Tempo
|
Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
A+ / A-

Nem ateu nem fariseu

A cronologia de uma tragédia silenciada

05 fev, 2021 • Opinião de Henrique Raposo


Estamos em 2021 e ainda não sabemos de onde vem o excesso de mortalidade não covid. Coração? Oncologia? Nefrologia? Solidão absoluta e abandono provocado pelo #ficaremcasa?

2020 foi só o início desta catástrofe provocada por um governo incompetente na gestão e fanático na ideologia. Esta tragédia, o excesso de mortalidade não covid, é uma bola de neve que não parará em 2021. Continuaremos a viver com estes mortos não covid em excesso mesmo depois de finalizarmos o processo de vacinação contra a covid, mesmo depois do fim da pandemia propriamente dita, mesmo depois de atingirmos uma relativa imunidade de grupo contra o sars-cov-02. É bom que se faça a história desta tragédia, a grande tragédia portuguesa do tempo da pandemia. Na maioria dos países europeus, o excesso de mortalidade de 2020 é quase por inteiro a mortalidade covid. É em Portugal (e depois em Espanha e Itália) que vamos encontrar uma enorme separação entre o número de mortos por covid e o excesso total de mortalidade.

Comparem: o excesso de mortalidade da Suécia em 2020 rondou os 8.300 óbitos a mais do que seria normal; cerca de 8.250 dessas pessoas morreram de covid. A Suécia (e a Bélgica e tantos outros países) não esqueceram o resto da medicina. Em Portugal, o nosso excesso de mortalidade em 2020 rondou os 12 mil e a covid só explica seis mil. Percebem a diferença?

Tudo começou em Abril. Os números começaram a aparecer aqui nesta rádio: o excesso de mortalidade não era explicado apenas pela covid; aliás, a maioria dos mortos em excesso não era covid. Para terem uma ideia, o excesso de mortalidade máximo do ano passado foi atingido em Julho, não em Março ou Abril. Em Julho atingimos um pico de 44% de mortos a mais, sendo que a covid só explica 5% da mortalidade de Julho. De resto, o excesso de mortalidade de todo o verão supera por larga margem o excesso de mortalidade da primeira vaga covid. O máximo dessa primeira onda covid foi de 24% (12 de Abril). O outono, sem grandes vagas covid, também tem picos altíssimos de mortalidade. Desta forma, nós atingimos um ponto, à entrada do inverno, em que o excesso de mortalidade era 75% não covid. Dezembro equilibrou as contas.

Reparem, por favor, que não estou a falar do excesso de mortalidade deste Janeiro infernal, mas do acumulado desde Março. Se no verão e no outono não tivemos ondas covid, se os hospitais não foram abalroados pela covid durante este largo período, porque é que tivemos 6 mil mortos em excesso nas outras doenças? Porquê? Como?

O que fez o governo em relação a estes mortos? Nada. Quis escondê-los. Começou por recusar encarar estes números, que não podia ser! Que era preciso estudar! Que não tenham esses estudos! Porquê? Porque o governo quis aproveitar a ideia do “milagre português” e da “resiliência do SNS”. Como salientou Alexandre Lourenço, presidente da Associação dos Administradores Hospitalares, nunca houve milagre português, porque o governo nunca teve um discurso e uma política para os não covid, nunca teve políticas (acordos com privados e misericórdias) e nunca teve um discurso que libertasse as pessoas do medo de ir ao hospital. Ainda há dias, a Renascença deu a conhecer uma realidade dramática: os doentes renais crónicos recebem telefonemas dos médicos, mas são os próprios doentes em risco de vida (devido ao colapso iminente dos rins) que recusam ir ao hospital por causa do pavor criado pela covid. Esta é uma realidade surreal que tem de ter uma resposta política, mas essa resposta não aparece.

Em 2020, não se fizeram 1 milhão de consultas, 120 mil mulheres não fizeram o rastreio do cancro da mama, 100 mil mulheres não fizeram o rastreio do cancro do colo do útero. Mais de 100 mil cirurgias foram adiadas. Já estão aqui alguns milhares de mortos no futuro próximo, porque o atraso no diagnóstico será fatal. Perante este colapso do SNS, porque é que a ministra não agendou com os privados e com o sector social todas estas atividades médicas? Porquê? Por ódio ideológico em relação aos privados? Só pode ser. É a única explicação que encontro. Aliás, quando os números da mortalidade não covid começaram a ser demasiado preocupantes, os bastonários dos médicos (o actual e os anteriores) escreveram uma carta à ministra, alertando para a necessidade de desenvolvermos uma abordagem mais holística da saúde, pois não se podia continuar a esquecer os outros doentes. Qual foi a inconcebível ministra saúde? Rasgou as vestes e acusou os bastonários de pressão em favor dos privados. “Porque nos estão a empurrar?”, perguntou a ministra, dando a entender que os bastonários só estavam a fazer o jogo financeiro dos privados. Nesta altura (Outubro), era claríssimo que o excesso de mortalidade de 2020 era - por larga margem - provocada por doenças não covid.

Estamos em 2021 e ainda não sabemos de onde vem o excesso de mortalidade não covid. Coração? Oncologia? Nefrologia? Solidão absoluta e abandono provocado pelo #ficaremcasa? Temos de conhecer esta realidade em pormenor para montar um plano para 2021, porque esta tragédia não se pode repetir nesta escala.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

  • Maria Oliveira
    09 fev, 2021 Lisboa 18:40
    Como vem sendo habitual neste (des)Governo, não pensaram, planearam, organizaram o sistema de saúde (TODO). Deveriam ter contratado com os hospitais privados e sociais a assistência a doentes não Covid desde o início. Há, na verdade, um excesso de mortalidade não Covid por falta de assistência. Infelizmente, muitos de nós têm familiares e amigos próximos que foram vítimas desta situação. É necessário narrar factualmente esta tragédia para que as responsabilidades sejam apuradas. É chocante a costumeira propaganda do (des)Governo e o ar anafado e risonho do que exerce de 1.º ministro. Devíamos estar todos de luto.
  • Ivo Pestana
    05 fev, 2021 RAM 16:54
    Para mim vem do medo e da organização do SNS. Medo em ir ao médico por causa da Covid-19 e organização do svc de saúde, porque muitos doentes querem médicos e não há, porque todos pensam que a Covid-19 é a prioridade, logo os médicos estão virados para o combate à pandemia. No Funchal, a minha médica de família, só vai ao Centro de Saúde, passar receitas aos doentes crónicos...enfim é o que temos.
  • João Lopes
    05 fev, 2021 Viseu 10:40
    Excelente análise!