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Reportagem

Dois anos da derrocada em Borba. “Nunca mais vamos esquecer esse dia”

19 nov, 2020 - 07:00 • Rosário Silva

A pandemia não apagou a memória do dia em que a derrocada de um troço da antiga estrada municipal 255 matou cinco pessoas. No local nada mudou: os sinais de perigo de derrocada e de pedreiras em funcionamento lá estão e a estrada continua encerrada ao trânsito. Os familiares receberam indemnizações, mas eterniza-se uma “chaga”. E culpados?

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Em Borba, é dia de atendimento aos munícipes. As irmãs Isabel e Caetana, aguardam a chegada do presidente da Câmara. Querem pedir apoio para um familiar que está com um problema grave de saúde. De máscaras nos rostos, a pandemia começa por ser o tema da conversa que encetamos, no concelho que é um dos vários do Alentejo, com risco elevado para a Covid-19.

Recuamos dois anos, no tempo e na memória, onde permanece guardado o dia em que a derrocada de um troço da antiga estrada municipal 255, que liga Borba a Vila Viçosa, matou cinco pessoas.

“Mesmo com a pandemia, essa tragédia ainda está muito presente, pois faleceram pessoas que ainda faziam falta e outros ficaram psicologicamente afetados”, recorda Isabel Ferrão, de 62 anos. “Nunca mais vamos esquecer esse dia”.

“Sim, não é para esquecer”, reforça a irmã, lamentando o estado em que a estrada ainda se encontra. “Não mudou nada, já deviam ter feito uma passagem, pois perdemos todos”, lamenta Caetana Pé Curto, de 74 anos. “Nunca mais fui para ali, com receio. A gente fica com um bocado de respeito”.

Do outro lado da rua, no café de Maria José Ricardo, cruzam-se pessoas e conversas. “Se o assunto vier à tona, as pessoas lembram-se, claro, nunca ninguém vai esquecer o que aconteceu, mas com o tempo deixa-se de falar no assunto”, assegura a proprietária, de 51 anos.

Com as atenções centradas na crise sanitária, a tragédia acabou por ficar para segundo plano. “Infelizmente, quando vem uma desgraça, esquece-se a anterior, não é?”, questiona, para admitir logo de seguida que “a coisa está mais sossegada” e que “com a pandemia as coisas vão-se esquecendo.”

Natural de Vila Viçosa mas a viver há 40 anos em Borba, José Poeiras, proprietário de uma típica taberna, fez, vezes sem conta, a estrada “real” que viu passar reis e rainhas da Dinastia de Bragança.

Sem que se vislumbre a possibilidade de reabilitação, eterniza-se uma “chaga” na paisagem, com cerca de uma centena de metros, onde permanece apenas a sinalização de perigo de derrocada, mantendo-se encerrada ao trânsito desde o acidente, a 19 de novembro de 2018.

As imagens da estrada que ruiu em Borba
As imagens da estrada que ruiu em Borba

A população anseia por uma nova ligação entre os dois concelhos, que encurte distâncias e recupere laços afetivos que, entretanto, se perderam.

Queria uma estrada nova”, diz José Poeiras, com 60 anos. “Quando vamos a Vila Viçosa lembramo-nos logo da antiga estrada. Não está certo, tinham que amanhar a nossa estrada”.

Historiador defende reabilitação da estrada

A antiga Nacional 255, com o tempo, foi despromovida a estrada municipal, mas, na verdade, nunca deixou de ser a principal para grande parte das populações dos concelhos de Borba e Vila Viçosa. São quase seis quilómetros que encurtavam distâncias, evitando a variante à Autoestrada A6.

Pedreiras de um e de outro lado e, no meio, uma estreita linha de empedrado, a fazer lembrar uma terra que foi berço de gente ilustre. No corre-corre dos dias, quem por ali passava tinha uma profissão, uma motivação ou uma necessidade. De docentes a alunos, de empresários a trabalhadores, de peregrinos a turistas, todos por lá passavam, tranquilamente, até ao trágico acidente.

Depois do desastre, o investigador Tiago Passão Salgueiro publicou o livro “A Estrada Real – memórias do caminho entre Borba e Vila Viçosa”. Uma obra que dá a conhecer factos significativos sobre a utilização deste caminho durante séculos.

O autor pretendia oferecer um instrumento relevante para a requalificação da estrada, remetendo para o aproveitamento turístico e, sobretudo, preservando uma memória afetiva que permanece no espaço e no tempo.

À Renascença, dois anos depois, afirma que “é com alguma tristeza” que olha para esta situação, “pois tinha sido dada uma garantia, até por parte dos políticos, sobre a possibilidade de um projeto que reabilitasse a estrada.”

O historiador local considera que “do ponto de vista técnico é possível”, mas reconhece que, “em termos de investimento”, pode não se justificar a reabilitação da estrada.

“Essa é a grande dúvida, mas tanto os empresários como as populações veem com bons olhos a recuperação da via, agora do ponto de vista do projeto. Não sei se há alguma possibilidade de isso acontecer, pois tudo depende dos decisores políticos”, observa.

Tiago Passão Salgueiro admite que, com a pandemia, as pessoas passaram a ter outras prioridades, mas lembra que “a estrada fazia parte do nosso quotidiano, com grande relevância para a economia dos dois concelhos e para o turismo”, patrimonial e religioso.

Autarca no banco dos réus contra vontade da população

A 3 de dezembro, arranca a fase de instrução do processo. Há oito arguidos entre eles o presidente da Câmara Municipal, António Anselmo, facto que não é bem visto pelos moradores que saem em defesa do seu autarca.

“Não podemos estar a culpar ninguém. Por exemplo, o nosso presidente, ele até podia saber, mas havia muita gente que também sabia e nunca se acusaram. Ele não é o único culpado”, opina Caetana Pé Curto.

Para Maria José Ricardo, “o que aconteceu não tem retorno”. Além do mais, “se as câmaras vão mudando de presidência, porquê só culpar os últimos? E os donos das pedreiras não têm culpas?” questiona, argumentando que a existência “de só um ou dois culpados não é justo”.

A mesma opinião é manifestada por José Poeiras. “Acho mal. O presidente é que tem apanhado com tudo, mas ele não é o único culpado, pois a estrada é de Vila Viçosa e de Borba e depois há os donos das pedreiras também”.

Contactado pela Renascença, António Anselmo não quis gravar declarações, mas reiterou que “lamenta” o acidente de há dois anos. O presidente da Câmara Municipal de Borba diz aguardar “com a tranquilidade possível, o desenrolar do processo em tribunal”.

À margem do processo judicial, os 19 familiares e herdeiros das vítimas mortais da derrocada já receberam indemnizações do Estado, num montante global de cerca de 1,6 milhões de euros, cujas ordens de transferência foram concluídas no final de junho de 2019.

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