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Pandemia de Covid-19

Recolher dados étnico-raciais ajuda a combater a Covid-19? Uns defendem que sim, outros são "visceralmente contra"

20 nov, 2020 - 13:30 • João Carlos Malta com Reuters

A questão começa a ser discutida na Europa e já está ao rubro em países como França. Alguns investigadores defendem o acesso a mais dados para melhor afinar as políticas públicas de combate à pandemia. Outros evocam questões de privacidade e discriminação e dizem que décadas desta abordagem nos EUA e no Reino Unido não têm tido sucesso. A recolha de dados étnico-raciais é útil ou distrai do essencial?

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Há muitos países europeus que estão a evitar decompor os dados da Covid-19 de acordo com critérios raciais ou étnicos por preocupações com a privacidade e potencial discriminação. No entanto, o impacto descomunal do novo coronavírus sobre os cidadãos negros e asiáticos expôs falhas nesta abordagem, defendem alguns cientistas e ativistas citados pela Reuters.

Em Portugal, o investigador do ISCTE e coordenador do Observatório da Emigração, Rui Pena Pires, não tem dúvidas do lado em que se posiciona nesta discussão.

Sou visceralmente contra dados étnico-raciais, a não ser que viesse alguém dizer que as pessoas por terem a pele mais clara ou mais escura eram − por isso mesmo e não outra razão qualquer − mais vulneráveis a uma determinada doença, o que não é o caso. Não percebo qual a utilidade da recolha destes dados”, diz à Renascença o académico, que integrou a comissão que discutiu a introdução deste tipo de dados no Census.

Por outro lado, o dirigente da SOS Racismo, José Falcão, pensa que "é muito importante que esses dados existam”, até porque “não sabemos nada da Covid, estamos todos a aprender”.

Na Europa, avança a Reuters, formou-se um grupo de cientistas e ativistas que “querem uma recolha de dados mais abrangente em todo o continente” para melhor compreender porquê e como é que a Covid-19 afeta diferentes comunidades e, assim, “ajudar os países a adaptar os testes e cuidados para melhor as proteger”.

Recolha estatal legitima classificação racial

Ao arrepio desta linha, a própria Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, disse no início deste ano que os dados mais completos em países como o Brasil, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos serviram um propósito importante.

Demostraram um impacto devastador da Covid-19 sobre os afrodescendentes, bem como sobre as minorias étnicas em alguns países” defendeu Bachelet. “Esperamos que haja padrões semelhantes noutros lugares, mas não podemos dizê-lo com certeza, dado que os dados por raça e etnia simplesmente não estão a ser recolhidos ou relatados.”

Pena Pires contesta a importância desta decomposição racial e étnica dos dados no contexto da pandemia. Para o investigador, a recolha de dados étnico-raciais quando se quer intervir sobre a desigualdade “não serve rigorosamente para nada”. E pior, tem um efeito perverso, argumenta.


Mapa Covid-19 do continente europeu

“Sempre que se faz uma recolha por autoridades públicas institucionalizadas de dados étnico-raciais, sempre que o Estado classifica a população com estes critérios, está a dar legitimidade a essa classificação.

José Falcão, do SOS Racismo, pensa o contrário. Defende que estando na posse esses dados “podemos fazer políticas públicas específicas, e trabalhar a temática da Covid”.

E acrescenta que esses elementos podem ser fundamentais “até para a saúde”, permitindo “saber a incidência de várias doenças neste ou naquele grupo -- isso não é discriminação...”

Pena Pires rebate a ideia e defende que desagregar dados pela cor da pele e etnia não ajuda a afinar as políticas públicas, que na sua opinião devem ter por base as condições materiais das pessoas, “que as torna suscetíveis à epidemia, e não a cor da pele”.

“Não é a nacionalidade dos pais ou dos avós. O que as torna suscetíveis é viverem em condições que propiciam mais contágios”, defende.

Atacar a pobreza sem olhar a etnias

O coordenador do Observatório da Emigração está ciente de que “alguns bairros com piores condições de habitabilidade de Lisboa são maioritariamente negros”. São-no, sublinha, “por causa da origem da discriminação de que parte a desigualdade de hoje".

"Mas se atuarmos sobre esses bairros, temos o mesmo sucesso. Não perdemos eficácia nas políticas públicas e escusamos de dar gás às questões raciais.

Rui Pena Pires diz que é no mundo anglo-saxónico que a recolha de dados por raça e etnia mais tem feito caminho, mas “sem muito sucesso”.

“Há uma coisa que é importante ter presente. A utilização de classificações raciais para organizar políticas públicas é algo que aconteceu no mundo anglo-saxónico, [mas] nos outros países europeus ou é inconstitucional, como na Alemanha, ou é muito criticado como em França”, adverte.

E acrescenta que o início deste tipo de recolha de dados sucedeu numa altura em que a extrema-direita não tinha a representatividade que tem nos dias de hoje na Europa.

“As pessoas querem fazer com a mesma ligeireza classificações que não serviram para nada. No contexto político que existe, acho que há uma dose razoável de irresponsabilidade. É o mínimo que posso dizer.

Raça ou etnia "não são do foro íntimo"

Falcão, por outro lado, defende que estes dados já deviam estar no Census e que, sem eles, não há forma de avançar em Portugal com um processo deste género (o Governo não avançou com a medida depois do parecer negativo do Instituto Nacional de Estatística - INE).

Na ótica da privacidade, o dirigente da SOS Racismo defende que os dados de raça e etnia não são dados do “foro íntimo”, e lembra que já são usados “em hospitais, escolas e polícia”, acrescentando que tanto ciganos como afrodescendentes queriam que esta informação fosse conhecida e trabalhada de forma a reduzir a discriminação no país. “Mais de 80% disse que sim”, refere.

A União Europeia prometeu em setembro examinar os obstáculos para harmonizar a recolha deste tipo de dados em toda a Europa. A ideia, diz a UE, é a de “entender aspetos estruturais do racismo e da discriminação". A mesa redonda para debater o assunto está planeada para o final de 2021, disse a Comissão Europeia à Reuters.

O que mostra a experiência

Alguns dos grupos de defesa dos Direitos Humanos e investigadores da área que pedem dados mais abrangentes há décadas estão céticos de que a mudança seja suficiente para fazer uma grande diferença.

A desagregação de dados para revelar padrões entre subgrupos da população pode ser usada para lidar com a desigualdade.

Há alguns exemplos, como nos Estados Unidos, em que os dados de etnia permitiram às autoridades identificar que as taxas de infeção de VIH/Sida estavam a crescer significativamente mais rápido entre os afro-americanos e hispânicos do que entre a população em geral, o que permitiu desenvolver programas direcionados para reduzir a taxa de infeção nessas comunidades.


Dados Covid-19 por região

Em abril deste ano, o Centro de Controlo e Prevenção de Doenças dos EUA começou a recolher dados dos estados para um rastreador semanal que agrega as infeções e as mortes por raça associadas à Covid-19. Mas a maioria dos países europeus tem-se mostrado menos disposta a registar a composição racial das suas sociedades.

A história de perseguição na Alemanha nazi deixou alguns grupos como os ciganos relutantes em ter a etnia registada. Em vez disso, os governos europeus usam elementos, como local de nascimento dos pais, idioma ou religião.

Na ausência de dados abrangentes, a Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia e o Instituto Nacional de Estudos Demográficos em França realizaram estudos mais pequenos para conhecer as desigualdades raciais antes e durante a pandemia.

Em França, a porta-voz do Governo, Sibeth Ndiaye, pediu que o debate sobre os dados de etnia seja revisitado, mas a ideia foi rejeitada pelo gabinete do Presidente Macron. Em julho, no entanto, o Instituto Nacional de Estatística e Estudos Económicos (INSEE) publicou o país de nascimento das vítimas do coronavírus entre março e abril. Os dados apontaram que a mortalidade das pessoas nascidas na África Sub-Sariana aumentou 114% em 2020, em comparação com um aumento de 22% entre as vítimas nascidas em França.

O estudo nacional sobre as infeções por coronavírus forneceu dados sobre casos entre imigrantes de primeira e segunda geração. Mas o que é necessário saber, argumentam alguns investigadores, é se as pessoas de cor têm maior probabilidade de morrer depois de infetadas – tanto migrantes quanto franceses não-brancos.

Condições materiais é que definem vulnerabilidade

Apesar de alguns exemplos com resultado positivo, o investigador português Rui Pena Pires não acredita nesta abordagem racial e insiste que é a “classe social, as condições de habitabilidade e de alojamento, e todas as condições materiais de vida das pessoas” que torna cada um de nós mais ou menos vulnerável à Covid-19.

Para Pena Pires, o que é determinante é se as pessoas vivem “em alojamentos sobreocupados ou não, se têm de andar em transportes públicos sobrelotados ou não”, exemplifica.

“Não entendo o que é que a cor da pele tem a ver com a facilidade de contágio ou maior vulnerabilidade ao contágio e, por isso, não consigo perceber o que se ganha com essa recolha.”

Quando classificamos racialmente, enfatiza, “pensamos que isso só tem consequências para as populações que são vítimas da desigualdade racial, mas não é verdade. Isso permite afirmar coisas, como Trump tem dito nos EUA, sobre a supremacia branca e outros disparates do género. Não sei se é responsável estar a fazer essas experiências”.

Discussão ao rubro na Grã-Bretanha e França

Já na Grã Bretanha, onde a recolha de dados étnicos é feita há várias décadas, está a decorrer um debate sobre como responder aos estudos que demonstram o impacto de indicadores como a pobreza e as moradias sobrelotadas entre as minorias étnicas, apontados como os principais responsáveis pelas taxas mais elevadas de infeção pelo coronavírus.

O Instituto de Investigação sobre a Igualdade Runnymede Trust e o Instituto para a Investigação de Políticas Públicas relatou, em outubro, que 58 mil pessoas teriam morrido na primeira onda do coronavírus na Grã-Bretanha se a população branca enfrentasse o mesmo risco que as comunidades negras.

Mas Raghib Ali, conselheiro do Governo para o novo coronavírus e etnias, argumentou que os dados sobre a etnia estavam a mascarar outras formas de risco e não mereciam ser classificados como um fator isolado.

Um relatório da Agência de Saúde Pública de Inglaterra, em junho, sugeriu que pessoas negras, asiáticas e de outras minorias étnicas no país podem ter menos probabilidade de procurar atendimento médico por causa do racismo sistémico. Em outubro, Raghib Ali respondeu que não havia provas de que as minorias fossem tratadas de forma diferente no hospital.

“Não apresentaram nenhuma evidência objetiva”, disse sobre o relatório da agência pública. “Não acho que o racismo estrutural seja uma explicação razoável.”

Halima Begum, diretora do Runnymede Trust, discorda. “Sabemos que o racismo limita o acesso das pessoas aos serviços, da saúde à habitação”, defende em declarações à Reuters.

“Os sindicatos identificaram que as minorias têm menos probabilidade de desafiar os chefes quando a questão é continuar a trabalhar durante a pandemia. Frequentemente, hesitam em aceder ao sistema de saúde por medo de não serem bem tratados”, acrescenta Begum

Em França, os que concordam com esta tese dizem que os dados disponíveis provam que as desvantagens socioeconómicas são, em parte, causadas pela discriminação racial.

É claro que estão a morrer porque são pobres”, diz Stephanie Mulot, socióloga que investiga as questões das desigualdades raciais em França. “Mas por que têm tanta probabilidade de serem pobres? É a discriminação acumulada - no acesso a uma casa confortável, à saúde, ao emprego. É isso que queremos provar.”

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