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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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nem ateu nem fariseu

Não pode haver mortos heróicos e mortos esquecidos

29 jan, 2021 • Opinião de Henrique Raposo


Claro que num pico covid, como neste janeiro, há muitos mortos não covid devido ao entupimento do sistema. Só que os milhares de mortos em excesso e não covid que tivemos entre abril e dezembro não são explicáveis pelo entupimento covid, porque esse entupimento não existia. Pior: enquanto estes mortos não covid continuavam a subir todos os dias, os média só falavam da covid e os políticos vendiam-nos "o milagre português". Isto não se pode repetir.

Eu partilho da inquietação do Presidente em relação a uma crescente insensibilidade em relação aos mortos. A sociedade corre o risco de ficar dormente e dessensibilizada pela brutalidade do impacto desta estirpe inglesa. Quando levamos um soco, o rosto fica anestesiado, só começamos a sentir dor a sério segundos depois. Temos de evitar ao máximo esta anestesia da dor.

Só que há um pormenor decisivo, uma nuance que continua a ser esquecida. É que o desprezo pelos mortos tem sido a marca da sociedade portuguesa. Os mortos não covid têm sido esquecidos de forma infame pela sociedade, pelos média, pelos políticos; são mortos invisíveis, sem lugar na narrativa.

Entre abril e dezembro, nós vivemos em Portugal uma situação de relativa ou total acalmia em relação à covid. Mas, neste período de acalmia e de alegado “milagre português”, nós tivemos uma catástrofe que ainda está por contar: o excesso de mortalidade disparou devido a doenças não covid. Nós chegámos às portas do inverno com este cenário absurdo: o excesso de mortalidade de Portugal em 2020 estava a ser provocado a 75% por doenças não covid e só a 25% por covid. Dezembro equilibrou as contas: o excesso de mortalidade ficou 50% - 50%, o que ainda é demasiado.

Na maioria dos países europeus, o excesso de mortalidade de 2020 foi provocado quase na totalidade pela covid e não por outras doenças. Estou aqui a olhar para um gráfico do Economist, vejam aqui, vejam como o gráfico português é estranho: o excesso de mortalidade não é preenchido pela mancha covid, há ali três picos de mortes em excesso (sobretudo julho) que não são explicados pela covid. Insisto nisto desde março precisamente porque não é aceitável esquecermos estes mortos, porque não pode haver mortos mediáticos e mortos silenciados, porque o “milagre português” e a alegada resistência do SNS à covid foi feita à custa da vida dos outros doentes, porque em 2021 não podemos repetir este erro.

Claro que num pico covid, como neste janeiro, há muitos mortos não covid devido ao entupimento do sistema. Só que os milhares de mortos em excesso e não covid que tivemos entre abril e dezembro não são explicáveis pelo entupimento covid, porque esse entupimento não existia. Pior: enquanto estes mortos não covid continuavam a subir todos os dias, os média só falavam da covid e os políticos vendiam-nos "o milagre português". Isto não se pode repetir. Os média não podem injectar tanto medo no cidadão. É um medo tão forte que as pessoas têm pavor de ir ao hospital apesar da dor aguda no peito. E o sistema de saúde tem de responder aos outros doentes de forma normal no momento em que a vaga covid passar. O que se passou em 2020 não se pode repetir em 2021, não há mortos bons e mortos maus, mortos para destacar e mortos para esconder em nome de uma falsa sensação de sucesso nacional.

Comentários
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  • Paula Barradas
    01 fev, 2021 Elvas 15:29
    Actualmente, os artigos de Henrique Raposo são os que eu mais gosto de ler, as suas ideias são as ideias com que eu mais me identifico.
  • Ivo Pestana
    30 jan, 2021 Madeira 13:05
    Mesmo antes da pandemia, sempre houve discriminação na morte. Uns têm direito a dia de luto nacional, bandeira a meia haste, a serem falados, a honras e mais honras...isto sempre foi assim. Outros com igual oumaior importância, não são falados. Mas, depois desta vida temporal veremos o que irá acontecer e quem será exaltado. Certeza só de que um dia somos nós, a partir. Se falarão de nós, é pouco relevante. Já não estamos para ouvir.