Diogo Boa Alma

Os bastidores do sucesso do projeto Santa Clara

08 jan, 2021 - 11:50 • Eduardo Soares da Silva

Diogo Boa Alma, diretor-desportivo do Santa Clara, explica como funciona o clube internamente e a sua ação no mercado de transferências, com olhar atento para talentos escondidos em divisões inferiores. Zaidu, Kaio Pantaleão, Fernando Andrade e Thiago Santana são os jogadores que deram o salto após passagem pelos Açores e receitas que permitem ao clube atenuar a dívida acumulada do passado.

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Diogo Boa Alma é o diretor-desportivo do Santa Clara desde 2015 e um dos principais responsáveis pelo clube que regressou à I Liga e tem batido recordes época atrás de época. A base do sucesso é o "ambiente familiar" vivido no clube e a política de recrutamento adaptada a "um dos cinco menores orçamentos do campeonato".

Em entrevista a Bola Branca, o dirigente de 38 anos explica que trabalha as contratações com muita antecedência, condição necessária para a construção de um plantel competitivo. Mal termina o mercado de transferências, Boa Alma começa a preparar o seguinte.

"Esta época, tínhamos jogadores que já estavam contratados há algum tempo, gostamos de fazer por antecedência. Uma janela fecha e nós já estamos a trabalhar na próxima. A janela de janeiro já vem sido trabalhada há bastante tempo. Fechando em janeiro, pensamos já na próxima época, perspetivando as saídas possíveis, o que poderemos decidir em jogadores em final de contrato, alguns ativos que podem ser transferidos. Preparamos logo o que poderá ser a janela de verão. Alguns atletas já estavam contratados ainda antes da equipa técnica ser escolhida", explica.

O Santa Clara é "seguramente um dos cinco ou seis clubes com orçamento mais baixo da Liga", segundo Boa Alma, que explica como encontra jogadores para a construção do plantel.

"Temos de olhar para divisões secundárias ou para mercados alternativos, podendo potenciá-los e fazer mais-valias com as suas vendas e fazer o clube crescer, aos poucos. As soluções que estão identificadas pelo clube são passadas ao treinador e, em conjunto, fazemos a escolha de qual delas é melhor para o clube", explica.

Scouting dificultado e as medalhas de Boa Alma

Sendo um clube açoriano, o processo de observação de jogadores é dificultado. O Santa Clara não conta com um departamento de scouting, mas sim com vários colaboradores no continente, que vão dando pareceres a Boa Alma dos jogadores referenciados.

"Temos alguns colaboradores no continente, fazem observação 'in loco' de alguns atletas, sobretudo de divisões secundárias. Temos uma rede de contactos que nos vai fazendo o favor de avaliar atletas que temos referenciados", explica.

A garantia é que "nenhum jogador chega ao Santa Clara" sem ter sido observador em cerca de 15 jogos. No processo final, Diogo Boa Alma viaja para observar, ao vivo, os pretendentes.

"No processo final, estarei presente para os avaliar presencialmente, em um ou dois jogos, apesar de já ter visto muito jogo do atleta nas plataformas que hoje em dia existem", destaca.

Os Açores estão a cerca de 1.500 quilómetros de distância de Portugal continental, no meio do Oceano Atlântico. Ser um clube localizado num arquipélago "já dificultou" mais para convencer jogadores. A qualidade de vida superior e um clube com boa reputação convence a maioria dos ateltas.

"Os jogadores começam a passar a mensagem que se vive muito bem nos Açores. É um paraíso, e eu sou insuspeito, porque sou lisboeta e não sou açoriano. Pesa na decisão do atleta vir para longe da família quando tem outros clubes interessados mais perto de casa. As pessoas sabem que o clube é sério, cumpridor, honesto, e terão condições para se valorizar. Por aí, não interfere. Na logística, não diária, mas de jogo, interfere, porque temos de viajar de avião, mas às vezes apontamos isso como desvantagem, mas pode pesar mais para os clubes do Algarve, que fazem deslocações de oito e nove horas de autocarro. Vamos de avião, são duas horas", diz, a Bola Branca.

Com a recente saída de Thiago Santana e a de Zaidu Sanusi, o Santa Clara fez duas grandes vendas em 2020, um passo importante para reduzir a dívida deixada pela antiga direção.

"O objetivo é ir fazendo estas vendas com a valorização dos ativos. É o que pretendemos que seja o Santa Clara, com sucesso desportivo, mantendo-se na I Liga, e com valorização de ativos permanente. Não falamos de uma exuberância a nível financeiro, porque o Santa Clara tinha uma dívida que herdou do passado e que tem de ir resolvendo aos poucos. Tentamos chegar ao fim de um próximo mandato com dívida zero e construir as próprias estruturas de treino e é um passo importante que o clube tem de dar", explica.

As vendas mais sonantes foram Fernando Andrade, Zaidu, Kaio Pantaleão e, agora, Thiago Santana: "Nestes anos de I Liga só em janeiro do ano passado é que não fizemos venda e por opção própria. Em janeiro da primeira época, vendemos o Fernando Andrade, no final da temporada saiu o Kaio Pantaleão para o Krasnodar. Em janeiro não saiu ninguém, no verão o Zaidu, e agora o Santana".

Estas transferências para clubes de maior dimensão e o sucesso desportivo dos antigos jogadores do Santa Clara são "medalhas" que orgulham Boa Alma.

"Costumo dizer que são as minhas medalhas, vermos o Fernando, que recrutamos na II Liga, a jogar na Liga dos Campeões e a ser fundamental contra a Roma, o Zaidu eleito para o melhor onze da fase de grupos da Champions quando estava há um ano e pouco no Mirandela, o Kaio a ser titular no Krasnodar quando o fomos buscar à Ferroviária que não tinha divisão, só jogava o Paulistão. Para nós, é motivo de orgulho ver que estes atletas que vinham de condições precárias, deram o salto e resolverem o seu futuro financeiramente para si e para as famílias. É o reconhecer que o trabalho está a ser bem feito e que temos de continuar", diz.

O que faz um diretor-desportivo?

Diogo Boa Alma é um dos diretores-desportivos da I Liga, uma função importante no bom funcionamento dos clubes, mas com pouca definição nas suas tarefas: uns com mais poder de decisão, outros com menos.

Nos Açores, Boa Alma é o homem-forte do futebol profissional, toma a maioria das decisões e foi para isso mesmo que foi contratado pelo presidente Rui Cordeiro.

"Tenho a felicidade de ter um presidente que confia e delega a gestão do futebol profissional. Não é a vida profissional dele. Não quer ter interferência, quer que lhe preste contas sobre as decisões tomadas. As minhas funções são muito abrangentes, desde a escolha de apoio do futebol profissional, dos treinadores e jogadores. Trato dos contratos e transferências. Toda a gestão diária do futebol profissional passa por mim", explica, à Renascença.

E qual é o estilo de Boa Alma? Mais discreto nos bastidores do clube, ou bastante próximo do balneário? O próprio explica que assiste "a todos os treinos" e está "diariamente com o grupo", destacando ainda o ambiente vivido no grupo de trabalho e o restante "staff" de apoio ao plantel.

"Temos uma estrutura de apoio, com o Clemente, que é um antigo avançado do clube que está muito próximo e que ajuda os jogadores nos problemas pessoas que possam ter, como ajudar a encontrar casa, encontrar escola para os filhos, e o Marco Santos, que é o 'team-manager'. A vantagem que temos no Santa Clara é a proximidade, relação quase familiar entre toda a estrutura, de gente jovem que fala a mesma linguagem. Os jogadores sabem que podem falar connosco sobre qualquer problema", explica.

Voltando atrás no tempo, Boa Alma é um dos diretores-desportivos do campeonato que não tem um passado enquanto jogador de futebol, como o próprio destaca. Ricardo Costa, Carlos Carneiro, Briguel, Villas-Boas são alguns dos casos no campeonato. Ser antigo jogador tem vantagens para a função, mas não é essencial, considera.

"Tem a vantagem de ter conhecimento de balneário e de lidar com jogador. Sabem o que o jogador sente, porque sentiu na pele. Mas acho que não é decisivo esse fator. É importante que se prepare em termos de conhecimento para saber tudo o que é necessário para exercer estas funções, como a gestão de pessoas, dos regulamentos e das leis para as poder cumprir, para que o clube não seja sancionado por incumprimento. Ter conhecimento de jogo, de jogadores, porque aqui no Santa Clara a escolha dos jogadores passa pelo diretor-desportivo, pode não ser em todos, mas aqui é assim", explica.

Boa Alma formou-se em Direito e foi nessas funções que chegou ao futebol, como advogado do Vitória de Setúbal, clube onde deu os primeiros passos no futebol.

"Tirei o curso de direito na Faculdade de Direito de Lisboa e especializei-me em direito desportivo, trabalhei no Sincidato de Jogadores no estágio profissional e acabei por tirar uma segunda licenciatura em administração e gestão desportiva já quando trabalhava como advogado. Estive ligado ao Setúbal entre 2009 a 2015, primeiro como advogado, depois o presidente Fernando Oliveira convidou-me a fazer parte da lista quando se candidatou e passei a vice-presidente do clube. No último ano já exerci funções de administração na SAD, nos últimos meses com responsabilidade no futebol profissional", recorda.

O convite para o Santa Clara surgiu no final de 2015, pouco depois de ter deixado o Bonfim. Rui Cordeiro, atual presidente dos açorianos, foi colega de curso de Boa Alma: "Saí do Vitória em agosto de 2015 e acabei por vir para o Santa Clara em dezembro. O convite surge por relação pessoal com o presidente Rui Cordeiro, que estudou comigo Direito. Quando assumiu o Santa Clara em junho de 2015 entrou sem ter nenhum contacto anterior com o futebol, não é a vida profissional dele, queria alguém experiente e que pudesse confiar e veio namorando-me ao longo desses meses e acabei por vir para os Açores".

O Santa Clara ocupava um momento conturbado quando Diogo Alma assumiu o projeto, perto da zona de despromoção na II Liga. O diretor-desportivo apenas tinha assinado até ao fim dessa época, mas o projeto a longo-prazo prolongou a estadia.

"O presidente estava no primeiro ano de mandato quando cheguei e o Santa Clara estava perto dos lugares para descer ao Campeonato de Portugal. Na altura, mais do que tudo, o presidente convidou-me para evitar a descida de divisão. O Santa Clara tinha tido uma guerra interna muito grande para ser eleito e para afastar o antigo presidente, que tinha mais de dez anos de clube e que tinha sempre mantido o Santa Clara na II Liga. Não queria entrar no mandato e ficar associado à descida", diz.

"O projeto inicial era esse e assumi o compromisso só até ao final dessa época para ajudar o clube a ficar na II Liga. Conseguido esse objetivo, projetamos um novo projeto de crescer de forma sustentada e de colocar o Santa Clara na I Liga", termina.

Santa Clara europeu a médio prazo

Daniel Ramos foi o treinador escolhido para suceder a João Henriques, que "terminou o seu ciclo valorizado" após dois anos nos Açores. O regresso foi natural, depois de uma breve passagem no início da época 2016/17.

"O mister passou pelo Santa Clara já eu estava como diretor-desportivo, foi o primeiro ano completo que aqui fiz, foi a escolha que fizemos na altura de tentativa de subida. Fez um início fantástico, fez sete vitórias e um empate na II Liga, nunca ninguém superou este registo. Deixou saudades, quer pelos resultados, quer pela sua forma de trabalhar e parte humana. Sempre mantivemos contacto e relação próxima. Foi desejo das duas partes retomar desejo. Na altura teve oportunidade de dar o salto, não lhe cortamos as pernas", recorda.

O Santa Clara está no sétimo lugar da tabela, com 14 pontos, próximo dos lugares europeus, e ainda segue em prova na Taça de Portugal. O balanço da temporada é muito positivo, para já.

"Estamos extremamente satisfeitos, a manutenção é o objetivo principal, conseguirmos fazer uma inédita terceira manutenção. Esse é o principal objetivo. Depois passa por tentar superar as metas anteriores, valorizar ativos, que para nós é muito importante. Na Taça de Portugal, procurar ir passando mais rondas. Chegar aos qurtos de final seria já histórico", perspetiva.

Depois de uma subida à I Liga e quebrar todos os registos do clube na primeira divisão, o salto natural será começar a pensar numa primeira qualificação europeia, embora seja preciso algum investimento prévio em infraestruturas.

"Está distante nas condições que o clube tem, na construção do seu centro de treinos. Tem de melhorar condições de trabalho. Depois, poderá ambicionar fazê-lo [chegar à Europa]. Penso e entendo que Santa Clara tem condições para se afirmar como quinto ou sexto clube a nível nacional. É o único clube açoriano a nível nacional, tem essa missão de representar nove ilhas, quase 250 mil pessoas. Tem uma massa adepta muito grande, tem de cativar e trazer essas pessoas para o clube, para apoiarem o Santa Clara e fazerem dele um clube que possa ambicionar chegar às competições europeias. Resolver a dívida financeira, criar infraestruturas e depois lançar-se para outros objetivos", termina.

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