“Se não fosse a Cáritas, não sobrevivia”. A fome bateu à porta de Maria

26 fev, 2021 - 08:30 • Olímpia Mairos

Desde o início da pandemia, mais do que duplicaram os pedidos de ajuda na Cáritas Diocesana de Vila Real. O encerramento de estabelecimentos e o desemprego são a principal causa que leva as famílias a uma situação de carência.

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A pandemia trocou as voltas a esta mãe com 42 anos, dois filhos de 10 e 19 anos. Maria, nome fictício, foi obrigada a fechar as portas do seu estabelecimento de serviços na área da beleza e cuidados pessoais e os problemas começaram a avolumar-se. Não lhe restou outra alternativa. Teve de bater à porta da Cáritas de Vila Real.

“Não estou a trabalhar, tenho o estabelecimento fechado. Tenho recebido apoio da Cáritas, que me dá alimentos, a medicação para os meninos, porque a minha filha tem uma depressão e o menino tem problemas de alergias. Não há dinheiro para pagar as faturas no fim do mês, não tenho ninguém que me ajude, a não ser a Cáritas”, diz à Renascença.

Tem as contas de água, eletricidade e internet em atraso desde março, há praticamente um ano. “É muito complicado. São momentos duros e muito difíceis, muito complicados”, desabafa, acrescentando que nem sabe "como chegar ao fim do mês".

"É todo o mês a pensar como vamos conseguir viver. Se não fosse a Cáritas, não podia sobreviver. Não tinha medicação para os meus filhos nem para mim. Comida também não”, acrescenta, revelando que houve já momentos em que passou fome.

Maria vive este drama sozinha e tudo faz para que os filhos não se apercebam da dura realidade que atinge a família. “O pequenino, por enquanto, ainda não se apercebe, porque eu tento não falar à frente dele; a mais velha às vezes vê-me a chorar, porque é muito difícil lidar com tudo isto, mas não pergunta”, conta.

O desejo seu é que os estabelecimentos comerciais voltem a abrir para poder trabalhar. E refere que no seu tinha muitos clientes.

“Quero muito que as lojas abram, mas com todas as medidas de segurança, porque esta doença não é para brincar. Mas temos de trabalhar, porque a vida vai ser cada vez pior. Se as pessoas não trabalharem, vai haver cada vez mais pessoas com fome”, lamenta.

A história de João. “Estamos todos desempregados”

José Costa tem 25 anos e um agregado familiar com cinco pessoas. Vive com a esposa, o filho de um ano e quatro meses, um irmão e uma cunhada. Estão todos desempregados. Apenas o irmão leva algum dinheiro para casa no final do mês. Trabalha à comissão em uma empresa de telecomunicações e não tem uma remuneração fixa.

“Estamos todos desempregados, tirando o meu irmão que está a trabalhar, mas trabalha para uma empresa de telecomunicações, mas como se sabe, não é nada certo, tanto pode receber 200 como 300 euros”, relata.

A família vivia e trabalhava na restauração no Algarve. Quando a situação se começou a complicar para o setor, mudaram-se Vila Real, com a promessa de trabalho garantido.

“Entretanto a coisa não correu bem. O trabalho da minha mulher começou a pagar menos. Depois mandaram-na para casa sem pagar o ordenado e ficámos numa situação bastante complicada. Eu também teria um trabalho garantido aqui, quando chegasse, e esse trabalho já não existia”, conta à Renascença.

“E pronto, comecei a trabalhar nas obras porque não havia mais nada. Mas também isso acabou. Agora estamos todos à procura de trabalho. É uma situação complicada”, desabafa.

Questionado sobre como gere a situação, José Costa hesita porque sente que, num contexto tão complicado, tem "tido muita sorte". “[Temos tido] algumas ajudas caídas do céu, porque se não fossem essas pessoas, neste momento eu estaria a passar fome”, responde.

A família chegou a “passar mesmo muito, muito mal”, diz José que, após a informação de uma pessoa que também estava a passar por dificuldades, resolveu bater à porta da Cáritas de Vila Real, para pedir ajuda e a resposta foi imediata.

“Já recebi por três vezes vales para comprar comida. Das duas primeiras vezes foram vales de 60 euros e da última de 50 euros”, conta, acrescentando que se trata de “uma ajuda gigante” para se orientarem.

Neste momento, José tem um mês de renda de casa em atraso. E, apesar de se ter “comprometido com o senhorio a pagar este mês um bocado a mais”, diz que vai ter de “falar com ele outra vez” para ver se consegue chegar “a outro acordo diferente”. Não vai conseguir pagar a renda, “porque não há rendimentos”.

A saída para esta família “é arranjar trabalho”. “Se arranjarmos trabalho, a coisa muda completamente”, afirma, adiantando que, no imediato, vai tentar o Rendimento Social de Inserção. “O RSI ajuda bastante, sim, senhora, mas não é um ordenado e muito menos quatro ordenados, porque nós somos quatro adultos. Ou seja, o RSI ajudava neste momento, porque não temos mais nada, mas o que eu quero é trabalhar”, explica, acrescentando que nunca pensou chegar a uma situação “tão difícil e tão complicada”.

“Eu nunca pensei que chegasse a esta situação, sou sincero, até porque sempre trabalhei a minha vida toda. Desde os 19 anos que estou a trabalhar e nunca estive numa situação parecida a isto. Portanto, isso para mim é completamente novo. Eu nunca estive no fundo de desemprego, nunca estive mais de um mês sem trabalho, é muito complicado”, remata.

Mónica chegou à Cáritas com ordem de despejo

Mónica Mendes tem 30 anos, quatro filhos e mais um a caminho. Proprietária de um restaurante que, embora não tenha encerrado - está a servir para fora -, viu os seus rendimentos descerem a pique. À falta de outras soluções, resolveu pedir ajuda à Cáritas de Vila Real.

“Eu vim aqui, através de uma colega minha. Ela indicou-me, porque estava a ter algumas necessidades. Eu tenho quatro crianças, são todos pequeninos, tenho uma de nove, tenho um de oito, tenho uma de seis, tenho um de três e vem outra a caminho. E, então, já estava a ter problemas com a renda da casa. Vim aqui pedir ajuda, porque já não conseguia mais, já não via caminho nenhum para onde me orientar”, descreve.

Diz que no restaurante que mantém com o marido serve “três refeições, quatro, cinco [refeições em 'take-away'], às vezes nenhuma”. “O que fazemos hoje é para comprar amanhã e para governar os pequeninos”.

“Nunca pensei vir a esta casa, mas estou muito contente com o que estão a fazer por mim. E só tenho a agradecer, muito obrigada. Já estou mais calma, andava muito nervosa, muito deprimida, a situação também me estava a causar problemas na gravidez, mas, agora, já vou mais calma”, realça Mónica.

Quando chegou à Cáritas de Vila Real tinha quatro meses de rendas em atraso, da casa e do restaurante, e uma ameaça de despejo. “O dinheiro não dava para nada. Recebi uma carta da advogada. Entretanto, foi quando vim aqui. A D. Sandra tentou falar com as pessoas e as pessoas disseram que eu tinha dez dias para resolver o problema e já está resolvido”, explica.

As rendas em atraso, quer da habitação, quer do restaurante, aproximadamente 1.700 euros, foram liquidadas com a ajuda da Cáritas e da autarquia de Vila Real, mas o processo, assinala Mónica, “foi todo tratado aqui”.

A instituição da Igreja também providenciou roupa e material escolar para as crianças e em breve vai disponibilizar produtos alimentares para a família.

“Se não fosse esta ajuda..não sei o que é que eu teria feito. Já consigo dormir, coisa que já não conseguia”, diz Mónica Mendes, não poupando nos elogios aos técnicos da Cáritas que “têm mesmo vontade de ajudar, que estão aqui para apoiar, seja para ajudar a fazer as coisas, seja para ouvir”.

Pedidos duplicam e ajuda segue o mesmo caminho

Carlos Martins, vice-presidente da Cáritas Diocesana de Vila Real, observa à Renascença que “desde o início da pandemia, ou seja, desde março passado até agora, os pedidos de ajuda mais do que duplicaram e a resposta a estes pedidos também duplicou, em consonância com os pedidos”.

À porta da Cáritas batem essencialmente as pessoas carenciadas, maioritariamente, pessoas com uma média de idades entre os 35 a 40 anos, que ficaram desempregadas e estão à procura de emprego e não têm como fazer face às necessidades do dia a dia.

“É para isso que nós cá estamos, para ajudar as famílias carenciadas. Nestes últimos tempos, as pessoas que nos procuram são maioritariamente pessoas que ficaram em situação de desemprego, é o principal flagelo deste momento - são as situações de desemprego e a perda de rendimentos provocada pela situação de desemprego”, adianta o vice-presidente da Cáritas.

Antes da crise pandémica, a instituição da Igreja acompanhava mensalmente uma média de mil agregados familiares. Neste momento, o número subiu para as 1.300 famílias.

De acordo com Carlos Martins, os pedidos de ajuda não param de chegar e são, sobretudo, “para alimentação, pagamento de rendas em atraso, depois para despesas de água, gás e eletricidade e também bastantes pedidos de apoio para a medicação”.

E aqui o vice-presidente da Cáritas de Vila Real respira fundo, antes de revelar uma grande preocupação da instituição e que se prende com crescente aumento de pedidos de ajuda para a medicação das crianças.

“Esta situação leva-nos a ficar aqui bastante apreensivos porque, quando as famílias já não têm para comprar a própria medicação dos filhos, isto tem que nos deixar preocupados e até aflitos”, afirma Carlos Martins.

Em tempo de pandemia a generosidade não tem faltado

Carlos Martins nota que as pessoas foram mais generosas nestes tempos difíceis de pandemia.

“Há, de facto, uma maior generosidade por parte das pessoas. Os nossos apoios, os nossos donativos de particulares e até de comunidades paroquiais têm aumentado. Esperemos que continuem a aumentar. Ainda recentemente, o D. António, o nosso Bispo, também destinou a renúncia quaresmal deste ano para a Cáritas Diocesana, para podermos fazer face a este aumento de pedidos de ajuda”, afirma o vice-presidente da Cáritas de Vila Real.

Acredita que as pessoas “estão predispostas a serem mais solidárias e que vão continuar a contribuir para a Cáritas, para nós podermos continuar com a nossa missão no terreno.

“Na medida do possível, a Cáritas não deixará de dar resposta às situações mais prementes”, garante este responsável, acrescentando que, “até ao momento”, tem “conseguido, felizmente, dar respostas a todas as solicitações que têm acontecido”.

“Claro que todas as situações são devidamente avaliadas”, diz Carlos Martins, realçando que “até ao momento, nós temos conseguido dar essa resposta e queremos e temos esperança que vamos continuar a fazê-lo também no futuro”.

Cáritas de Vila Real com esforço acrescido em 2020

Para poder ajudar, a Cáritas Diocesana de Vila Real tem vários programas. “Alguns protocolados com a segurança social permitem-nos também este tipo de ajudas, nomeadamente ajuda alimentar, através do programa de apoio alimentar às famílias carenciadas”, especifica Carlos Martins.

Depois, acrescenta, “temos também programas da Cáritas Portuguesa, em articulação com as Cáritas Diocesanas, como o programa prioridade às crianças ou a campanha ‘Vamos Inverter a Curva da pobreza’”.

“E nessa campanha, nesse programa, nós temos vales para atribuir às famílias carenciadas para elas poderem adquirir bens de primeira necessidade e também dentro desse programa há uma verba para pedidos pontuais urgentes. E aqui colocamos as rendas, as despesas de água e eletricidade e também a medicação.”

Em síntese, o vice-presidente da Cáritas de Vila Real indica que os apoios dobraram a nível de agregados familiares e a nível de valores monetários investidos em apoios sociais em 2020, comparativamente com 2019.

“Entre apoios com vales, apoios para rendas, água, eletricidade e medicação ultrapassamos largamente os 15 mil euros em 2020. Aqui não incluímos os cabazes alimentares”, conclui o responsável.

Semana Nacional da Cáritas com peditório online

A Cáritas Portuguesa está a apelar à solidariedade dos portugueses, no contexto da sua semana nacional, que vai decorrer entre 28 de fevereiro e 7 de março, para apoiar os seus beneficiários.

A Semana Nacional acontece todos os anos, nos dias que antecedem o Dia Cáritas, instituído pela Conferência Episcopal Portuguesa no 3.º domingo da quaresma, este ano a 7 de março.

Com o tema “Cáritas 65 Anos: O Amor que Transforma”, a iniciativa procura destacar a ação da instituição da Igreja Católica no combate à pobreza e exclusão social.

“Vivida em contexto de pandemia, a Semana Cáritas reveste-se este ano de um peso especial, num período em que a Covid-19 deixou muitas famílias em situações difíceis”, assinala a instituição.

Devido ao confinamento o peditório nacional vai ser desenvolvido online, visando a “angariação de verbas que vão reforçar a capacidade da rede Cáritas na resposta aos atendimentos sociais e no desenvolvimento e implementação de projeto sociais locais”.

De acordo com a Cáritas Portuguesa, em 2020, a rede Cáritas atribuiu apoios financeiros, diretos à população, de “cerca 1.5 milhões de euros, ao qual se somam, ainda, os apoios em produtos alimentares e bens essenciais bem como outras respostas sociais de emergência”.

“Desde abril de 2020 a fevereiro de 2021, através da implementação do programa nacional ‘Vamos Inverter a Curva da Pobreza em Portugal’, foi possível responder diretamente a cerca de 10 mil pessoas, que viram os seus rendimentos afetados pela Covid-19, um apoio que corresponde a cerca de 10 por centro do total de apoios da rede nacional”, realça a instituição da Igreja.

A redução significativa de rendimentos pela perda de posto de trabalho ou por rendimentos insuficientes, seja salário ou reforma, são as principais razões que motivam o apoio da Cáritas que tem respondido com o pagamento de rendas de habitação, despesas de saúde e medicamentos e pagamento de despesas de eletricidade.

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