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Maria José Morgado. “A corrupção é viral e é preciso quebrar as cadeias de contacto”

03 mar, 2021 - 16:52 • José Pedro Frazão

Agora em definitivo na reforma, ao cabo de mais de quatro décadas de serviço, a procuradora do Ministério Público diz que a pandemia vai atrasar os investimentos na justiça. Sobre a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção, apresentada no outono pela ministra da Justiça, Maria José Morgado critica a falta de gabinetes de perícias para o Ministério Público e uma “mirífica” decisão sobre compensação legal dos denunciantes. A reflexão no programa “Da Capa à Contracapa” teve como base o livro “45 anos de combate à corrupção”, do jornalista Luís Rosa.

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Personagem central do Ministério Público nas últimas quatro décadas de combate à corrupção, Maria José Morgado não tem dúvidas que a falta de investimento vai agravar-se devido à atenção que será dada à saúde em tempo de pandemia.

No programa “Da Capa à Contracapa” da Renascença, a procuradora alerta, no entanto, para um vírus que é preciso atacar um fenómeno que, sustenta Morgado, ameaça a democracia.

“A corrupção é viral e é preciso quebrar as cadeias de contacto. A vacina existe, mas não lhe chamamos isso. Chamamos-lhe prevenção, proatividade, investigação financeira, justiça negociada, capacitação”, descreve a procuradora jubilada, elencando alguns tópicos em que, na sua opinião, a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção não dá resposta satisfatória.

Portugal não tem o instituto da chamada “delação premiada” e nesse sentido, diz Maria José Morgado, a opção de compensação dos denunciantes definida na Estratégia também não terá eficácia prática.

“Vejo uma limitação desajustada e injustificável na Estratégia Nacional Contra a Corrupção que é a invalidade de qualquer prova entregue pelo colaborador relevante, isto é, o arguido, que envolva a incriminação de coarguidos. É uma limitação porque é uma ficção existirem crimes praticados por uma só pessoa no mundo do crime altamente organizado. É uma maneira de esvaziar o instituto, porque o arguido só pode falar do que lhe diz respeito em algo que foi praticado de forma organizada”, critica a magistrada que em matéria de “justiça negociada” fala em algo que é “perfeitamente mirífico e irrisório” no momento atual.

Maria José Morgado defende que os megaprocessos abundam devido à falta de compensação das denúncias, levando à instauração tardia de processos “que depois vivem da erosão da prova” e obrigando a fazer “pilhas e pilhas de perícias de prova indireta” para conseguir chegar à verdade.

Grandes processos podem cair num fosso em tribunal

Outra preocupação de Morgado centra-se na falta de recursos humanos e tecnológicos do Ministério Público e dos próprios tribunais.

Entre as falhas identificadas pela magistrada na Estratégia Nacional de Combate à Corrupção está a inexistência de gabinetes de perícias financeiras, informáticas e bancárias para o Ministério Público, que aprofunda a ideia de que os recursos são “anormalmente escassos” nesta estrutura do poder judicial.

Com processos como a Operação Marquês ou o caso BES a caminho de fases decisivas, Maria José Morgado teme que o contraste de especializações entre Ministério Público e os tribunais de julgamento tenha impacto negativo sobre esses casos.


“Tem que se aplicar ao julgamento a mesma especialização que teve a investigação porque aí está o fosso. Se temos uma investigação ultra-especializada e depois ela não existe em julgamento, o processo cai num fosso”, alerta Maria José Morgado, preocupada também com a incapacidade tecnológica dos tribunais, dando o exemplo da recusa em adotar de forma generalizada a plataforma digital criada por um juiz de instrução criminal e dois agentes da PSP, concebida para o processo “Face Oculta”.

Maria José Morgado diz que essa ferramenta iria facilitar a celeridade da produção de prova em julgamento, tendo a vantagem de já existir, ser barata e estar pronta a usar. A magistrada jubilada não entende a omissão desse ponto na Estratégia apresentada por Francisca Van Dunem.

“Nas suas linhas gerais, a matriz da estratégia é decalcada dos documentos internacionais. Está correta, foi feita por especialistas e não tenho nada a criticar. Agora, tenho a salientar que, por exemplo na justiça negociada, é no fundo proibida a denúncia de coautor, o que eu não compreendo. A questão dos recursos humanos e financeiros e tecnológicos para o Ministério Público e para os tribunais é um capítulo com meia dúzia de caracteres, nomeadamente em algo que seria fácil como a digitalização da prova em julgamento, para além dos gabinetes de perícias para o Ministério Público”, afirma a procuradora jubilada na Renascença.


“Sempre pensei nos processos e não na desconfiança dos políticos”

Numa altura em que o Ministério Público vive uma polémica em torno do reforço dos poderes hierárquicos na investigação criminal, Maria José Morgado deixa um recado: o Código de Processo Penal existente é suficiente para lidar com os desafios colocados no quadro do Ministério Público.

“Não precisamos de mais regras do que aquelas que estão hoje em vigor no Código de Processo Penal. Não precisamos de encastelar regras atrás de regras, porque transformamos o processo que num castelo de cartas que não vale nada. O processo é um processo da vida, das pessoas, dos acontecimentos. Não pode ter tantas regras dessa natureza. Tem que ter regras de tipicidade, legalidade e segurança jurídica para evitar injustiças e más condenações”, argumenta Morgado no programa “Da Capa à Contracapa”.

Sobre prioridades de investigação no crime económico-financeiro, Morgado concorda com a lei que as define, “mas como não temos recursos, as prioridades acabam por ser os presos e os processos a prescrever”.

Lendo a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção, e olhando para o setor público, a magistrada jubilada do Ministério Público deteta problemas na aplicação dos planos de prevenção da corrupção que “não funcionam no papel ou no computador e têm que ser aplicados pelas instituições. Debatem-se em determinados capítulos com a criação de mecanismos destinados a efetivar isso como contraordenações contra instituições, etc. Isto não funciona à medida do tamanho da ameaça. Isto é uma ameaça à democracia”.

Maria José Morgado deixou um testemunho no livro “45 anos de combate à corrupção” do jornalista Luis Rosa, que na Renascença afirma que há uma grande desconfiança do poder político em relação ao poder judicial. A magistrada recusa entrar nesse debate, jurando que os processos estiveram sempre no centro da sua atenção

“Preocupei-me sempre em fazer bem o meu trabalho. Se há uma desconfiança do poder político em relação ao Ministério Público? Não faço a mínima ideia. Fiz sempre o meu trabalho o melhor possível, aliás como todos os meus colegas. E isso é que ocupa a nossa cabeça. Desconfiança? Não podemos pensar nisso. Temos que pensar no que temos que fazer. Se pensei nisso nestes 40 anos? Não, sempre pensei nos processos. Era nisso que eu tinha que pensar”, remata Maria José Morgado.

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