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ENTREVISTA RENASCENÇA ECCLESIA

Moçambique mostra “a pobreza no seu expoente máximo”

30 jan, 2021 - 09:30 • Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

"Há pessoas que passam fome hoje, amanhã e depois", denuncia Paulo Costa, responsável da "Rosto Solidário", uma entre 30 organizações que apelam a Portugal e à União Europeia que se envolvam na solução da crise humanitária que a atinge a região de Cabo Delgado.

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Mais de 30 organizações da sociedade civil moçambicana manifestaram o desejo de que o Governo português e a União Europeia se envolvam na solução da crise humanitária que a atinge a região de Cabo Delgado, no Norte do país.

Uma dessas instituições é a "Rosto Solidário", promovida pela Congregação Passionista de Santa Maria da Feira e por um grupo de leigos da comunidade local.

“Para além da fome e da falta de abrigo, temos o contexto do covid e da cólera, ou seja, a pobreza no seu expoente máximo em que tudo se junta. Parece que atrai tudo”, desabafa Paulo Costa, um dos responsáveis pela “Rosto Solidário”, em entrevista à Renascença e à agência ECCLESIA, na qual fala sobre a iniciativa em defesa da população moçambicana.

O que é que levou estas 30 organizações a lançarem este apelo?

Estas 30 organizações formam um grupo de base, inicial, de três ou quatro organizações, que vinham acompanhando o problema de Cabo Delgado há alguns anos, porque esta crise não começou agora, tendo em conta a sua missão de cooperação para o desenvolvimento, de ajuda humanitária e também ao nível de direitos humanos, Sentiram-se mobilizadas a reforçar este apelo que tem sido feito no contexto nacional por algumas pessoas e também em Moçambique, muito pelo bispo de Pemba, D. Luiz Lisboa, com quem trabalhamos e temos contactos. Foi emergindo esta necessidade e esta vontade de dar voz aos sem voz.

Este pedido especificamente das organizações pode significar que não tem existido a vontade necessária para enfrentar o problema?

Como sabemos, muitas das vezes os procedimentos a nível internacional e diplomático têm as suas etapas e os seus trâmites e, em primeiro lugar, estamos a falar de uma crise num país, que é um Estado soberano e que tem de ser respeitado, e que, recentemente, reconheceu o problema ao fim de alguns anos em que foi tentando resolver internamente.

Já no ano passado, houve, expressamente, um pedido à União Europeia (UE) de apoio por parte de Moçambique e o reconhecimento da dificuldade de resolver este problema que é, à partida, interno. A partir dai, há este espaço para que Portugal, numa cooperação bilateral, mas especialmente enquanto membro da UE, possa pressionar e influenciar no sentido que este grande bloco, que tem historicamente uma capacidade de apoio no contexto africano, se mobilize em específico para esta crise e particularmente num contexto de pandemia Covid-19 mais difícil é alertarmos para outros problemas que continuam a emergir e a permanecer no contexto global e em Moçambique em concreto.

O Governo português já se mostrou disponível para ajudar, as autoridades moçambicanas já demonstraram alguma abertura. Através do Ministério da Defesa e também do dos Negócios Estrangeiros, houve, em diferentes ocasiões, essa manifestação de disponibilidade para colaborar. O Ministério da Defesa avançou mesmo a possibilidade do envio de tropas para Moçambique. Daquilo que vão conhecendo da realidade, há hoje uma maior disponibilidade, uma maior abertura para receber essa ajuda que a região tanto necessita?

Há, em primeiro lugar, uma grande crise humanitária e as agências das Nações Unidas que têm nestes contextos uma grande capacidade de ação, e são eles que mais socorrem os deslocados internos - cerca de meio milhão de pessoas e mais de dois mil mortos nos últimos anos de conflito. Neste momento, não têm capacidade financeira. E isto é imediato.

Há pessoas que passam fome hoje, amanhã e depois. E, muitas das vezes, estes trâmites diplomáticos levam o seu tempo. Entendemos que é relevante fazermos esta pressão para que se tente encurtar os timings de decisão e de ação.

Portugal já manifestou a vontade e há uma negociação em curso de que vai rapidamente apoiar ao nível do Ministério da Defesa Moçambique, não com o envio de tropas, mas com ações indiretas de capacitação e de formação das Forças Armadas moçambicanas. Há aqui uma postura de reforçar o papel de Moçambique na solução do problema.

Ao que sabemos, por declarações públicas, o ministro da Defesa, os seus representantes irão deslocar-se a brevemente a Moçambique no sentido que se comece a implementar no terreno.

Recentemente, o ministro dos Negócios Estrangeiros esteve em Moçambique, enquanto representante da União Europeia, porque Portugal assume a presidência do Conselho Europeu durante este primeiro semestre do ano. Também é uma oportunidade que esta agenda chegue às mesas dos processos de tomada de decisão ao nível europeu e Portugal é importante que tenha esse papel e que o nosso Governo também se sinta reforçado e legitimado para que essa agenda esteja no processo de decisão.

Pensa que é importante esta ajuda internacional, esta pressão internacional, coincidente com a presidência portuguesa do Conselho Europeu chegue até às autoridades moçambicanas e, daquilo que vai ouvindo e foi dizendo, se haverá vontade dessas autoridades em aceitar a ajuda internacional?

Moçambique é, tradicionalmente, um país recetor de ajuda internacional, historicamente, nos últimos anos, e é visto como um país “bom aluno”. Tem uma boa relação com a comunidade internacional e tem sido bastante apoiado por isso também.

Reconheceu o problema, há aqui muitas nuances, também temos que ter em consideração que estamos a falar em relações históricas do tempo colonial, etc. É importante que a união Europeia também tenha uma posição de empoderar um Estado independente e não cairmos em processos de deslegitimar um Estado que já tem algumas fraquezas e, por isso, precisa de ajuda.

No âmbito da União Europeia, temos muitas sensibilidades, temos países que não têm relação nenhuma com África, ou que isso não passa pela sua relação histórica, nem estratégica, dai a importância de coincidir com a presidência portuguesa.

Portugal tem a relação com os Países Africanos de Língua Portuguesa como prioritária, na sua política de cooperação portuguesa, na sua política de relação externa, e é extremamente importante que potencie isso. A seguir pode vir um outro país a assumir a presidência [do Conselho Europeu] que não tenha isso como prioridade.

É potenciar esta onda que nos surge.

Que notícias têm chegado desde Cabo Delgado? O número de deslocados continua a aumentar?

Sim, no último ano o número disparou bastante e temos, claramente, os incidentes de violência continuam a ocorrer semanalmente. Há casos regulares, mais do que um por semana. E estamos aqui perante um problema que os deslocados já não estão só na Província de Cabo Delgado.

E já são mais de 500 mil como se tem vindo a falar?

Sim, sim. Cabo Delgado é essencialmente uma província agrícola, as pessoas deixaram as suas plantações, portanto, não têm o que comer e deixaram as suas casas. Também temos um problema de abrigo e as próprias agências internacionais estão com dificuldades em mobilizar recursos para esse apoio e temos o contexto da pandemia da Covid-19 e, nesta situação a cólera também já apareceu.

Para além da fome e da falta de abrigo temos o contexto do covid e da cólera, ou seja, a pobreza no seu expoente máximo em que tudo se junta. Parece que atrai tudo.

Quais as principais necessidades da população que estão identificadas pelas instituições? Tem sido fácil fazer chegar a ajuda?

A Rosto Solidário, a Cáritas Portuguesa e algumas das organizações que subscrevem têm um contacto mais regular com a Diocese de Pemba, com a Cáritas local e com o bispo diocesano, D. Luiz Lisboa. Vamos tentando mobilizar alguns recursos, também a própria Arquidiocese de Braga, que tem uma geminação com a Diocese de Pemba, no sentido de fazer chegar alguns pequenos contributos que permitam resolver os problemas do dia a dia, que vão crescentes. Mas, de facto, não se consegue resolver um problema tamanho, temos quase dificuldade em o imagina, mais de meio milhão de pessoas…

Agora não é um problema: são os deslocados, a cólera, a pandemia…

Sim, e é o problema da violência, porque esse problema é a questão central.

Tem alguma ideia da dimensão do impacto da pandemia?

Em termos da pandemia, num contexto de ausência de muitos serviços básicos e de serviços de saúde muito precários, não temos dados concretos. Basicamente, o nosso apoio é mobilizar recursos financeiros para os fazer chegar rapidamente ao local, para que os nossos parceiros possam adquirir géneros alimentares, tendas e outras formas de garantir que as pessoas se abriguem. Ao nível da saúde, não somos especializados nessa área e não temos muitos dados concretos, mas estamos atentos também às consequências da má nutrição, da fome, à questão da água potável. Essa é uma das prioridades, distribuir formas de desinfetar a água e de a conservar.

Como é que a população portuguesa pode ajudar quem enfrenta esta situação de violência em Cabo Delgado?

Em primeiro lugar, é trazermos isto à nossa conversa, fazer chegar a outras pessoas. Já falamos do papel que o Governo português pode ter e sabemos que, muitas vezes, as decisões políticas também são influenciadas pela agenda mediática, hoje em dia o poder das redes sociais é relevante. Esta é a primeira questão: levantar o problema. Depois, nós no Rosto Solidário e outras organizações - a Arquidiocese de Braga, a Cáritas Portuguesa -, recolhemos regularmente fundos e donativos monetários, para os fazer a outros parceiros.

Este conflito é extremamente complexo, tem muitas causas, é importante que pensemos bastante, que cruzemos fontes, que façamos leituras de diferentes meios. O problema é complexo e é preciso ter uma leitura crítica sobre ele. Esse papel, no caso dos jornalistas, é extremamente importante. Há dificuldade em termos informação que venha do terreno, não há muitos jornalistas a conseguir chegar, não há muitas informações, estamos a falar de pessoas que são consideradas terroristas e não têm propriamente porta-vozes, ninguém fala com eles regularmente.

O que também fazemos, nas organizações e neste movimento que emergiu, é ir refletindo e partilhando informação entre nós.

Por último, gostaríamos que nos falasse um pouco da Rosto Solidário e das vossas principais atividades e também dificuldades....

A Rosto Solidário nasceu na congregação mais conhecida por Passionistas, são os Missionários Passionistas. A nossa missão vem dessa espiritualidade, que está muito ligada com a Paixão de Cristo, de um ponto de vista social e humano, com a ideia de que essa presença de Deus se faz em todos aqueles que sofrem. A missão da Rosto Solidário, de alguma maneira, é descrucificar aqueles que sofrem, pela injustiça. Fazemos isso localmente, junto de pessoas que tiveram o azar de ficar sem trabalho, em Portugal, procurando mitigar algumas carências; no contexto da relação com os PALOP, tentamos estar junto daqueles que menos têm, me processos de desenvolvimento, mas também para levar a voz daqueles que não se conseguem fazer ouvir para junto dos decisores.

Há uma terceira dimensão, que é a de fazer as pessoas pensar sobre estes assuntos, no sentido de que sejam mais participativas, cidadãos com uma reflexão global e crítica sobre estas desigualdades, conflitos, perpetuação da pobreza, os problemas da educação climática. Trabalhamos muito em educação para a cidadania, em sensibilização das comunidades. E existe o voluntariado como recurso e oportunidade para que as pessoas toquem nestes problemas e se transformem, levando depois para a sua vida e atividade profissional estas preocupações, porque muitas vezes não reconhecemos muitos destes problemas, passam-nos ao lado. Nestes meses, então, passamos a vida a falar da Covid e quase que os mortos já deixaram de ser pessoas, a ser números, e estamos indiferentes. É preciso lutar contra esta indiferença.

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