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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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23F: o dia da encruzilhada espanhola

17 fev, 2021 • Opinião de José Miguel Sardica


A 23 de fevereiro de 1981, o curso político da jovem transição espanhola para a democracia (e para a Europa) poderia ter mudado. A versão oficial é que não mudou. Mas terá sido mesmo assim?

Escolhido por Franco para lhe herdar o poder, Juan Carlos I repudiou a continuidade e, desaparecido o Caudilho, em 1975, optou pelo caminho da transição democrática, substituindo o governo de Arias Navarro pelo de Adolfo Suárez. A nova Espanha aprendeu a apreciar aquele monarca jovem e dinâmico, mas os anos seguintes foram difíceis. Os militares, ainda muito franquistas, nunca perdoaram ao rei a entrega do Saara Ocidental a Marrocos, nem ao governo de Suárez a legalização do PCE. Nas vésperas da aprovação da Constituição, em 1978, a frustrada Operação Galáxia revelou a tentação golpista das velhas forças armadas.

Na frente civil, Suárez e o rei foram responsabilizados pela tremenda crise social que assolou a Espanha e pela mão (demasiado) branda com que deixaram campear o terrorismo da ETA Basca. Suárez chegou ao fim da linha em janeiro de 1981. O seu sucessor, Leopoldo Calvo Sotelo, escolhido pelo partido do governo, a UCD, precisava de ser ratificado nas Cortes. Na tarde do dia da votação decisiva, 23 de fevereiro, o tenente da Guarda Civil Antonio Tejero invadiu o Congresso dos Deputados e, a tiros, obrigou todos os presentes (Adolfo Suárez e Santiago Carrillo não obedeceram) a esconderem-se debaixo das carteiras do hemiciclo. Como depois se escreveria, Tejero era um romântico do franquismo, um ultra “direitista” desejoso de liquidar o governo civil fraco e de devolver o poder às garbosas e autoritárias forças armadas de Espanha.

O enredo do golpe era, todavia, mais complexo. O plano seria fazer saltar para as ruas as divisões militares territoriais espanholas, mas apenas a III, da região de Valência, se sublevou, liderada por Jaime Milans del Bosch. Uma tal rede conspirativa supunha cabecilhas de topo e os acontecimentos daquela tarde e noite de dia 23 destaparam a cumplicidade de Alfonso Armada, um veterano da Divisão Azul franquista, membro do Estado-Maior e próximo de Juan Carlos – o que contribuiu para as teorias de que o monarca estaria a par do golpe, querendo um governo de salvação nacional, feito de tecnocratas, para sanear a crise económico-social, cortar o passo à ETA e ultrapassar a dissolução visível da UCD. Mas quando Alfonso Armada foi ao Congresso comunicar a Tejero o possível elenco ministerial que se propunha liderar, o tenente rebelde não o aceitou e os golpistas desentenderam-se. Tudo ruiu. E Juan Carlos, depois de horas tensas ao telefone, ocupadas a garantir a lealdade das restantes divisões militares espanholas, foi, já de madrugada, à TVE, para um discurso em que condenava os insurretos, invocava a Constituição e chamava a si a reposição da legalidade.

A história do 23F nunca foi completamente desvendada e subsistem pormenores obscuros.

Oficialmente, foi naquela noite que o rei ganhou de facto a Coroa que os neofranquistas lhe quiseram tirar ou condicionar. E se a Espanha não mudou no sentido desejado pelos insurretos – mudou noutro, porque a verdade é que o susto do golpismo militar ajudou a moderar a temperatura das lutas partidárias, sociais e económicas que envenenavam a transição espanhola. No fundo, terá sido talvez uma crise, ou uma dor de crescimento, numa rota até aí difícil, mas que depois do 23F acelerou no bom sentido: a tentação militarista sumiu-se, a economia e o emprego melhoraram, o futuro câmbio governamental de Calvo Sotelo para Felipe González foi pacífico, e a Espanha entrou na NATO, em 1982, e na CEE (com Portugal), em 1986.

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  • Anónimo
    20 fev, 2021 Lisboa 18:25
    O autogolpe patrocinado pelo rei corrupto e adúltero, herdeiro de Franco, para se manter no poder quando muitos espanhóis preferiam uma república (que nunca foi referendada apesar de o regime democrático anterior ao genocida Franco ser republicano). Não me enganam nem a mim nem a muitos espanhóis.