. Em Oliveira do Arda, Fátima não perdeu familiares, mas sente a tragédia ainda hoje. “Perdi colegas e dessas colegas filhos que também morreram. Fica sempre a memória e as saudades, no coração, dessas pessoas”, lamenta.

Com a Justiça a não encontrar responsáveis, Felicidade Moreira, que integra os órgãos sociais da Associação de Familiares das Vítimas da Tragédia de Entre-os-Rios, lamenta que a queda do tabuleiro não tenha permitido uma evolução imediata no país. “A envolvência, o número de pessoas que morreram, tinham que obrigatoriamente ser transformadora do nosso Mundo, em especial do nosso país. De facto, acredito agora que eles morreram em vão. Tivemos o caso de Pedrógão, o caso de Borba…”, exemplifica.

Já o comandante da corporação de Bombeiros de Castelo de Paiva lembra que foram deixadas muitas promessas na região. Joaquim Rodrigues lamenta que o concelho permaneça isolado na interioridade. “O dito IC35 foi prometido há vinte anos e ainda hoje não se sabe se vai arrancar. Foi prometida a ligação Castelo de Paiva-Santa Maria da Feira e ainda hoje está tudo na mesma”, refere. A nova ponte, ali no abraço entre Tâmega e Douro não sara uma ferida de vinte anos.

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