23 dez, 2020
Em 1892, na ressaca de um trauma nacional (o ultimato britânico), de um sobressalto de regime (a tentativa de revolução republicana no Porto), de uma bancarrota financeira (resultado da falência do fontismo), e de um estado de exceção político (os governos extrapartidários de salvação nacional empossados por D. Carlos), o poeta António Nobre, ícone maior do simbolismo, do decadentismo e do saudosismo finisseculares portugueses, escreveu, na sua coletânea de textos «Só»: “A vida antiga tinha raízes, talvez a vida futura as venha a ter. A nossa época é horrível. O passado desapareceu, de futuro nem alicerces existem. E aqui estamos nós, entre ruínas, à espera…”.
Como tantos outros do seu tempo, e de todo o tempo decorrido desde o “vencidismo” da Monarquia aos desiludidos da República (do Orpheu em diante), António Nobre precisava de (algumas) certezas para se conduzir na vida, e nunca as encontrou – ou porque não soube, ou porque a época era de radical incerteza.
Lembro-me destas palavras ao ouvir as ritmadas aparições televisivas de Marcelo Rebelo de Sousa, de António Costa ou das “autoridades” da saúde. Não sei se são alocuções à nação, conferências de imprensa, explicações televisionadas, monólogos técnico-sentimentais ou puros dislates (como a sugestão do “Natal ao pequeno-almoço” e da troca de compotas do homem da DGS!).
A pandemia criou um estado de exceção que é mais profundo do que aqueles que a legislação vai materializando e calibrando ao ritmo dos números e dos mapas. E os grandes decisores estão tolhidos por uma névoa, tateando, à procura de raízes, de alicerces, de algo conhecido que desapareceu – a normalidade da vida –, sem previsão de quando voltará.
O número de infetados, recuperados, internados e ventilados é mensurável. O mal maior está no que não conseguimos medir: a crise de cansaço de todos os profissionais de saúde e gente de primeira linha do combate ao vírus; a crise de enormes segmentos da economia real; a crise de motivação de muitas profissões remetidas para o gueto do teletrabalho; a crise de vocações que assola, silenciosamente, tantos jovens estudantes que tentam aprender o normal com a cabeça presa pelo anormal; a crise de exaustão psicológica de todos; a crise política do Estado, hesitante no que fazer e impotente para acudir a todos. Não sei se os governantes portugueses de 2020 poderiam fazer diferente e/ou melhor. O que sei – percebemo-lo todos – é que a radical incerteza em que mergulhámos desfez expetativas, esperanças e seguranças, e que esse céu de chumbo sobre as nossas cabeças, esse contar dos dias à espera nem bem sabemos do quê é absolutamente corrosivo para a sociedade, para a política e para a vida. E assim vai terminar este estranho ano de 2020.
Quem manda diz-nos que não é hora para críticas, divisionismos ou dúvidas. Se a pátria está em perigo e em combate todos têm de combater. Era o que os republicanos afonsistas diziam durante a I Guerra Mundial ou o que o salazarismo exigia durante a Guerra Colonial, e os resultados não foram famosos. Quando a pandemia passar, talvez reparemos que a suspensão do pensamento, da crítica ou da diferença nos deixou civicamente mais pobres e com uma democracia formal nas aparências, mas oca de sentido, de vida, de mobilização, de pertença. E talvez nos consciencializemos de que a pandemia agravou o mal, mas que, pela extensão do estrago, ele já vinha de há mais tempo. Entre o monismo dos que mandam, o calculismo dos que espreitam e o tribalismo dos que estão de fora, é a vitalidade de Portugal que hoje parece adormecida ou (com eleições à porta) improdutivamente disputada.