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"Se não tivermos cuidado, a neutralidade carbónica pode aumentar as desigualdades sociais"

17 nov, 2020 - 08:56 • José Pedro Frazão

A investigadora que coordenou tecnicamente o Roteiro para a Neutralidade Carbónica em Portugal diz que faltam políticas públicas para chegar a um objectivo que só se consegue com transformação económica estrutural. Outro investigador defende uma aceleração de políticas transversais para alcançar às emissões zero daqui a 30 anos.

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Faltam políticas públicas para atingir os objetivos da neutralidade carbónica. É a opinião de Júlia Seixas, professora da Universidade Nova de Lisboa e que coordenou tecnicamente o Roteiro para a Neutralidade Carbónica em Portugal. Dois anos depois, diz a investigadora, o documento mantém-se válido mas é insuficiente.

"O Roteiro, da forma como está, deu as respostas que era necessário dar na altura. É um estudo técnico de base que depois foi adotado numa visão política. O Roteiro preparou um conjunto de análises bastante abrangente e com envolvimento de muitos agentes da economia. Mostrou como seria possível, numa perspetiva técnica e tecnológica, atingir a neutralidade carbónica em 2050. Mas há muitas coisas que é preciso considerar e que não estão no Roteiro para a Neutralidade Carbónica", alerta Júlia Seixas no programa "Da Capa à Contracapa" da Renascença em parceria com a Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Refere-se a uma componente de políticas públicas essenciais para cumprir a neutralidade carbónica em 2050 que, assegura, não está contida no Roteiro cuja parte técnica coordenou. A especialista insiste que o Roteiro tem apenas "indicações de como deve ser atingida" a neutralidade carbónica mas falta "um caminho muito grande de desenho das politicas públicas" para lá chegar.

"Se não tivermos cuidado e não ajustarmos de forma correta as políticas públicas, a neutralidade carbónica pode aumentar as desigualdades sociais", argumenta Júlia Seixas que dá o exemplo do acesso à mobilidade elétrica, onde um cidadão informado sobre a origem das alterações climáticas pode sentir-se "culpado" por utilizar diariamente um automóvel que consome gasóleo e gasolina.

"Provavelmente gostaria de ter acesso a um veículo elétrico. O incremento da mobilidade elétrica está no Roteiro? Sim. Mas quem tem acesso atualmente à mobilidade elétrica? É preciso uma bateria de políticas económicas, fiscais, etc. Apenas as classes média e média-alta têm acesso de forma imediata às tecnologias que nos proporcionam uma aceleração para a neutralidade carbónica", acentua Júlia Seixas na Renascença.

Melhor habitação, comércio mais sustentável

A investigadora junta-se no "Da Capa à Contracapa" a outro cientista que trabalhado intensamente na ciência das alterações climáticas em Portugal.

Pedro Matos Soares, físico e investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa está também preocupado com as políticas públicas para alcançar as metas de redução de emissões.

"Por exemplo, a política de habitação é fundamental para combater as alterações climáticas nas cidades. Não podemos ter as pessoas a viver a 40, 50, 60 quilómetros de onde trabalham. Estamos a penalizar a economia pelo tempo que as pessoas perdem. estamos a gastar recursos para as pessoas se deslocarem. Estamos a emitir ou mais tarde, se tivermos transportes públicos elétricos, a gastar energia desnecessariamente. Temos que ter uma política habitacional verdadeiramente diferente para reduzir a mobilidade. Incluindo a eficiência dos edifícios. A pobreza energética em Portugal é uma tragédia", afirma Pedro Soares para quem a Europa está no caminho certo ainda que lento no sentido da neutralidade carbónica.

O investigador propõe uma aceleração da trajetória europeia, eventualmente com a possível companhia dos Estados Unidos caso se confirme uma mudança de estratégia climática em Washington.

"Era muito importante termos acordos comerciais mais responsáveis do ponto de vista da ação climática. É uma exigência que temos que fazer aos nossos políticos. A Europa tem trilhado o seu caminho no sentido certo. Mas estamos muito atrasados quando falamos de um balanço zero nas sociedades europeias em 2050. Isso não deixa de ser uma necessidade tardia para afrontar o problema das alterações climáticas", complementa Pedro Matos Soares.

Pandemia não travou o problema

Os investigadores acentuam que a pandemia levou a uma redução de 8,8% emissões de CO2 para a atmosfera, em termos globais, no primeiro semestre do ano. No entanto, as concentrações deste gás responsável pelo efeito de estufa continuaram a aumentar e a temperatura média global continua a subir.

"Como houve menos atividade económica tivemos menos emissões de gases de estufa mas não tivemos menores de concentrações de gases na atmosfera. Temos que ter cuidado porque as concentrações na atmosfera continuaram a subir. Do ponto de vista do sinal climático não retirámos boas notícias. Em 2020, estamos infelizmente a caminhar para o ano mais quente de sempre. O último recorde estabelecido da temperatura média global foi de 2016. Ainda não chegámos ao fim do ano, mas as séries de 2020 apontam este como um ano record face a 2016", sintetiza Pedro Matos Soares do Instituto D. Luiz da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

No fundo, conclui Júlia Seixas, tivemos melhorias ambientais devido à pandemia, mas isso não chega para constituir uma estratégia para a redução de emissões.

"Tivemos, ao vivo, aquilo que poderia ser uma cidade e um Tejo livre de poluição, naquilo que é o impacto visível das atividades humanas. Mas não é de todo um exemplo daquilo que devem ser as políticas e o desenvolvimento de uma economia para a neutralidade carbónica", remata esta investigadora da Universidade Nova.

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