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Covid-19

Passaportes de imunidade. Chave para o regresso ao normal ou mais dores de cabeça Covid?

08 fev, 2021 - 23:00 • Filipe d'Avillez

A discussão sobre a criação de documentos que comprovam a imunidade ou se o portador foi vacinado está aí. Mas há dimensões éticas e jurídicas que é preciso ter em conta. A Renascença explica-lhe o que está em causa.

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São já vários os países que discutem a possibilidade de se criar um passaporte de imunidade Covid-19 que possa permitir a algumas pessoas regressar à dita vida normal e viajar, aceder a certos espaços e eventos e evitar quarentenas ou confinamentos, mas há questões éticas e jurídicas complexas a considerar.

O princípio é bastante simples. O documento incluiria a informação sobre o estado de imunidade da pessoa, seja porque foi vacinada, seja porque já esteve infetada e tem um grau de imunidade comprovada. Embora sejam, por vezes, descritos como “passaportes de vacina”, a verdade é que a informação sobre a vacinação é apenas um aspeto entre vários e o importante é aferir a imunidade do portador.

Países como a Alemanha, Dinamarca, Suécia, Reino Unido e Chile, entre outros, já estão a explorar a ideia e há várias empresas de tecnologia a trabalhar na criação de soluções nesse sentido. Para Ana Sofia Carvalho, pode ser uma solução para o regresso à normalidade, mas a discussão é prematura.

“Obviamente que isso pode ser uma solução muito interessante no sentido de nos permitir de alguma forma voltar ao normal, ou de parte da população conseguir voltar ao normal. O que acontece com a imunidade é que nós temos, neste momento, muitas dúvidas científicas, ou seja, não se sabe nem qual é o grau, nem o tipo de imunidade adquirida, e aqui estamos a falar não só das pessoas que já foram vacinadas, mas também daquelas que apanharam a doença, ou seja, não sabemos se aquilo só vai atenuar sintomas graves, se vai prevenir o aparecimento de sintomas, se vai prevenir a infeção subsequente, se realmente previne a transmissão. E mesmo relativamente aos vacinados, não se sabe quanto tempo é que aquela imunidade dura”, diz à Renascença a professora do Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa.

Não obstante, para esta especialista há uma dimensão ética indiscutível e que vai no sentido de se aceitarem os passaportes. “Do ponto de vista ético é sustentável que, se se provar verdadeiramente que as pessoas têm um grau de imunidade e que não transmitem a infeção, não é legítimo mantê-las em confinamento”, diz.

“Porque nós sabemos que o confinamento põe em causa um conjunto de princípios éticos, como por exemplo a autonomia e a liberdade, e outras garantias que estão constitucionalmente protegidas. Portanto, sabendo, e tendo dados fiáveis de que essas pessoas realmente não só não ficam doentes como não transmitem a doença, é complicado do ponto de vista ético e jurídico mantê-las em casa.”

Ana Sofia Carvalho defende que, se o objetivo é apenas registar a vacinação, então é curto, pois tendo em conta os planos de vacinação na Europa o desejo de relançar a economia não seria conseguido, uma vez que se está a dar prioridade a profissionais de saúde e a pessoas mais vulneráveis, nomeadamente os idosos.

Já o registo da imunidade conseguida por outros meios, sobretudo por infeção e recuperação, apresenta outras preocupações éticas. “Uma das grandes críticas relativamente ao passaporte da imunidade é de as pessoas de alguma forma poderem querer apanhar a doença só para ter direito ao passaporte, ou mesmo, em situações mais precárias, serem coagidas a ficar doentes.”

Dados lançados

As questões sobre o passaporte de vacina ou de imunidade levantam ainda questões jurídicas, nomeadamente ao nível da proteção de dados.

Helena Tapp Barroso, advogada do escritório Morais Leitão e especialista em proteção de dados, recorda que “qualquer operação ou atividade que implique conhecer dados, conservar os dados, tratá-los, usá-los, compará-los, é uma operação de tratamento de dados pessoais e para que isso possa ser feito é necessário que haja um fundamento legítimo”.

Dentro deste âmbito os dados relativos à saúde gozam de uma proteção especial. “O princípio relativamente a dados de saúde é de que o seu tratamento só é admissível se estiverem reunidas certas exceções que estão previstas no regulamento, que permitem esse tratamento, o acesso e conhecimento. Temos uma regulamentação muito mais apertada no que diz respeito à possibilidade de esses dados serem usados.”

“Estes passaportes na verdade não têm uma finalidade de interesse público no domínio da saúde pública. Os interesses subjacentes à emissão deste tipo de informação são muito mais interesses económicos, interesses que permitam a circulação. Portanto independentemente de serem interesses relevantes, quanto muito penso que poderíamos ter uma situação de motivos de interesse público”, acrescenta.

Para Portugal o enquadramento jurídico é o do Regime Geral de Proteção de Dados, que é legislação europeia, mas a jurista sublinha que isso não implica que os países da União tenham de agir como um só neste domínio. “Aquilo que estamos a ver na União Europeia é precisamente o contrário disso. De facto, alguns países, por exemplo a Dinamarca e a Suécia, já estão a avançar no sentido de criar mecanismos de passaporte de vacinação.”

Aplica-se, diz, a mesma lógica em relação à atual exigência de testes negativos para se poder aceder a um país. “O facto de haver uma regulamentação na UE que é comum aos países da UE, não significa que isto tenha de ser uma decisão única. Talvez seja desejável que assim seja, e de facto a discussão que está a ser feita – até ao nível da Comissão Europeia – é uma discussão comum, mas os países estão a diferentes velocidades. Alguns estão mais renitentes, outros não.”

Uma das questões importantes a ter em conta é o suporte desse eventual passaporte e aí há vantagens e desvantagens. Se, por um lado, ter o documento em papel evitaria a concentração de informação e dados pessoais em grandes bases centralizadas onde possam existir abusos, por outro tudo, parece encaminhado para uma solução tecnológica, onde os próprios laboratórios, por exemplo, possam inserir resultados de testes e dados sobre vacinação.

“Uma solução de informação descentralizada e o mais possível no poder daquele a quem a informação diz respeito, é claramente uma solução menos intrusiva em termos de privacidade do que qualquer solução em que essa informação esteja centralizada numa base a que acedam autoridades públicas ou outras entidades, como por exemplo as que gerem o trânsito em viagem. Isso é evidente. Agora, é preciso não esquecer que as soluções digitais são soluções que, em termos de fiabilidade de informação, podem ser muito mais eficientes”, diz Helena Tapp Barroso

Enquanto se discutem os prós e contras da questão a sociedade civil vai procurando as suas próprias soluções. São várias as famílias que, numa altura em que se veem obrigadas a ficar confinadas, em teletrabalho e sem capacidade para acompanhar filhos menores, recorrem a ajudas externas, contratando jovens “babysitters” que já tenham tido Covid e que, por isso, têm menos probabilidade de infetar ou serem infetados.

“Quando a Cidade Universitária estava a recrutar miúdos voluntários para ajudar nas refeições para um dos hospitais de campanha, um dos critérios de inclusão era exatamente miúdos que já tinham tido a doença. Não só estão mais protegidos, como protegem mais as outras pessoas que estão lá. No fundo é um passaporte de imunidade informal. E faz sentido que isso ocorra”, diz Ana Sofia Carvalho, professora do Instituo de Bioética da Católica.

[Notícia corrigida no dia 10 de fevereiro para corrigir erro no apelido de Helena Tapp Barroso]

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