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"Jorge Jesus não reagiu como líder". Psicólogo e filósofo avaliam momento do treinador

26 fev, 2021 - 12:44 • Fábio Monteiro

A segunda experiência de Jorge Jesus no Benfica está a ser um caminho espinhoso. Na quarta-feira, numa conferência de imprensa num registo pouco usual, o treinador rejeitou qualquer responsabilidade pelos maus resultados da equipa. A culpa é da Covid-19, defendeu. À Renascença, o amigo e filósofo Manuel Sérgio diz que a Covid-19 “não é o único obstáculo na presente época desportiva do Benfica”. Gaspar Ferreira, especialista em Psicologia do Desporto e das Organizações, diz que Jesus “não reagiu da maneira que se esperava de um líder”.

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Da pandemia ao buzinão. Jorge Jesus defende equipa e pede carinho
Conferência de imprensa de Jorge Jesus em que o treinador rejeitou responsabilidade pela crise do Benfica

“Não podemos ficar zangados com o nosso próprio tempo sem que isso nos traga dano a nós próprios”: este pensamento pertence a Ulrich, o protagonista do romance “O Homem Sem Qualidades” de Robert Musil; e apesar de ter sido escrito há mais de 70 anos, possui, como toda a grande literatura, algo de oracular. Ulrich é um matemático, um homem cerebral – um intelectual dessincronizado com a época que vive. Jorge Jesus, treinador do Benfica, é “um prático”, nas palavras do amigo e filósofo Manuel Sérgio, e talvez sofra do mesmo problema.

O técnico das águias protagonizou, na quarta-feira, uma conferência de imprensa num registo pouco usual. Pediu “carinho” aos adeptos em vez do buzinão que houve no Estádio da Luz, queixou-se afincadamente da pandemia, não assumiu responsabilidades pelos resultados do Benfica. Garantiu estar feliz por estar no clube, mas não “feliz totalmente”. “Eu vim para o Benfica para ser campeão, eu vim para o Benfica para poder trabalhar normalmente, com os meus jogadores, e fui impedido. Por alguém? Não. Por uma pandemia. E, portanto, não me sinto feliz”, disse.

Manuel Sérgio viu a conferência, a “trapalhada”. O filósofo e professor universitário catedrático sublinha que não sabe o que se passa dentro do Benfica, mas garante: “Há ali mais do que Covid-19, não tenho a mínima dúvida. Portanto, dizer-se, como ele disse, todos ouvimos, que a Covid-19 era a causa do mau desempenho da equipa… não, não. Ali deve haver mais coisas, mas que eu não sei o que são.”

É possível pôr defeitos “em muitos lados”, “não só no treinador”. “Na análise que eu faço da equipa, dá-me a impressão que, do ponto de vista mental, do ponto de vista emocional, está fraca. É uma equipa que reage mal às contrariedades. Portanto, não tem a força psicológica típica do campeão”, diz.

Em declarações à Renascença, Gaspar Ferreira, especialista em Psicologia do Desporto e das Organizações, admite ter ficado surpreendido com o tom da conferência de Jesus. “Embora veja o Jorge Jesus muito ativo em campo, noto que ele consegue manter a calma nas conferências de imprensa, com bom controlo emocional. Confesso que fiquei surpreendido com a falta de controlo, com voz alta, com a gesticulação descontrolada, um pouco agressiva”, diz.

O treinador do Benfica “teve o cuidado de salvaguardar a equipa. Procurou um agente externo, que foi a crise pandémica, para justificar o insucesso.”

Para o psicólogo, é claro que Jesus se sente acossado pelas críticas. “E a sua reação não foi assertiva, foi antes agressiva. Não reagiu da maneira que se esperava de um líder, pelo menos com maior serenidade”, diz.

A “principal falta de competência” nesta situação foi “ao nível da comunicação de crise”. “Se tivesse respondido com serenidade, identificando-se mais com os sentimentos de frustração dos adeptos, julgo que o impacto teria sido diferente”, acrescenta.

O especialista rejeita ainda ideia de que Jorge Jesus esteja “descompensado” por ter estado infetado com a Covid-19 ou por causa do momento do Benfica.

“Creio que não está descompensado. É natural que em circunstâncias em que estamos a ser sobrecarregados com muita informação, com críticas, tenhamos dificuldade em articular e manter o foco, a concentração. Julgo que ele terá sido vítima dessa dificuldade naquele contexto e que deve ser um cúmulo de várias situações”, explica.

Era uma vez… no Brasil

Na quarta-feira, Jesus garantiu que não ia “sair por pé nenhum” do Benfica e que a responsabilidade do momento negativo que o Benfica vive também não é dos jogadores ou de Luís Filipe Vieira.

“Então tu és o treinador do Benfica e não tens a ver com esta crise do Benfica? Não, não tenho a ver, porque eu não treinava os jogadores do Benfica. Os jogadores do Benfica estiveram doentes durante dois meses. Em janeiro, o Benfica era segundo, a dois pontos do Sporting”, afirmou.

Já na quinta-feira, o Benfica foi eliminado da Liga Europa pelo Arsenal. O impacto desta derrota ainda está para ser contabilizado: se Jesus ficará mais ou menos acossado. Porventura, se começará a pensar sair.

“Vocês sabem que no último ano em que trabalhei [no Flamengo], só não ganhei o Campeonato do Mundo. Eu não, os meus jogadores, onde eu estava. Agora, sei que os treinadores nem sempre ganham. Agora, em relação ao que o Benfica está a passar, não tem nada a ver com falta de qualidade do meu trabalho, dos jogadores, da estrutura”, disse Jesus também na quarta-feira. Ora, o problema de evocar velhos sucessos é o mesmo que evocar velhos amores; fica sempre a dúvida se a referência não é uma evocação nostálgica.

Manuel Sérgio garante que não há dúvidas de que “Jorge Jesus é verdadeiramente feliz em Portugal. Agora, ele já me disse que foi muito feliz no Brasil. O Jorge Jesus ganhou tudo. Ganhou tudo. Além do Brasileirão, ganhou tudo. Portanto, isto não é habitual. Perdeu um jogo com o Liverpool. Mas perder um jogo com o Liverpool é banal, qualquer um perde.”

O treinador do Benfica “tem qualidades excecionais”. “Uma delas é a leitura de jogo, porque tem muita prática. O Jesus tem uma leitura de jogo excecional. O homem olha e vê. Tem a leitura do especialista”. “Tem aquela sabedoria crítica dos práticos. Não é um treinador para pensar muito, mas é um homem que repete muito bem”, diz.

Segundo o filósofo, “o treinador do futuro tem de ser um intelectual. O Jesus é um prático, é um grande prático, que está com azar agora, não sei porquê.” Há alguns anos, ofereceu a Jorge Jesus um livro: “A Sociedade Pós-Capitalista” de Peter Drucker. Um livro que fala do que é competição “do nosso tempo.” “Comprei-lhe o livro. Julgo que ele não leu”, diz.

O regresso de Jesus ao Benfica

Um grande treinador tem sempre algo de messiânico. É por isso que, quando se vai embora (a bem ou a mal), deixa um vazio no espírito do clube. Perde-se uma visão. Não raras vezes há um sentimento de orfandade nos adeptos que, em pouco tempo, se transforma numa espécie de nostalgia. E se as coisas correm mal, após a saída desse messias, demora pouco até que uma segunda vinda comece a ser desejada ou comentada.

O problema é que as segundas vindas no futebol, essas ressurreições que os adeptos e presidentes por vezes desejam, são – na larga maioria – falhanços, ao contrário do que acontece no caso religioso, em que a crença acaba por ser confirmada.

Pelo menos, é isso que diz a história do futebol. E é isso que expressa a história do Benfica. As águias já tiveram mais de uma dezena de treinadores que passaram pelo clube mais do que uma vez; apenas um teve mais sucesso (e foi magro) no regresso que na primeira estadia no clube.

António Ribeiro dos Reis foi técnico interino do Benfica entre 17 de outubro de 1908 e 26 de maio 1929 – no mesmo período, Cosme Damião foi treinador-jogador até 26 de março de 1926. Nesta passagem pelas águias, o treinador conquistou oito campeonatos regionais de Lisboa. Numa segunda “vida” no Benfica, de janeiro de 1932 a junho de 1934, ganhou um único palmarés. E numa terceira vinda, já em 1953, esteve menos de um ano no clube e não ganhou nada.

O húngaro Lippo Hertzka foi treinador do Benfica entre 1 de outubro de 1936 a 25 de junho de 1939. Em três anos, conquistou dois títulos da Primeira Liga. Passados oito anos, voltou ao Benfica por uma época. Foi-se embora em 1948 de mãos vazias.

Entre 21 de dezembro de 1953 e 31 de maio de 1954, o argentino José Valdiviseo – no papel de treinador interino - não conquistou nenhum troféu. Em conjunto com Otto Glória, voltou ao clube no mesmo ano e ficou até 1959. Conquistas? Uma Taça de Portugal.

Valdiviseo e Otto Glória foram sucedidos seguido por Béla Guttmann. De 1959 a 1962, o Benfica conquistou duas Primeiras Ligas e duas Ligas dos Campeões. Três anos depois, Guttmann volta ao Benfica e resultado: zero conquistas.

Fernando Cabrita teve duas estadias no Estádio da Luz. A primeira de 1 de dezembro de 1967 a 7 de abril de 1968; a segunda na época 73/74. E nunca ganhou nenhum troféu.

Em 75/56, Mário Wílson comandou as águias e conseguiu conquistar a I Liga (então Primeira Divisão), mas saiu do clube. Em 79/80 regressou e apenas conquistou a Taça de Portugal. E em 1995/1996 regressou mais uma vez. Dessa feita, arrecadou de novo a Taça de Portugal.

Entre 1982 e 1984, Sven-Goran Erikson arrecadou duas Ligas e uma Taça de Portugal. Já entre 89 e 1992, ou seja, mais tempo do que na primeira estadia, conseguiu apenas uma Liga e uma Taça de Portugal.

Toni também teve três passagens pelo clube da Luz. Uma entre 87 e 89, em que conseguiu apenas uma Liga. Em 1992, voltou e ficou durante dois anos. Aí, arrecadou uma Liga e uma Taça de Portugal. Depois, na época 2000/01 voltou uma terceira vez – e saiu sem nenhum troféu.

Já o último treinador a ter duas “vidas” no Benfica foi José António Camacho. Entre 2002 e 2004, conseguiu uma Taça de Portugal. Na época 2007/08, foi-se embora sem nada.

Agora, resta a Jorge Jesus contrariar a história.

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  • Ivo Pestana
    26 fev, 2021 Funchal 15:12
    As derrotas e o Covid-19, fazem mossa.

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