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Alfredo Teixeira

Covid criou “deserto de relações comunitárias”. Comunidades religiosas vão ter que “cuidar e repensar” o futuro

05 fev, 2021 - 14:55 • Rosário Silva

No dia em que arranca, em Lisboa, o colóquio anual da Rede de Investigadores “Religião nas Múltiplas Modernidades”, a Renascença conversa com o antropólogo e investigador da Universidade Católica, Alfredo Teixeira, um dos coordenadores do evento.

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Em tempo de pandemia, o estudo do fenómeno religioso no contexto das “múltiplas modernidades” vai voltar a juntar investigadores de diversas áreas e proveniências. Esta sexta-feira marca o arranque do colóquio anual da Rede de Investigadores “Religião nas Múltiplas Modernidades” (ReliMM).

São quatro sessões (dias 5, 12, 19 e 26 de fevereiro) onde, através da plataforma Zoom, vão apresentar-se “as mais recentes trajetórias de pesquisa” nesta área de investigação.

“Religião nas Múltiplas Modernidades” é o mote deste encontro que acontece desde 2015. É também o ponto de partida para a conversa com o antropólogo e investigador da Universidade Católica, Alfredo Teixeira, um dos coordenadores do evento.

Está a começar mais uma edição do colóquio “Religião e Múltiplas Modernidades”. Afinal, o que podemos entender por “Religião e Múltiplas Modernidades”?

Bem, antes de mais, dizer que esta iniciativa dá continuidade a um projeto que nasceu em 2015, quando um pequeno núcleo de investigadores, onde eu próprio me incluo, sentiu necessidade de começar a construir uma comunidade de estudos de religião neste contexto, já que em Portugal as pessoas que se dedicam ao estudo da religião e das religiões, subsistem, por vezes, numa certa marginalidade nas suas instituições. Falo em marginalidade, essencialmente, porque são poucos e com poucos recursos dedicados a este tipo de investigação.

Esta rede foi-se alargando e passou a envolver os próprios centros de investigação a que pertencemos. Agora somos, de facto, uma comunidade mais alargada, que pretende, em cada ano, reunir resultados de investigação, em curso ou já concluída, fazendo uma grande mostra sobre religião em Portugal, pondo os investigadores em contacto, abrindo a discussão e o diálogo.

E “as múltiplas modernidades” é, digamos, o ponto de ligação?

“Múltiplas modernidades” é aquilo que acaba por ser o elo entre os investigadores que trabalham a partir de diferentes disciplinas, deste a Teologia à História, à Antropologia, à Sociologia, Estudos de Cultura.

Neste evento científico, normalmente, trazemos trajetórias de investigação que podem incluir um arco temporal, que liga o nosso presente a uma transformação de médio curso, em particular desde o século XIX. Depois, também, em termos de espaço, estamos muito atentos à investigação que se desenvolve num domínio que hoje é muito importante, que é o domínio transnacional, pois grande parte dos fluxos religiosos, das transformações religiosas nas sociedades, são uma consequência, em muitos casos, dos fluxos humanos. Esta realidade, de uma modernidade móvel, constituída por trânsitos, fluxos de pessoas, é uma realidade que, de forma geral, os investigadores que participam nesta rede, privilegiam.

O colóquio prevê várias sessões, distribuídas pelo mês de fevereiro. Não temos tempo para falar sobre cada uma delas, mas, em traços gerais, pode dar-nos exemplos de alguns dos temas propostos para reflexão?

Sim, são quatro semanas, são quatro tardes de sexta-feira do mês de fevereiro, em que nos vamos juntar a partir de uma pluralidade temática bastante grande. Eu diria que, por um lado, temos um enfoque mais historiográfico onde, em particular, o campo católico vai ser objeto de estudo, desde o escutismo aos movimentos de missionação, à própria caracterização do episcopado em alguns momentos históricos da sociedade portuguesa, mas também intervenções que, eu diria, se dirigem mais ao interior do próprio fenómeno religioso, em torno do corpo, das poéticas, das espiritualidades, a questão do fado, abordagens mais literárias, as espiritualidades não religiosas muito presentes na literatura contemporânea, mas também uma atenção “ao religioso a fazer-se”, ao religioso que exprime nos misticismos, nas devoções, rituais, em religiosidades populares quer em Portugal, quer no Brasil. Por exemplo, vamos dar atenção a algumas práticas que atualmente são desenvolvidas em torno da estátua de Sousa Martins, em Lisboa, por novos praticantes.

E também um olhar mais alargado e diversificado...

Vamos olhar, também, para alguns fenómenos de grande impacto no campo religioso, numa escala mais global, como por exemplo, uma análise comparada das viagens de Bento XVI e do Papa Francisco ou um estudo sobre as representações que os professores de Educação Moral e Religiosa Católica têm em Portugal, acerca dos programas de ensino no âmbito dos quais trabalham.

São temáticas bastante diversificadas que poderão suscitar o interesse de diversos públicos, desde os investigadores, ou a iniciar-se ou os mais experimentados, desde as pessoas que trabalham na área da intervenção social e da gestão dos territórios em Portugal, onde a diversidade religiosa se tornou, de facto, um aspeto importante. Também as pessoas que trabalham na comunicação, já que a religião se tornou, na agenda da nossa atualidade um fator muito importante.

É um colóquio científico, em todo o caso, mas com uma linguagem e um modelo de organização que não se dirige, apenas, às pessoas que praticam a ciência. Ele é também um evento de disseminação do conhecimento e, portanto, de abertura desse conhecimento a todos aqueles que poderão, nas suas práticas, pôr em ação este conhecimento que está a ser construído.

Este diálogo, esta reflexão entre investigadores, os trabalhos e os estudos que são partilhados, toda a informação que é gerada; tudo isto faz do fenómeno religioso um tema inesgotável?

Sim, é verdade, mas, sobretudo, bastante complexo, pois de alguma forma, a paisagem do religioso alterou-se muito significativamente no quadro destas tais “múltiplas modernidades”. No fundo, estávamos a ver a religião muito estável, quase como um Atlas, onde, por cores, podíamos distribuir as identidades religiosas, e hoje temos que sobrepor grande parte dessas cores. Ou seja, os espaços onde vivemos tornaram-se espaços de grande transformação, desse ponto de vista. E, é interessante observar que, mesmo em alguns contextos, como o contexto europeu, possa diminuir o número de pessoas que, por exemplo, se compreendem como pessoas religiosas, em todo o caso, não diminuiu o interesse pelo fator religião, e os estudos têm mostrado isso mesmo. Por vezes, uma certa diminuição nas práticas religiosas e de adesão comunitária ao religioso, não traz como consequência, necessariamente, o desinteresse pelas questões religiosas na nossa sociedade, pelo contrário; temos contextos onde há, claramente, um maior interesse, mesmo do ponto de vista comunicativo, por estes assuntos.

Estando o fenómeno da religião no epicentro do encontro, na sua opinião, qual é o papel ou que papel tem a religião num contexto como aquele que se vive?

Eu diria que a religião viverá, porventura, neste contexto, uma realidade um pouco paradoxal. Por um lado, a religião vivida é uma experiência que tem uma forte relação com a vulnerabilidade que as pessoas, em diversos contextos de vida, podem viver. A religião sempre teve uma forte relação com a nossa experiência de vulnerabilidade. Neste sentido, eu diria que a significação religiosa da vida, as práticas mais de natureza individual, podem até, nestas ocasiões, ter um certo incremento. No entanto, há uma dimensão muito importante na experiência religiosa que é, de facto, a sua dimensão comunitária que, penso, foi extraordinariamente afetada. E ainda não estamos, sequer, em condições de perceber qual o alcance desta transformação ou deste impacto.

A religião é sempre um lugar de vinculação, mas, neste contexto, a realidade será outra

Como outras dimensões da nossa experiência que são fortemente comunitárias, no campo religioso vive-se também de uma relação que se estabelece com os outros e essa relação, em muitos casos, necessita de proximidade, do face a face, não sendo facilmente transferível, pelo menos parte delas, para um ambiente digital. Neste ponto de vista, creio que a religião, no contexto de pandemia, acaba por ser, por um lado, um lugar de esperança, de vinculação (todos nos recordaremos do eco global do momento solitário de oração protagonizado pelo Papa Francisco durante a primeira vaga desta pandemia na Europa), mas, em todo o caso, diria que isso não compensa um certo deserto de relações comunitárias que, de alguma forma, se instalou, e que deixará algumas marcas, não necessariamente irreversíveis, mas marcas que as comunidades religiosas, no futuro, irão ter que repensar e cuidar, de alguma maneira.

De facto, muitas transformações em pouco tempo, também no campo religioso. Do ponto de vista cultural, dos comportamentos, considera que podemos estar perante uma nova visão do mundo, da modernidade?

A pandemia trouxe-nos alguma coisa de crítico que nós sempre vivemos. A história humana está marcada por pandemias e por crises epidemiológicas que deixaram sempre marcas nas sociedades. Esta tem a singularidade de corresponder à própria cultura que vivemos. A pandemia é o que é, porque nós somos o que somos. Nós somos uma realidade extremamente globalizada, onde os fluxos acontecem com uma enorme rapidez e o vírus aproveita-se disso mesmo. Como ele vive dessa necessidade de ter hospedeiros, obviamente, num contexto cultural como aquele que vivemos, uma pandemia adquire uma escala que nunca tínhamos conhecido. Nesse sentido, eu diria que, sob o ponto de vista cultural, ela pode vir a ter mais impacto do que outras crises pandémicas do nosso passado histórico. Mas também há muitas experiências, como a própria História nos mostra, que traduzem uma determinada suspensão, ou seja, há um conjunto de coisas, um certo estilo de padrões de vida que irão regressar o mais rapidamente possível, na medida em que esta pandemia for estando controlada.

Depois da pandemia, o mundo será diferente?

Há muita realidade que nós estamos a viver, uma espécie de situação de intervalo, de suspensão. Agora, penso que, sob o ponto de vista das sociedades, seria muito interessante, de facto, aproveitar este momento para, em muitas dimensões da nossa vida, projetar uma cultura diferente, e nesse sentido a pandemia pode ter uma certa energia utópica, que possa transformar as sociedades. De qualquer forma, isso não é adquirido. Não é por termos a pandemia que, necessariamente, muitos dos nossos comportamentos irão transformar-se a seguir. É preciso mais alguma coisa para que isso aconteça.

Na organização do colóquio anual da Rede de Investigadores “Religião nas Múltiplas Modernidades” estão o Centro de Estudos de História Religiosa e do Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião, ambos da Universidade Católica, o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, o Centro em Rede de Investigação em Antropologia, o Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa, assim como o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.

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