40 anos da tragédia de Camarate

O legado e os herdeiros de Sá Carneiro, "um cometa no nosso céu político"

04 dez, 2020 - 06:00 • Fábio Monteiro

Passadas quatro décadas da sua morte, a memória de Francisco Sá Carneiro continua viva. Para uns, mito; para outros, inspiração. Muitos dos que se declaram herdeiros “estão à procura de protagonismo”, aponta à Renascença Mota Amaral, histórico social-democrata. Alexandre Poço, líder da JSD, confessa a admiração pela “coragem” e “ousadia" do político. José Ribeiro e Castro, ex-líder do CDS, recorda um homem “cordato” e diz que a sua morte foi também o óbito da Aliança Democrática - que podia ter vindo a ser muito mais.

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Alexandre Poço tinha “15, 16 anos” quando ouviu falar, pela primeira vez, de Francisco Sá Carneiro. O atual líder da Juventude Social Democrata (JSD) tinha começado a interessar-se por “temas relacionados com a política e os partidos”. Daí a tropeçar no nome e ideias do fundador do Partido Popular Democrático (PPD), hoje Partido Social Democrata (PSD), foi um pequeno passo. “Assim que se procura saber mais sobre o PSD, o que é o PSD, o que pensa o PSD para o nosso país, qual a sua história, a figura de Francisco Sá Carneiro é incontornável”, conta.

Na época, o jovem social-democrata ficou impressionado pelo papel que Sá Carneiro desempenhou na luta pela democracia, a “coragem” do político, “a ousadia de ser uma voz num Portugal cinzento, num Portugal amordaçado.” “Os seus anos, ainda na Assembleia Nacional, enquanto deputado da Ala Liberal que se destacava pela luta, pela democratização do país, pela concessão de direitos políticos, pela amnistia aos presos políticos e por ter renunciado ao seu mandato, quando percebeu que o regime anterior não era reformável”, conta à Renascença.

O dirigente da JSD tem 28 anos. Francisco Sá Carneiro, ex-primeiro-ministro pela coligação Aliança Democrática (AD), morreu precisamente há 40 anos, a 4 de dezembro de 1980. Alexandre Poço conhece Sá Carneiro apenas no papel – por via dos seus escritos e intervenções em plenário.

João Bosco Mota Amaral, presidente honorário do PSD/Açores e um dos “históricos” da Ala Liberal, tem outro tipo de experiência. O social-democrata esteve ao lado de Sá Carneiro no Parlamento, antes da queda do Estado Novo; e os dois colaboraram na revisão constitucional de 1970. “Fiquei com uma ótima impressão dele. Uma pessoa excelente, muito empenhada nas suas tarefas, com um fundo humano de primeiríssima qualidade”. Quando, após o 25 de Abril, Sá Carneiro lançou a ideia de um novo partido político, “alistei-me imediatamente nas suas hostes para arrancar com o projeto aqui também nos Açores”, conta Mota Amaral.

José Ribeiro e Castro, histórico do CDS que foi secretário de Estado Adjunto do Vice-Primeiro-Ministro Diogo Freitas do Amaral, nos governos da Aliança Democrática (AD), recorda Sá Carneiro como “uma pessoa calma, cordata nada a ver com a ideia de pessoa conflituosa que se projetou na política interna do PSD”. “Foi um primeiro-ministro excecional, com uma grande capacidade de delegação”, diz.

Já Maria João Sande Lemos tem outro tipo de memória: pessoal. A amiga pessoal de Sá Carneiro e colega de trincheiras políticas após o nascimento do PPD recorda “uma pessoa encantadora, um bom conversador, inteligente”. “Como político era absolutamente excecional. Era verdadeiro, era incapaz de uma mentira, era um social-democrata. Tinha o interesse das pessoas vulgares acima de tudo. E, portanto, ele foi um cometa no nosso céu político. Foi uma grande perda para Portugal, para a democracia e para o PSD, claro. E para todos nós um grande desgosto”, afirma.

As circunstâncias nebulosas e romanescas do seu desaparecimento são conhecidas da larga maioria dos portugueses: o avião Cessna em que seguia para o Porto, juntamente com Snu Abecassis, a sua companheira, Álvaro Amaro, ministro da Defesa, e a respetiva esposa, um assessor e os dois pilotos, despenhou-se sobre bairro das Fontainhas, em Camarate, pouco depois de ter descolado.

Nas últimas décadas, houve farta discussão sobre a tragédia, foram escritas dezenas de livros com diferentes teorias. Mas, de acordo com o relatório final da 10.ª Comissão Parlamentar de Inquérito à Tragédia do Camarate, concluída em 2015, o acidente teve “origem criminosa”. Por outras palavras: foi um atentado.

O que não aconteceu

O que podia ter sido, o que pensaria são duas das formulações mais comuns quando se convoca a história de Francisco Sá Carneiro. E passados 40 anos da sua morte, são quase um passatempo nacional.

Para homenagear o fundador do Partido Social Democrata, a JSD irá publicar esta sexta-feira o livro “40 anos, 40 testemunhos sobre Sá Carneiro”, que conta com prefácios de Marcelo Rebelo de Sousa, Rui Rio e Alexandre Poço, e testemunho de várias figuras de direita nacional. Na obra, o líder da JSD faz, então, o ingrato exercício de imaginar como sentiria Sá Carneiro fosse por estes dias vivo e visse como está Portugal. Aí, imagina-o “revoltado”.

Em declarações à Renascença, desenvolve a ideia: se por um lado Sá Carneiro estaria “extremamente feliz” de Portugal ter “uma democracia do tipo ocidental, representativa, com legitimidade parlamentar”, ser um” um país integrado no projeto europeu”, ficaria também angustiado por verificar que, 35 anos depois da adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE) “ainda não conseguiu descolar da sua posição de um dos países mais pobres da Europa” e que ainda vive com um “atraso crónico”.

“É nesta dimensão de desenvolvimento, de justiça social, que não tenho a mínima dúvida de que se fosse vivo Francisco Sá Carneiro sentiria uma revolta por verificar que o país ainda não foi capaz de quebrar este ciclo de reprodução de pobreza. É este atraso que nos caracteriza. E para a minha geração, para quem tem menos de 30, 35 anos, é brutal nas nossas vidas, tendo em conta que só conhecemos uma palavra ao longo destas curtas décadas das nossas vidas, que é a palavra crise”, explica.

Do ponto de vista político, José Ribeiro e Castro vê a morte precoce de Sá Carneiro como a “morte” também da Aliança Democrática (AD). “Deixou muito por fazer e é evidente que as coisas que foram a seguir não seriam exatamente como ele as teria feito. Nomeadamente, houve uma coisa que morreu com ele, que morreu em Camarate, que morreu com ele e Amaro da Costa, morreu a AD. A AD morreu no dia 4 de dezembro de 1980.”

Não tivesse Sá Carneiro morrido e o Parlamento português podia hoje ser muito diferente, especula Ribeiro e Castro. “Creio que se ele não tivesse falecido, provavelmente, teria ocorrido - como se dizia na altura - a institucionalização da AD. Isto é, a AD teria evoluído para uma confederação de partidos, uma coligação permanente, um partido novo que juntasse, com base num programa personalista, o PSD e o CDS.”

Há dois anos, também Marcelo Rebelo de Sousa entrou no jogo do “e se Sá Carneiro não tivesse morrido". Numa conversa a propósito do lançamento do filme “Snu”, defendeu que o fundador do PSD poderia muito bem ter chegado ao lugar de Presidente da República.

Mesmo que depois das presidenciais de 1980 se tivesse demitido do cargo de primeiro-ministro, este nunca “deixaria de ser politicamente militante”. “Teria a chance de vir a ser primeiro-ministro, mais tarde ou mais cedo. Teria provavelmente a chance de ser Presidente da República, porque ele não iria nunca desarmar”, disse.

Maria João Sande Lemos partilha a mesma convicção. “Acho que ele teria chegado a Presidente da República, sem dúvida nenhuma. Ganhou o general Ramalho Eanes daquela vez, porque, realmente, o general Soares Carneiro não convenceu as pessoas. E o Dr. Sá Carneiro penso que se candidatasse nas eleições seguintes ganhava. E seria Presidente da República. E um excelente Presidente da República”, diz.

O mito em construção

Uma morte trágica é, porventura, o primeiro passo para uma hagiografia. Não é de estranhar, por isso, que a figura de Sá Carneiro, nas últimas décadas tenha ganho alguns laivos de mito. Talvez até se possa dizer que foi o "momento Kennedy" da democracia portuguesa.

“Há sempre algum processo de mitificação. Isso é inevitável. E em figuras deste gabarito, indiscutivelmente”, assume José Ribeiro e Castro, numa opinião também secundada por Mota Amaral: “É natural que haja alguma mitificação porque há muita gente que fala sem nunca ter visto.”

Em 1990, dez anos após o atentado de Camarate, já Vasco Pulido Valente, que foi secretário de Estado adjunto e da Cultura no Governo da Aliança Democrática, escrevia que o fundador do PSD "viveu (e vive) muito mais na imaginação do que na realidade".

Chegados a 2020, Sá Carneiro é uma figura que está sempre na ponta da língua de muitos social-democratas. É pedra de toque em discursos políticos. Ainda na semana passada, José Manuel Bolieiro, o novo presidente do Governo dos Açores, evocou-o na tomada de posse.

Alexandre Poço recusa a ideia que exista uma mitificação em torno da figura de Sá Carneiro, “embora as circunstâncias da sua morte e do seu desaparecimento possam gerar na sociedade, no seu partido, no PSD e JSD, essa ideia de mito”, assume.

Maria João Sande Lemos está na ponta oposta: no mito, não vê mais do que “a homenagem devida”, “o fazer justiça à pessoa que foi”. “Foi uma pessoa corajosa. Foi uma pessoa capaz de muitas vezes ir contra a conventional wisdom e dentro do partido teve imensas dificuldades. Um homem absolutamente excecional, eu nunca vi tanta crítica, tanta injustiça dentro de um partido, que é também o único partido que conheço no fundo, aquilo dentro do PSD foi também muito injustiçado”, diz.

De certo modo, o legado de Sá Carneiro é caleidoscópico, como transparecem os testemunhos compilados em “40 anos, 40 testemunhos sobre Sá Carneiro”. No livro, Marcelo Rebelo de Sousa confere-lhe o dom da paternidade nacional - “Foi um dos Pais Civis da nossa Democracia.” - e recorda que “foi decisivo na adesão e congregação, no partido, nesses curtos, mas intensos seis anos, de todos os futuros líderes do partido até aos primórdios do século XXI, marcando‑os de forma próxima, pessoal e politicamente”.

O Presidente da República sublinha também que quando Sá Carneiro apresentou, em 1974, o PPD (hoje PSD) a António Spínola, garantiu que este “seria o ‘grande partido do centro’, quando a maioria o via mais como um partido liberal de espaço muito questionável”.

Nem por acaso, Rui Rio evoca também, no seu contributo para o livro, o rumo que Sá Carneiro definiu para o PPD/PSD: “seria um partido de centro, mais exatamente, de centro esquerda”. “Compreendido o momento e as circunstâncias em que o fez, eu definiria hoje o PSD como um partido do centro, que, a par das liberdades e da qualidade da própria democracia, se preocupa com a classe média, com o emprego, com a criação de riqueza e, fundamentalmente, com o futuro do país”, escreve.

Francisco Pinto Balsemão, amigo e sucessor de Sá Carneiro na liderança do PSD após a sua morte, sublinha que “não é obviamente possível responder com exatidão” como seria Portugal se Sá Carneiro não tivesse morrido. “Uma coisa, porém, é certa: Portugal estaria melhor. Melhor não apenas no que respeita ao desenvolvimento e às estatísticas económicas e financeiras, mas, sobretudo, no que respeita à diminuição das injustiças sociais e à criação de igualdade de oportunidades, nas várias etapas da vida social e profissional”, augura.

Pedro Passos Coelho opta por uma abordagem menos panegírica - “É inegável que foi sempre uma personalidade controversa e muito influente” – e deixa críticas ao PS, num gesto de esgrima pelo passado. “Os excessos da revolução, aliados ao imobilismo do ‘socialismo democrático’ do PS e à encarnação pragmática da luta contra os males socialistas fizeram de Sá Carneiro, da sua social democracia e do seu PSD, os ativos mais relevantes e influentes do combate ao socialismo e pela libertação da sociedade civil em Portugal”, regista.

No mesmo sentido, o ex-líder do CDS Paulo Portas destaca Sá Carneiro “como porto seguro e refúgio do país moderado, quando a fúria do PREC ameaçou atirar‑nos para uma ditadura comunista”.

Não há herdeiros?

Citar Sá Carneiro é comum. Volta e meia, há um representante do PSD que o faz - o que é natural. Mas declarar-se herdeiro é outro nível de “exagero”. Quem o faz, diz João Bosco Mota Amaral, são pessoas com “desejo de protagonismo”. “Alguns até se rogam de ser representantes [de Sá Carneiro] sem saberem exatamente como ele era”, nota.

Maria João Sande Lemos também pensa que, por vezes, “há um bocado de aproveitamento político” do nome Sá Carneiro. “Claro que as pessoas usam o nome dele, mas acho bem. Usam o bom nome por uma boa causa. Às vezes, usam o seu nome para más causas. Mas realmente ele é uma pessoa que no imaginário coletivo é uma pessoa importante e prestigiada, de modo que é óbvio que as pessoas se vão aproveitar do bom nome dele. Mas acho que o PSD tem alguma legitimidade. Até certo ponto. Tem que fazer justiça à memória dele, sobre o que ele pensava, sobre a política, sobre os parceiros. Não se pode usar o nome dele a torto e a direito”, diz.

No livro “40 anos, 40 testemunhos sobre Sá Carneiro”, Conceição Monteiro, antiga secretária de Sá Carneiro, confessa que “custa muito, depois de tantos anos de luta, ver a herança que Francisco Sá Carneiro nos deixou, ser desbaratada e esquecida”. “É doloroso ouvir alguns utilizarem citações de escritos seus, totalmente fora de contexto, como há dias ouvi na Assembleia da República a propósito da figura do Referendo. Na já citada entrevista ele defende‑o com ‘unhas e dentes’ como o direito do povo a ser ouvido”, escreve.

Alexandre Poço, líder da JSD, coíbe-se de apontar nomes sobre os herdeiros de Sá Carneiro. “Não seria justo da minha parte estar a identificar o militante A ou B como sendo um fiel um herdeiro. Prefiro dizer que todos no partido temos a responsabilidade de ser fiéis continuadores e não estar a identificar um militante ou uma militante para ser herdeiro. Porque não existem. Francisco Sá Carneiro era único”, afirma.

Fora do PSD, contudo, há quem o faça. Ainda em setembro deste ano, André Ventura, deputado único do Chega! que fez carreira no PSD entre 2001 e 2018, referiu-se a si próprio como “herdeiro de Sá Carneiro”. "Tenho a certeza de que se Sá Carneiro estivesse vivo hoje acreditava em muitas das coisas que eu digo. Por isso é que digo que sou o herdeiro dele, não no mau sentido, mas no sentido de que nunca conheci um líder que inspirasse tanta gente, e esse é o meu modelo. Fazer política junto das pessoas e ter como objetivo melhorar a vida das pessoas", afirmou. (A Renascença tentou ouvir o líder do Chega! a propósito destas declarações, mas o deputado não se mostrou disponível.)

Da curta mas intensa vida política de Sá Carneiro, há, ainda assim, dois nomes a destacar: Pedro Santana Lopes e Aníbal Cavaco Silva. O primeiro foi assessor jurídico de Sá Carneiro, o segundo conselheiro económico. Ambos foram “delfins” do fundador do PSD.

“Não esqueço nunca o exemplo que deu de aposta na juventude ao ter-me nomeado seu assessor jurídico, ao levar-me, só a mim, a uma reunião sobre o projeto de revisão constitucional em casa de Diogo Freitas do Amaral, com o General Soares Carneiro e com Gonçalo Ribeiro Telles, cada um também acompanhado por um colaborador, no caso, reputados. Eu tinha 23 anos e fiz 24 durante esse ano tão intenso. Fui eleito Deputado, por sua expressa exigência, nas eleições de 5 de outubro desse ano”, conta Santana Lopes, no livro de testemunhos preparado pela JSD.

Rui Rio nunca afirmou ser herdeiro de Sá Carneiro, mas, em 2019, assumiu que se este não tivesse feito um partido, “se calhar tinha ido para o PS”. Maria João Sande Lemos, amiga de Sá Carneiro e uma das primeiras militantes do PSD, recorda-se do líder do PSD ainda na JSD, em 1974, quando fez parte do Conselho Nacional do PPD. “Lembro-me desses tempos e era uma pessoa muito estimável.”

Se Rio é herdeiro de Sá Carneiro não diz. Mas tem-no em boa conta. “O Dr. Rui Rio não será carismático, mas é um homem inteligente, um homem bom, é uma pessoa séria. Espero que corresponda ao património que o Dr. Sá Carneiro deixou.”

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