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Graça Franco
Opinião de Graça Franco
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Resposta à “carta aberta às televisões generalistas”

27 fev, 2021 • Opinião de Graça Franco


Um idoso sentado dias na mesma cadeira, que preferiu pedir alta médica para ir morrer em casa sossegado, preferindo esse cenário tétrico a permanecer no hospital mais um minuto. Não é a descrição de uma cena de um filme de terror. Aconteceu.

Se o Marcelo comentador fosse vivo, diria que “não lembrava ao careca!”. Então não é que umas dezenas de intelectuais, de quem a extrema-esquerda dirá fazerem parte “da casta”, decidiram interpretar o sentimento “público” e publicar no jornal do mesmo nome uma “carta aberta às televisões generalistas nacionais” a pretexto da cobertura noticiosa da pandemia em curso. Ainda bem que não se esqueceram de frisar que só se dirigiam às portuguesas não fosse a CNN pensar que o recado era para ela ou a FOX imaginar que não tinha feito bem o seu trabalho.

Uma injustiça. A FOX, sim, em pleno Trumpismo, foi a única TV que de acordo com os signatários cumpriu razoavelmente a missão de uma verdadeira televisão de informação digna desse nome. Cheia de pivots “fofinhos” a fazer perguntas “agradáveis”, daquelas a que o entrevistado louva a inteligência e acrescenta, sem rebuço, “essa é uma pergunta muito importante” ou, no mínimo, “ainda bem que me coloca essa questão”. Ali opinião e informação não se misturam, porque a informação só existe quando confirma a tese que a opinião visa demonstrar. O resto são “alegadas” ou “pseudonotícias”. Uma maçada: são fake.

Caricaturo. O manifesto (porque de manifesto se trata) não diz isto. Diz até algumas verdades razoáveis que subscrevo. Mas, uma coisa é o dito e outra o não dito que se quer dizer. O texto é estranho, ambíguo, escrito à moda das direcções da velha censura, mas o subtexto é claro. Peço desculpa se sou injusta, mas para mim fica clarinho, o que lhe subjaz. Um ataque ao profissionalismo da Informação da RTP, acompanhada de uma subtil ameaça à direção de Informação liderada pelo António José Teixeira. Como ele já respondeu e não tenho nada a acrescentar, embora sua amiga, sei que não precisa que o defendam. Tem passado suficiente e provado que não serve nenhum poder. Devia emoldurar a carta. Os privados apanham por tabela. Acusam-nos de ter uma “manifesta agenda política legítima mas nunca assumida”, e por acaso também não dizem qual seja, nem se é igual na SIC na TVI e na CMTV. É o vulgar falso testemunho. E acrescentam que “é inaceitável” uma agenda do mesmo tipo na Televisão Pública. Contudo a existência da carta mostra bem como gostariam que tivesse não a mesma, mas uma outra. Adivinhem qual.

Sou defensora acérrima do serviço Público que não pode ser instrumentalizado em nome de nenhum poder. Aos jornalistas da RTP exige-se o mesmo cumprimento do código deontológico que aos restantes e, por isso, não podem, nem devem, ser os acéfalos pés de microfone da governação. Boys e girls dispostos a abdicar do dever do escrutínio que, esse sim, lhes cabe com maior responsabilidade e é um dos pilares mais importantes da democracia.

O que se retira daquela estranha carta é exactamente que em “defesa da democracia, dos princípios éticos da sobriedade” e de um novo princípio chamado da “contenção”, as televisões não deviam fazer investigações próprias e nos deviam poupar a notícias que mostram as realidades desagradáveis, por mais verdadeiras que elas sejam, como a existência de hospitais “em caos” e a abarrotar, filas de ambulâncias à porta e, sobretudo, deviam omitir situações verdadeiras como a do sofrimento ético dos médicos. Os signatários são contra “porque isso gera medo”.

Pois gera. Mas também desmonta a propaganda, obriga os poderes a confrontarem-se com a verdade, e a agir para corrigir as situações que, em si mesmo, são a origem do mal que está na origem do medo. Real, não fictício, não empolado, não para caçar audiências, mas para respeitar a verdade. É isso que torna a informação credível. Não manipular a realidade, descrevê-la. Mesmo a mais dura. Uma coisa é fomentar e alimentar alarmismos outra é varrer para debaixo do tapete o que corre mal, só para alimentar o mito do “vamos todos ficar bem”. Não vamos. A continuar assim alguns de nós vão muito provavelmente morrer.

Começam por exigir, os signatários, “noticiários curtos”, considerando que os longos são “contraproducentes”. Perguntar-se-á quais os fundamentos científicos de tal conclusão dado que os mesmos são picos de audiência, não havendo “fadiga informativa” ao invés da “fadiga pandémica”. Mas, adiante, que isto é matéria de discussão académica e entre os subscritores há vários professores de comunicação de renome.

Fica ainda subjacente que o problema é que as más noticias, em doses excessivas, desmoralizam o povo. Em parte concordo. Também não é preciso dizer sempre a mesma coisa até à náusea e omitir o que de importante se passa no resto do mundo. O azar é o facto de, no resto do mundo, se passar mais ou menos a mesma coisa. Mas OK, talvez se pudesse variar um bocadinho.

Também garantem “não aceitar” o que apelidam de “tom agressivo, quase inquisitorial, usado em algumas entrevistas, condicionando o pensamento e as respostas dos entrevistados”. Estes novos discípulos de António Ferro estão particularmente desconsolados porque, havendo uma TV pública, com um canal apenas informativo, e outras três televisões privadas, em nenhuma encontrarem louvaminheiros amorosos a confundir jornalismo e propaganda governamental. Falam em bom e mau jornalismo mas aplicam a dicotomia erradamente. O “bom” remete-se ao respeitinho por suas excelências e o mau exige a prestação de contas aos respectivos eleitores. Errado. Do bom espera-se urbanidade e coragem.

Os signatários ao estilo dos grevistas acrescentam que “não podem admitir o estilo acusatório com que vários jornalistas se insurgem contra governantes, cientistas e até o infatigável pessoal de saúde por alegadamente, não terem sabido prever o imprevisível (SIC)”. Pois, isso da impossibilidade de previsão, sobretudo da segunda vaga, é a opinião dos signatários porque outros governantes, cientistas etc., aqui e noutros países, previram. É isso que faz mossa.

E embora digam não aceitar o que classificam como “obsessão opinativa” não deixam de dar a sua opinião sobre o que se passou com a pandemia em Portugal. Eles informam-nos, por carta, que há “uma pandemia com pesadas baixas em países menos habituados a crises sanitárias”, para a qual não existem “poções mágicas” e “o facto de qualquer um poder ser contaminado é fonte de medo”.

Para eles aos media não deveria caber a função de escrutinar o que se vai fazendo para a combater, e menos opinar sobre algumas soluções melhores e piores, mas apenas a “saudável preocupação pedagógica de informar” ( faço-lhes a justiça de admitir que a pedagogia não se resuma a sugerir que se deva ensinar a tossir para o cotovelo e lavar as mãos…).

Eu que estudei a Censura em Portugal, reconheço aqui aquela linguagem típica dos velhos censores. Dar notícias desagradáveis? Para quê? Pedagogia sim, mas sem opinião e, se existir, que seja para louvar a ação dos governantes coitados que estão a fazer o seu melhor.

Esquecem-se que, às vezes, é preciso ter a coragem de mostrar quando o melhor não basta. Esse é um dever profissional e um serviço prestado à democracia e não estão em causa as pessoas, nem as suas excelentes intenções e as suas noites mal dormidas, mas as políticas escolhidas.

Resumindo: como não podem sugerir às TV privadas que se dediquem apenas a falar de crimes e coisas do género, que não mostrando uma sociedade muito saudável ao menos só atingem de raspão o ministro da Administração Interna (que já está por um fio) e a ministra da Justiça que também não vai durar muito tempo, as recomendações centram–se na RTP por lhe calhar a difícil missão de serviço público.

Os signatários do alto das suas cátedras consideram, é claro, que o povo iletrado não tem capacidade de interpretar o que é o serviço que pretendem que lhes prestem e, por isso, humildemente “exigem” uma série de mudanças cada uma mais tonta e “ameaçadora” do que a anterior, podendo numa frase resumir-se a um aviso sinistro à actual direcção: ou passam a funcionar como a TV do PS, substituindo aquele inenarrável podcast que o Governo amadoristicamente tentou fazer e não é visto por ninguém, ou vai tudo para o meio da rua que não é para isso que vos pagamos. Interpreto livremente e caricaturo, claro.

Francamente, gostava de saber de onde partiu a “encomenda” porque estão lá nomes que não creio que possam sequer ter lido o manifesto antes da publicação, quanto mais não seja porque ele faz de tal forma lembrar os tempos do PREC que é uma vergonha ser assinado (a não ser de cruz) por gente grande da nossa literatura e foi jornalista como a querida Alice Vieira. Não pode.

Esta verborreia “não podemos aceitar o apontar incessante de culpados os libelos acusatórios contra responsáveis do Governo (…)”. “As pseudonotícias sobre o “caos” nos hospitais, a “catástrofe” a “rotura” sempre anunciadas com “a hipotética escolha entre quem vive e quem morre”. Há gente que assina e não pode pensar isto.

Pois é. É duro, mas não se trata de “pseudonotícias”. Não são fake news. São news. São a prova do caos que os jornalistas testemunharam, os doentes relatam, os médicos confirmam, os enfermeiros não conseguem esconder nem suportar. É pena, mas tudo isso é notícia e a “escolha entre quem vive e quem morre” aconteceu, não por ação, mas por falta de meios e incapacidade de prestação atempada de cuidados. Um idoso sentado dias na mesma cadeira, que preferiu pedir alta médica para ir morrer em casa sossegado, preferindo esse cenário tétrico a permanecer no hospital mais um minuto não é a descrição de uma cena de um filme de terror. Aconteceu.

É duro constatá-lo e é duro relatá-lo. Isto faz medo. Não são os media a empolar, mas a mostrar. É dura a realidade, mas escondê-la é tão intolerável quanto na fúria das audiências aumentá-la. Quem teve o azar de passar pelos hospitais naqueles dias ou ter familiares entre os mortos (eu tive!) sabe o que viu e testemunhou.

E concluem os sábios: consideramos inaceitável “a agenda política dos diversos canais televisivos generalistas”. Em plena pandemia talvez se pudesse noticiar que o povo é sereno e o SNS dá conta das suas responsabilidades sem nada de anormal a assinalar. A vida correria como habitualmente como o antigo regime se forçou por tentar dizer. Os confinamentos etc., é que se tornariam depois um bocadinho difíceis de explicar, mas tudo se faz… ao modo de António Ferro. Portugueses não se aproximem do Santa Maria que aquilo não tem nada para ver…

Na nota de censura própria do coronel de serviço afirmam-se, como sempre, meia dúzia de meias verdades à mistura com “umas instruçõezinhas” que, evidentemente, são para cumprir, não vá o senhor presidente do conselho (de ministros) ver por ali alguma coisa com a qual não fique totalmente agradado e lhe passe pela cabeça dar tal varridela, colocando por lá um chorrilho de boys e girls disponíveis nos vários partidos.

Abençoado Poiares Maduro (pode não ter sido o ministro ideal em algumas coisas) que tornou mais difíceis certas manobras a esta esquerda retrógrada que detesta o escrutínio e acha que lhes cabe educar o povo. E povo, que não é bem-educado, até pode decidir votar livremente, muito inconveniente para o seu próprio bem, como Salazar, por acaso, já sabia e todos os restantes tiranetes continuam a saber. Ora, haverá que reconhecer a maçada de em quatro televisões (RTP, SIC, TVI e CM) nem uma fazer o papel de FOX Costista. Bom para o jornalismo.

Os subscritores da original “carta aberta às TVs generalistas nacionais” para falar assim mostram uma invulgar fadiga pandémica, em estado já avançado. Talvez possam poupar-se às verdades televisivas, certamente excessivas, repetitivas e desagradáveis nas TVs nacionais e passar a seguir os noticiários da Sky News a par com algumas séries ótimas da Netflix. Ou tomar calmantes. Enquanto os Media forem livres e plurais e muito mais do que agradecidos críticos dos governantes, a democracia não corre perigo. Boa notícia.

Comentários
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  • Nina Santos
    02 mar, 2021 Coimbra 08:50
    Estranhas razões Por que estranhas razões (se é possível invocar aqui a razão…) os arautos da Direita não querem, ou não sabem, responder com argumentos à “Carta aberta às televisões generalistas nacionais” e, na sua maioria, apenas conseguem bolsar graçolas, insinuações soezes e insultos, alguns dos quais se situam ao nível da sarjeta (dispenso-me de dar exemplos, é fácil encontrá-los)? Por que motivo não cuidam, por exemplo, de apresentar razões credíveis para justificar: - a duração excessiva dos telejornais, contrária à boa prática das melhores televisões europeias; - a repetição, até à náusea, das mesmas imagens, de telejornal em telejornal; - a sistemática invasão dos espaços hospitalares, incluindo enfermarias, e a consequente falta de respeito pela privacidade de médicas, enfermeiros, auxiliares de saúde e doentes, alguns dos quais são exibidos, entubados, nas suas camas; - o tom inquisitorial, usado em alguns interrogatórios; escrevo interrogatórios, porque entrevistas são outra coisa e também as há, felizmente, nos mesmos canais (e não me refiro apenas aos interrogatórios feitos a pessoas de Esquerda, como foi evidente durante a campanha para as eleições presidenciais); Estes são apenas alguns exemplos simples. É assim tão difícil responder? Ou pensam, esses arautos, que gozam de uma impunidade que os dispensa de tal? Ou julgam que os seus leitores e espectadores estão ao nível rasteiro da linguagem que usam e que, portanto, “para quem é bacalhau basta”? A. H.
  • Ivo Pestana
    28 fev, 2021 RaM 19:12
    Acho que o maior problema de muitos jornalistas é a falta de humildade. O desejo de agradar ao Governo, a grupos económicos e a Clubes de futebol é grande. Basta ver entrevistas, reportagens, programas e relatos de futebol. Os mais fracos e mais pequenos são esquecidos. Dependendo das fontes de receita de cada um, isso também conta, para o serviço jornalístico prestado. A Dra Graça tem razão, mas o "doa a quem doer", quase sempre é censurado e as notícias não são dadas como deve ser. Muitos criticam os canais de informação que falam verdade e excedem-se algumas vezes, porque a verdade dói a muitos. O direito a informar bastante vezes é teoria...é um caminho que se vai fazendo.
  • César Augusto Saraiva
    28 fev, 2021 Maia 13:15
    Excelente; e obrigado Drª Graça Franco! O que os 'iluminados' não esperavam é que aparecesse alguém com retumbante réplica em defesa do povo, que apesar de iletrado, analfabeto, e não sei que mais aos olhos deles, já distingue bem a tentativa de quererem impor a mentira na vez da pura verdade...
  • Cidadao
    28 fev, 2021 Lisboa 11:33
    Não é só de agora, as tentativas PS de controlar a Comunicação Social. Já tentaram isso antes.