24 fev, 2021 - 08:10 • Fábio Monteiro
Estamos a aproximar-nos da data de um ano da chegada da pandemia a Portugal. Na maioria dos dias, quando falamos sobre a Covid-19, falamos de saúde pública. Mas há outras dimensões a ter em conta: os outros números da pandemia.
Realizaram-se metade dos casamentos, em comparação com 2019. Registou-se um mínimo histórico no abandono escolar e um abandono relevante da prática desportiva, com menos cerca de 100 mil atletas federados, o que equivale a uma redução à volta de 15%.
Houve menos nascimentos - a natalidade teve o pior registo de 2015 -, venderam-se menos livros, compraram-se mais casas, reciclou-se mais lixo e os jogos e apostas online bateram recordes.
As restrições impostas pela pandemia alteraram os hábitos dos portugueses, com impacto na saúde, na economia, mas também na flutuação de vários índices observados pela Renascença.
Uma torre de Babel de cartão, embalagens e jornais; o caixote da reciclagem nunca esteve tão cheio. O carteiro ou o rapaz das entregas, sempre que tocava à porta, trazia sempre algo mais – e mais encomendas tornaram-se, assim, cada vez mais plástico. Para muitos portugueses, este é um retrato da pandemia.
“Nunca tive consciência de quanto consumia, a quantidade de resíduos que produzia, até estar fechada dentro de casa durante semanas a fio”, admite Mónica Ferreira, 37 anos. Por hábito de profissão, a educadora de infância já costumava aproveitar “restos de coisas do dia-a-dia” para “pequenos trabalhos manuais”; reciclava, mas a pandemia abriu-lhe “os olhos”.
“Pode parecer estranho, mas a verdade é que passei a ter mais tempo para reciclar. Há um limite no número de horas que uma pessoa pode passar deitada no sofá ou no Zoom”, diz, entre risos.
Tal como Mónica, foram muitos os portugueses que, em 2020, prestaram mais atenção à reciclagem. Prova: a recolha seletiva de embalagens aumentou no ano passado 13%, face a 2019, tendo sido encaminhadas para reciclagem mais de 409 mil toneladas de embalagens, segundo dados da Sociedade Ponto Verde (SPV).
“Fomos todos para casa, por períodos mais curtos ou mais alargados, e, portanto, isto quer dizer que as pessoas não perderam o seu hábito de se deslocarem ao ecoponto, no momento pós-consumo, e de colocarem as embalagens no ecoponto”, diz Ana Trigo Morais, CEO da Sociedade Ponto Verde, em declarações à Renascença.
Em 2020, foram recolhidas 132 mil toneladas de papel e cartão, o que equivale a um aumento de 39,7% face ao ano anterior. As embalagens de plástico colocadas nos ecopontos aumentaram em 7,6% e as embalagens de vidro cresceram 1,3%.
Segundo Ana Trigo Morais, “nós cidadãos, consumidores, alteramos o nosso padrão de consumo”.
“Há uma preocupação muito grande em melhorar a utilização que fazemos do plástico. E essa preocupação existe também na cadeia dos bens de grande consumo, onde se utiliza muito plástico; não há alternativas para levar aos consumidores, em muitos casos. Mas há também aqui uma transferência de embalagens de outros materiais para o papel cartão que faz com contribua para termos um aumento muito significativo da recolha e encaminhamento para reciclagem”, explica.
As vendas online, por exemplo, terão tido peso na transformação. “Gera-se uma embalagem diferente, neste caso, muito suportada em papel e cartão, que faz com que estas quantidades nos apareçam para nós reciclarmos. Há também aqui um outro fator muito interessante: nós estamos a assistir a um momento de transformação e de ajustamento do tipo de embalagem utilizado por várias marcas e vários produtos”, nota.
A pandemia asfixiou a larga maioria das práticas desportivas em Portugal; não foram só os estádios que ficaram vazios, sem público e as mudanças no calendário da I Liga. Esse, digamos, foi o rosto mais visível. Num futuro a curto prazo, a Covid-19 irá – pelo menos de forma indireta – influenciar a próxima geração de desportistas nacionais. Muitos foram aqueles que estavam nas linhas de formação e acabaram por desvincular-se dos clubes a que estavam associados.
Dados do Instituto Nacional de Estatísticas (INE), publicados há poucos dias, indicam que o número de praticantes inscritos em federações desportivas em 2020 caiu para 589901, uma redução de quase 100 mil atletas (14,4%), por comparação com o número do ano anterior (688894).
“Acho que os dados do INE são otimistas. Infelizmente, acho que são otimistas. Na medida em que nós temos conhecimento - claro, que não é generalizado -, nas federações, nomeadamente nas federações de desportos coletivos, as quebras são da volta dos 60 a 70%”, diz Carlos Alberto Cardoso, Presidente da Confederação do Desporto de Portugal, à Renascença.
Em particular, a quebra de atletas é “generalizada nos escalões de formação”. Há clubes de base – “de freguesias, de cidades” – que desempenham “um papel essencial na angariação anual para a prática desportiva”, mas que agora estão em risco. “Esses clubes sofreram imenso e muitos deles vão desaparecer. É esse tecido desportivo que vai desaparecer e criar problemas, numa fase posterior”, explica.
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“Durante praticamente duas épocas, os escalões de formação não existiram ou tiveram parados. Aqueles que estavam nos clubes de formação desde os juvenis até aos juniores, esses aí não tiveram praticamente prática desportiva. A evolução dá-se por fases. E há fases que não se pode eliminar. Do ponto de visto de desenvolvimento físico dos jovens, há hiatos que não vão ser recuperados”, nota.
Segundo Carlos Alberto Cardoso, há dois riscos em cima da mesa: muitos jovens podem “nem sequer vir a entrar na prática desportiva”; outros nunca vão atingir “os patamares se tivessem o treino continuado na sua carreira ao longo da formação até chegar aos escalões seniores”.
“O exemplo mais flagrante é o caso do Sporting Clube de Portugal, um clube com a dimensão que tem, que praticamente fechou a sua secção de canoagem, de atletismo. Muitos dos atletas encontram agora dificuldade no seu treino, no futuro. Há uma destruição do tecido desportivo português”, conta.
Na última década, o único período comparável de “escassez” de atletas federados foi nos chamados anos da Troika. Em 2011, existiam 523168 desportistas federados no país; em 2015, eram 566366. “Digamos que estávamos numa fase recuperação desses três anos que tenha havido menos jovens e agora estávamos a recuperar.” Uma recuperação que a Covid-19 veio adiar.
Talvez os portugueses tenham lido mais em 2020, devido ao confinamento geral, que em muitos dos anos anteriores. Esta é uma hipótese difícil de confirmar, mas é uma possibilidade que não pode ser descartada à partida. Talvez, saturados de ver séries em catadupa na Netflix, tenham ido tirar o pó às estantes e espreitar os tomos que tinham por ler em casa. Ou, porventura, pedido livros emprestados a amigos.
“Li mais. Desde há uns anos para cá, tenho apontado as leituras todas que faço. Li mais no período da quarentena inicial, no primeiro confinamento. Não logo no princípio, mas assim mais para maio, junho. E li muito mais. Em junho, li para aí 19 livros, quando o normal era ler nove ou assim", conta Catarina Durão Machado à Renascença.
A professora de História é uma leitora inveterada. Em abril do ano passado, quando a pandemia atingiu Portugal, Catarina percebeu que “o esquema” ia deitar “abaixo as editoras e as livrarias”. “Começamos todos a ficar com pena. Comecei a encomendar. Ainda fiz algumas encomendas na Leya, na Bertrand, na Fnac”, diz à Renascença.
Se os portugueses são todos como a professora de História e leram mais no ano passado, isso pelo menos não se refletiu nas vendas de livros. Em 2020, segundo dados da empresa de estudos de mercado GfK, foram vendidos 9,8 milhões de livros no país, menos 18% que em 2019.
O ano não foi fácil para o setor. Para Catarina, isso foi visível na Feira do Livro de Lisboa. “Achei muito mais fraca do que é normal. Havia muitos menos descontos. Andava louca para comprar alguns dos livros da Livros do Brasil e na hora H não estavam em promoção”, conta.
No final de junho do ano passado, impossibilitada de viajar, a professora de História tornou-se voluntária da Loja Social Dona Ajuda, no mercado do Rato, em Lisboa, onde pôde continuar a satisfazer o “vício de lidar com livros e comprá-los mais baratos”.
Em 2020, os portugueses gastaram 128,7 milhões de euros em livros, dos quais 33,6 milhões de euros em livros adquiridos em grandes superfícies de retalho alimentar. Aliás, a percentagem de venda livros em hipermercados cresceu para 26,1%, enquanto ano anterior havia sido de 23,7%.
A meta europeia com que Portugal se tinha comprometido era 10%, mas o resultado ainda foi melhor. No ano passado, apesar das condições adversas, da adaptação à telescola e outros entraves, a taxa de abandono escolar foi de 8,9%, o valor mais baixo que há registo. Em 2019, havia sido de 10,6%, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE).
Para Nuno Crato, ex-ministro da Educação e dirigente do projeto Iniciativa Educação, é mesmo possível que no futuro esta taxa chegue a um valor inferior a “1%”.
“Diria que o abandono escolar pode ser reduzido até valores muito pequenos. Até 1% ou até menos do que isso. Não há propriamente um limite. Nós todos gostaríamos que todos os jovens continuem os seus estudos, por isso, é possível ir ainda mais à frente nesse sentido”, diz à Renascença.
Questionado se a pandemia terá tido alguma influência na redução da taxa de abandono, o ex-governante disse para comentar esse cenário “era preciso termos estudos” sobre o tema. Mas deixou uma nota: “Claro que este ano é um ano atípico. E esperemos para ver o que passe nos próximos anos. E esperemos que o que se passe nos próximos anos seja uma continuação da descida.”
A taxa de abandono escolar mede a percentagem de jovens com idades entre os 18 e os 24 anos que chegam ao mercado de trabalho sem completar o ensino secundário ou que não estão a frequentar um programa de formação.
Trata-se um dado estatístico “importante porque dá-nos uma ideia do prosseguimento dos estudos. Depois, há outros também importantes que devem ser considerados, como o a qualidade do ensino. O que é que isto significa em termos de ensino. Nós aí temos as comparações internacionais”, explica Nuno Crato.
Na última década, a taxa de abandono escolar recuou 14 pontos percentuais.
Fechados em casa por culpa da Covid-19, foram muitos os portugueses que, em 2020, entraram, pela primeira vez, no universo dos jogos e apostas online. O relatório do Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos (SRIJ) relativo ao 3º trimestre de 2020 aponta nesse sentido: houve um aumento em 55,7% da receita gerada pelo jogo e apostas online face ao mesmo período de 2019.
Entre julho e setembro do ano passado, os portugueses gastaram cerca de 84,2 milhões de euros, mais 30,1 milhões por comparação ao período homólogo de 2019, e em 15,5 milhões em relação ao trimestre anterior.
“Em parte, o crescimento de receitas explica-se pelas restrições de acesso aos casinos físicos e também pela menor disponibilidade de acesso ao jogo territorial, como por exemplo as apostas desportivas em lojas físicas, em consequência das várias restrições impostas pela pandemia”, diz Gabino Oliveira, Presidente da Associação Portuguesa de Apostas e Jogos Online (APAJO), em declarações à Renascença. A somar à conjuntura pandémica, “foram emitidas quatro licenças em 2020 e cinco em 2019, o que também contribuiu para o crescimento do mercado.”
O mercado português de apostas e jogos online regulamentado encontra-se agora no quinto ano de atividade. No 4º trimestre de 2019, a receita aumentou cerca de 52% face ao período homólogo do ano anterior. O 3º trimestre de 2019 cresceu 45% em relação ao período homólogo de 2018; o 2º trimestre cerca de 30% em relação ao mesmo período e o 1º trimestre cerca de 44% também em relação ao homólogo de 2018.
No pós-pandemia, é esperado que a tendência de crescimento continue ainda “por algum tempo, em parte porque se verifica uma migração lenta, mas gradual de jogo ilícito para a oferta legal, e porque se prevê que mais operadores entrem no mercado”, diz Gabino Oliveira.
Neste momento, há no mercado 15 operadores licenciados no mercado que detêm 25 licenças, “e este número vai provavelmente ainda crescer”. “Como comparação: em Espanha temos cerca de 50 operadores, na Itália cerca de 70 operadores, em Suécia cerca de 70 operadores, e na Dinamarca cerca de 35 operadores”, conta.
Sara Karim e Filipe Veiga foram pais a meio de março de 2020, mesmo quando o primeiro embate da pandemia se estava a fazer sentir em Portugal. Os dois estavam longe de imaginar que Henrique, o filho, ia nascer para passar, grande parte do ano primeiro ano de vida, em casa. “A gravidez já é um stress e pelo menos não tive que passar por isto tudo grávida”, assume Sara.
Para a jovem mãe, “nunca há assim um momento perfeito” para ter um filho. E até foi bom, quando veio para casa da maternidade, estarem só os três numa “bolha”. “Toda gente se queixa imenso, quando há recém-nascidos, que toda a gente vem para tua casa e estás todo podre e queres é sossego”, conta.
O problema, contudo, foi “tudo o resto”. “Não é uma boa altura para criar filhos. Porque eles perdem imensa coisa. Perdem a socialização, andar na rua e nós estamos em stress. Quer queiras, quer não, tens mais stress”, diz.
Os avós de Henrique só o pegaram ao colo 15 dias depois de nascer. “Os primeiros meses foram mesmo, mesmo à distância. E custa. Não é assim o que imaginas o nascimento de um filho. Acho que foi bom termos tido sossego, mas era bom termos sido nós a decidir quanto sossegos queríamos. E não ‘é obrigatório estar sossegado’.”
Portugal apresentou em 2020 o maior saldo negativo(...)
Em 2020, cerca de 85.500 bebés nasceram em Portugal em 2020, o valor mais baixo desde 2015, ano em que foram realizados 85.056 “testes do pezinho”, segundo dados do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge. No ano passado foram estudados 85.456 recém-nascidos, menos 1908 bebés do que em 2019 (87.364), no âmbito Programa Nacional de Rastreio Neonatal, que cobre a quase totalidade dos nascimentos em Portugal.
Em declarações à Agência Lusa em janeiro, a demógrafa Maria João Valente Rosa afirmou ser “ainda prematuro tirar algumas ilações sobre o impacto direto que a pandemia teve nos nascimentos”, porque “grande parte das crianças que nasceram ao longo do ano de 2020 foram concebidas antes da pandemia de covid-19, em março”.
“O efeito vai ser, com certeza forte, em 2021”, comentou a professora universitária. Para já, resta esperar.
A 13 junho de 2020, dia de Santo António, Salvador e Margarida da Cunha casaram - à segunda tentativa. Porquê? Culpa da pandemia. “Nós íamos casar dia 25 de abril e aí nem sequer havia missas. Portanto, não podíamos casar. Adiámos. Depois, abriram as igrejas no dia 30 de maio e nós casámos duas semanas depois”, conta Margarida.
Para o jovem casal, a hipótese de adiar o casamento ainda esteve em cima da mesa, mas, no final, essa questão nunca teve “muita força”.
“Adiar um ano iria adiar o início da nossa vida a dois, da nossa família. E não queríamos, porque já temos 30 anos, não queríamos estar a viver separados um do outro. Não fazia sentido irmos viver um com o outro antes de casar”, explica Margarida. “E graças a Deus foi a decisão certa. Porque a incerteza de tudo continua.”
Paragem está a pôr em causa a sobrevivência de gra(...)
Entre janeiro e novembro do ano passado, foram registados em Portugal 17.356 casamentos, uma redução de quase 50% face ao ano inteiro de 2019 (33.272), de acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística.
Em 2018, foram 34.637; 33.634 em 2017; 32 399 em 2016; 32 393 em 2015; 31.478 em 2014; 31.998 em 2013; 34.423 em 2012; 36.035 em 2011.
A única variação significativa na última década ocorreu entre 2013 e 2015, período correspondente aos ditos anos da Troika. Ainda assim, a variação, por comparação com a de anos anteriores, foi mínima.
Ana Filipa Rebelo comprou uma casa “à pressa” em janeiro de 2020. Morava num T0, juntamente com o marido, Francisco, estava grávida de sete meses e precisava de “espaço”. “Adiámos sempre porque os preços das casas em Lisboa estavam a preços pornográficos. Adiámos, fomos adiando, mas depois teve que ser uma escolha um bocadinho precipitada impulsionada pela bebé”, conta.
Passado pouco mais de um ano do casal ter comprado casa, o setor imobiliário ainda continua sem dar mostras de os preços estarem a recuar. “Neste momento, será nossa intenção até mudar de casa. Mas não agora. Para já, porque ainda não se nota ainda grande alteração nos preços das casas”, diz.
A perceção de Ana não está errada. Apesar da pandemia, no ano passado, o Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção (IMPIC) recebeu notificação de mais 122 mil transações mediadas por imobiliárias; entre compra e arrendamento, totalizaram 28,2 mil milhões de euros, o dobro do ano anterior. Parte das transações (355) foram pagas em dinheiro vivo - mais concretamente 27,3 milhões de euros.
Dos 27,3 milhões de euros, 25,8 diziam respeito à compra de imóveis, sendo que os arrendamentos representam apenas uma pequena parte do valor (1,5 milhões de euros) recebido em dinheiro vivo. É de sublinhar: são mais 13 milhões de euros em notas que em igual período de 2019.
Questionada se espera no futuro vender a casa que comprou em Odivelas e ter lucro, Ana hesita. “Acho que vou conseguir vender ao preço que comprei. E se conseguir.” Tudo dependerá de como evoluir o mercado. Neste momento, é essa a incógnita.