19 fev, 2021
Tinha jurado não voltar ao tema, sobre o qual já levo vinte anos de escrita, mas talvez a repetição seja pedagógica. Não sei mais o que diga. O aborto gera discussões inflamadas. A eutanásia não mobiliza. Atrapalha. No fundo, nenhum de nós foi ouvido para nascer. Não nos pediram opinião. Decidiram por nós.
Podemos ser trissómicos, faltar-nos um braço ou uma perna, ser a causa da depressão pós-parto das nossas mães, ter nascido abaixo da linha da pobreza, mas estamos cá. Na eutanásia, não. Se a lei, já aprovada, acabar promulgada e entrar em vigor, pode atingir-nos a todos. Pode mudar tudo: ser chamados a ser parte activa ou passiva num processo, que nos vai fazer regredir alguns séculos de civilização.
A sociedade, que já não gosta de velhos, vai passar a oferecer-lhes uma arma preciosa para acabar com o sofrimento que tantas vezes lhe causa: passam a poder pedir para morrer rápida e docemente sempre que “quiserem”. Ou, melhor, passando a demagogia, quando a doença, a solidão, o sofrimento, o abandono, a dor (tudo coisas para as quais a família, a comunidade e o Estado deviam sentir-se obrigadas a fornecer remédio) se tornarem tão duras que se tornem “insuportáveis”.
Continuarão, assim, a não ter cuidados médicos atempados e nãos lhes conseguem prometer a saída das listas de espera, os cuidados de que necessitam e o apoio psicológico e social de que necessitem, mas, em contrapartida, haverá médicos e enfermeiros desviados para lhes injectar rapidamente o veneno letal. Basta restar-lhes paciência para cumprir com as burocracias.
A mesma sociedade que os trancou em casa, como pestíferos, em lares e hospitais, os privou da vida social e da família, dos pequenos prazeres de cada dia e da alegria para os “proteger” fornecerá, agora, remédio certo para a mágoa, a solidão e a depressão gerada. A falta de sentido para continuar a viver.
Por estranho que pareça, exactamente agora, quando a vida e a morte abrem os telejornais de todo o mundo, por cá a lei volta a estar em debate, caminhando para o Tribunal Constitucional para avaliação preventiva para onde a despachou, logo que chegou a Belém, o Presidente e constitucionalista, para satisfação de muitos e desconsolo de alguns, que gostariam de a ver já vetada politicamente.
No entretanto, pelo menos, a lei há-de melhorar um pouco, concretizar mais os critérios exigidos para que o pedido desesperado acabe por ser validade pelos “examinadores” da legitimidade da reivindicação com critérios menos subjectivos e algumas directrizes que possam ser avaliadas mais concretamente de forma a tranquilizar as consciências de quem é chamado a decidir se alguém “pode ou não” reivindicar o direito a ser morto e desresponsabilizando um pouco mais o Estado.
Uma sociedade incapaz de oferecer soluções mais bondosas para o sofrimento “extremo” e “intolerável”, prolongado e sem perspectiva de cura, passa a oferecer esta via rápida para lhe pôr fim: ou aguenta e suporta o que muitas vezes pode ser visto como uma indignidade ou pede para morrer e aí, já comodamente, morre, rodeado dos devidos cuidados “médicos”. Oferece-lhe assim o direito ao tiro de misericórdia.
Inteligentemente, o Professor não levanta a questão constitucionalmente fracturante: será que a nova lei viola ou não o direito à vida consagrado no texto constitucional? O mesmo que o texto fundamental não permite que seja desrespeitado nem em casos de “de pena de morte”. Daí, palpita-me que vem a pressa do Chega em alterar-lhe o texto. De uma cajadada, ficariam vários coelhos que saltitam no texto, arredados da liça, do tal texto que qualquer Presidente jura cumprir e fazer cumprir, mas não agradam ao ex-candidato André Ventura.
Marcelo opta por colocar o foco e a atenção do Tribunal Constitucional na necessidade de assegurar que o legislador não introduz incerteza “jurídica” e possa ser possível contemplar critérios objectivos para que se saiba quem pode ser abrangido pela nova legislação. Mas o Tribunal poderá acrescentar outras dúvidas às presidenciais. E só depois dessa avaliação Marcelo poderá fazer uso ou não da bomba atómica de um veto político. A última mas a pior forma de pôr fim à lei.
Acredito que a lei agora aprovada seja mais restritiva e de melhor bom senso do que todas as outras que estão em vigor nos poucos países europeus que a aprovaram. Mas todas começaram assim, para permitir com base na casuística e na emoção, gerada por casos raríssimos e verdadeiramente dramáticos como os de Ramon San Pedro, que quem se opunha parecesse sempre um monstro radical sem um mínimo de respeito pelas convicções alheias, um adepto da filosofia pretensamente redentora do sofrimento inútil. No mínimo uns tontos.
Na verdade esta argumentação esconde que a lei é sobretudo um sinal dado a uma sociedade como um todo. E está hoje à vista, na Holanda ou na Bélgica, como a eutanásia se tornou numa prática social perfeitamente aceitável quando não expectável em múltiplos casos, de extrema solidão. Provando que a sociedade europeia que vai tendo cada vez mais velhos curiosamente vá gostando cada vez menos deles. Escondendo-os em lares que não incomodam e olhando para o seu “descarte” da forma mais natural possível.
No nosso Sistema de Saúde não é assim e isso dá-nos esperança. Os médicos desdobram-se, exaustos para salvar todos os que podem e quando não podem salvar todos isso fica a moer-lhes os braços cansados ainda mais do que o normal, praguejando contra o sistema que os faz estudar anos a fio para salvar sempre e os mobiliza depois para uma guerra que sabem perdida na falta de meios, lançando-os às feras mergulhados no chamado “sofrimento ético”.
Leio numa entrevista a José Poças, director do Serviço de Infecciologia do Centro Hospitalar de Setúbal, uma história trágica. Um doente que, num sábado de madrugada , no pico da pandemia, depois de cinco dias “sentado na mesma cadeira” ,se lhe dirigiu a exigir alta. Queria ir para casa. Mesmo muito doente, reivindicava, o gozo dos seus plenos direitos de cidadão livre de 70 anos, a morrer. Preferia ir para casa a permanecer naquele inferno, “ um minuto mais” negligenciado, sem um mínimo de dignidade, e atenção.
O médico que acabara de entrar ao serviço foi forçado a dar-lhe alta, mas conseguiu depois o milagre, arranjou-lhe uma cama. E o senhor viveu ou morreu sem continuar sujeito aos maus tratos infligidos, sem culpa de ninguém, e para desgosto de todos, naqueles cinco dias.
Enquanto os médicos e enfermeiros , não podiam fazer nada. Mais nada. Porque eram tantos os pacientes sentados em cadeiras, naquela sala e nos corredores, que os braços tinham limites para tudo e as lágrimas eram engolidas na boca seca sufocadas pelas máscaras. É neste momento e com este contexto que as alminhas que regulam a espinha dorsal da nossa sociedade não tem coisa mais prioritária para legislar ,meios a afectar , em coisas mais urgentes para pôr fim à inacção dos últimos cinco anos do que avançar com uma fracturância, fora de prazo, desta vez a eutanásia. Mais um atraso de vida quando o que se lhe exigia era que se empenhassem em atrasar e evitar a morte.