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Reportagem Covid-19

Sem-abrigo. A cidade fechou-se em casa e eles ficaram (quase) sem ninguém para os ajudar

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Sem-abrigo. A cidade fechou-se em casa e eles ficaram (quase) sem ninguém para os ajudar

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09 abr, 2020 - 06:45 • André Rodrigues

Se dantes o Centro de Apoio aos Sem Abrigo (CASA) servia entre 100 e 150 refeições diárias no Porto, "agora ultrapassa as 400". E são menos os voluntários disponíveis para ajudar em plena pandemia de Covid-19. Ricardo, que perdeu o trabalho e está prestes a perder a casa, põe os olhos no futuro: "Quando isto acabar, venho todas as noites cortar o cabelo a quem precisar."

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O relógio da Câmara do Porto marca as 20h00, ainda é possível ver a luz do dia que foge para a noite. Na fila já se contam 30, 40, 50 pessoas que não têm casa ou que vivem num quarto.

O dinheiro não chega para comprar comida e num quarto alugado não há como cozinhar refeições. A rua é a única saída.

Os minutos passam, as carrinhas só chegam às 20h30. A ansiedade aumenta, a fila cresce, todos querem chegar primeiro.

A vida na rua é um teste permanente à sobrevivência. Quem não faz pela vida arrisca-se a passar fome. A fila não tem regras. "Não vale passar à frente", é a frase mais simpática dirigida a quem tenta furar a ordem.

Por esta altura, a fila já chega à estação dos CTT da Avenida dos Aliados. Até que, enfim, chegam as carrinhas do Centro de Apoio aos Sem-Abrigo (CASA).

Nuno Olaio coordena a equipa do CASA e dá a voz de comando: "Por favor, mantenham a distância de dois metros uns para os outros." Uns seguem a sugestão à risca, outros ignoram-na e não escondem o enfado.

O antes e o depois da Covid-19

Nesta noite de frio e chuva, cinco voluntários do CASA distribuem cobertores, meias e, claro, a tão esperada refeição quente.

"Conhecemos as pessoas, definimos como é que tem de ser dado o jantar e pedimos às pessoas para se afastarem", explica à Renascença Nuno Olaio, que conhece de cor os rostos que se apinham na fila, os rostos que procuram na rua o conforto que não encontram em mais lado nenhum.

A esses, juntaram-se muitos mais. Há definitivamente um antes e um depois da Covid-19. Se dantes o CASA servia entre 100 e 150 refeições diárias, "agora ultrapassa as 400". E na linha da frente não há risco zero.

Ao mesmo tempo que oferecem comida e agasalhos, os voluntários procuram, também, sensibilizar para o perigo.

"No início, não havia condições e as pessoas estavam muito juntas, porque não se apercebiam do que estava a acontecer", explica Nuno Olaio. "Nestas duas últimas semanas, passámos a distribuir folhetos informativos juntamente com a refeição, para que as pessoas estejam cientes dos perigos que correm com este coronavírus."

O risco zero não existe mas, para a equipa de voluntários, a presença nas ruas é fundamental, "porque só assim faz sentido, estando perto das pessoas".

"O risco que corremos é controlado, usamos máscaras e viseiras, mas não concebemos o apoio ao outro sem vir para a rua, sem dar a refeição quente, porque sabemos que há dezenas e dezenas de pessoas da cidade do Porto que têm fome".

De acordo com o mais recente levantamento da Câmara do Porto, a cidade terá, aproximadamente, 600 pessoas em situação de sem-abrigo. A maioria vive em albergues temporários, mas haverá, pelo menos, 140 que continuam a dormir na rua.

Teresa é uma das caras habituais nesta fila de apoio. Tem 52 anos, mas as marcas de uma vida de pobreza sugerem uma idade mais avançada.

Todas as noites, Teresa segue a rota das carrinhas de apoio às pessoas que, como ela, não têm abrigo. Desta vez, é na Avenida dos Aliados. É a busca pela sobrevivência que se tornou um hábito "há muitos anos", partilha com a Renascença.

Teresa está desempregada há tanto tempo que nem se lembra e o Rendimento Social de Inserção é o único dinheiro que recebe.

A rua é a casa comum de quem sai à procura de uma refeição quente, em muitos casos, a única refeição quente do dia.

Agora, a ameaça do novo coronavírus agrava o sentimento de insegurança de quem não tem comida nem um teto para dormir.

"Há muitos barulhos e os voluntários fecham as carrinhas", porque há os que "não respeitam as distâncias, parece que têm aquela ânsia de chegar primeiro", explica Teresa, antes de garantir: "Eu não, eu vou na minha vez."

E se, quando chegar a sua vez, já não houver comida para distribuir? "Olhe, paciência, vou-me embora e tenho de me remediar com as latas de atum que ainda tenho", responde.

Menos voluntários para muitos mais pedidos de ajuda

Enquanto o número de pedidos de ajuda cresce, o número de voluntários no terreno segue o caminho inverso.

Nuno Olaio explica que o CASA tem "mais de 400 voluntários", mas por haver gente que pertence aos grupos de risco, ou por contextos familiares que não lhes permitem vir para a rua, a associação viu-se "forçada a reduzir" o número de operacionais nas rondas.

Normalmente, uma equipa é composta por 20 voluntários. "Hoje estamos aqui só cinco, com a ajuda de uma pessoa ex-sem-abrigo que nos tem dado uma grande ajuda".

Chama-se João e tem 52 anos. "Eu é que tenho de lhes agradecer tudo o que fizeram por mim, por isso a minha obrigação é estar aqui a ajudá-los a ajudar, tal como eles me ajudaram a mim", diz à Renascença.

João tem um passado de rua, depois de a doença do pai ter forçado o encerramento do café da família. "Foram os anos mais difíceis da minha vida", confessa.

Nessa altura, as rondas de apoio aos sem-abrigo eram mais frequentes. No último mês, a cidade fechou-se em casa, os turistas desapareceram, a solidariedade diluiu-se. Nas ruas praticamente desertas ficaram as pessoas em situação de sem-abrigo.

"Dantes, ainda tínhamos o jantar de terça-feira à noite e havia distribuições aqui, na Boavista, em todo o lado... Depois veio isto do vírus e estragou tudo".

A pandemia apanhou todos de surpresa. Ricardo chegou do Brasil há pouco tempo para trabalhar como barbeiro. Começou a trabalhar assim que chegou a Portugal, "mas, passada uma semana, fechou tudo".

O saco que leva para casa tem pão, fruta e uma refeição quente. "Eu como pouco e isso ajuda-me a gerir a comida que tenho até ao dia seguinte, o frio também ajuda a não ter fome", confessa à Renascença.

O problema é que, com o trabalho suspenso, este jovem barbeiro não recebe para comer, nem para pagar alojamento.

"Estou a viver num quarto, mas vou ter de o entregar esta semana, porque já não tenho dinheiro para a renda." E para onde planeia ir? "Tenho um colega que me está a ajudar a encontrar uma solução num albergue, para ver se consigo ter onde dormir."

No meio de toda a dificuldade, o que Ricardo sabe é que o regresso ao Brasil "está fora de questão". Ricardo só quer que tudo volte ao normal, quando puder ser.

Nesse dia, fica a promessa de devolver a generosidade com que o ajudaram. "Sou barbeiro e já combinei com o pessoal que, quando isto acabar, venho todas as noites cortar o cabelo a quem precisar."

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