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Opinião de Graça Franco
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Opinião

Caso do hidrogénio. Suspeitas de corrupção retiram-nos oxigénio

06 nov, 2020 • Opinião de Graça Franco


Ainda ninguém percebeu em que caso se inclui a polémica decisão de dar luz verde ao “negócio do hidrogénio” em Sines, cuja fatura podemos ser chamados a pagar por mais de 30 anos. O facto de estar, desde 2019, sob investigação da PJ e do Ministério Público não nos descansa. Julguem-se os corruptos ou limpe-se-lhes o nome. Depressa.

Os governantes, por definição, deviam ser competentes e honestos. Mas admitamos que, nalguns casos, possam ser incompetentes mas honestos ou até competentes desonestos. Nesses casos, preferiria naturalmente os primeiros e jamais votaria nos últimos. Não há, contudo, categoria mais desprezível do que a dos incompetentes desonestos. Estes sendo uma ínfima minoria, à mistura com os “rouba mas faz”, constituem uma espécie de lixo tóxico que mina a política e ameaça a democracia.

Ainda ninguém percebeu em que caso se inclui a polémica decisão de dar luz verde ao “negócio do hidrogénio”, cuja fatura podemos ser chamados a pagar por mais de 30 anos. O facto de estar, desde 2019, sob investigação da PJ e do Ministério Público não nos descansa. E uma coisa se exige: já que se juntou a suspeição de corrupção e tráfico de influências à polémica da sua razoabilidade, a Justiça deve-nos mais do que nunca uma coisa -- eficácia. Julguem-se os corruptos ou limpe-se-lhes o nome. Depressa.

Só a ameaça de que iremos pagar mais uma vez, na fatura da eletricidade, uma nova bizarria ecológica suportando os custos do experimentalismo energético, causa-me arrepios. O facto de o meu saudoso professor Abel Mateus dar a cara, com outros académicos, na contestação da bondade do investimento e desta inesperada base de reindustrialização, numa área onde temos zero conhecimento e experiência, conforta-me. Eles percebem do assunto e também se arrepiam.

Neste negócio estão envolvidos quase 7 mil milhões de fundos europeus e o Governo jura que nem um cêntimo sairá dos bolsos dos consumidores, para pagar aos novos “rentistas”durante as próximas décadas. Não chega. Por serem comunitários, os fundos, são igualmente de todos nós e os portugueses estão escaldados com promessas sistematicamente incumpridas de projectos “magníficos” escandalosamente contratados.

A súbita paixão pelo hidrogénio e pela reabilitação de Sines cheira a esturro, e por isso deve ser longa e profundamente escrutinada, mesmo que se trate apenas de uma decisão vagamente precipitada ou simplesmente arriscada. Pode mesmo ser saudavelmente “fora da caixa”. Precisamos perceber como e porque foi.

Não basta o Governo falar de 74 interessados, no negócio, para provar a sua bondade. Se explicarem melhor todo o processo e sobretudo para onde se inclinam, no final da escolha, talvez todos percebamos. Insultar quem discorda, como fez o secretário de Estado da Energia, ao apelidar um académico, seu opositor, “de charlatão encartado”, é sinal de fraqueza e falta de argumentos. Mais uma vez, não nos descansa.

A notícia da "Sábado" desta semana inquieta ainda mais. Não por voltar a falar do polémico projecto de investimento candidato a novo elefante branco, mas porque levanta uma suspeição grave sobre a relação do ministro da economia e do secretário de Estado da Energia com um dos potenciais consórcios melhor posicionados. Eles são os suspeitos do costume: EDP, REN, GALP, agora juntos à Martifer e aos holandeses da Vespa, quase todos nossos conhecidos de uma série de outros processos em que estão a braços com a justiça.

A "Sábado" revela que as relações entre membros do Governo e alguns destes interessados deram origem a um processo de investigação por denúncia de corrupção, tráfico de influência e crimes conexos, envolvendo Siza Vieira e João Galamba.

Parece não haver sequer arguidos nesse processo. Em rigor “mais nada” de concreto ficamos a saber. Mas a notícia, em si, da existência da investigação, devidamente confirmada, é já suficientemente grave.

Com tanta gente candidata ao bolo de muitos milhares de milhões comunitários não faltarão ressabiados e não espanta a crítica final a qualquer que fosse a decisão. Ainda assim, não é caso para desvalorizar uma denúncia apresentada na PGR e a que esta atribuiu credibilidade para estar a ser investigada pela polícia judiciária.

Mesmo que seja má fé e dor de cotovelo do denunciante, o Ministério Público tem, neste novo processo, o dever cívico acrescido de celeridade e eficácia.

Primeiro: porque é particularmente irritante que sejam os jornais (neste caso a Sábado) a saber, mesmo antes dos envolvidos, que correm processos contra eles. Isto ou é pura incompetência do sistema judicial ou é ainda pior, má fé, instrumental. Uma estratégia da defesa ou da acusação para, das duas, uma: avisar os suspeitos de que há uma investigação em curso ou prejudicá-los deliberadamente para que, na Praça Pública, a acusação se faça sem ter de passar nos tribunais.

A precipitada conclusão de que “não há fumo sem fogo” não se aplica só às redes sociais. Ora, o tipo de prejuízo causado à investigação permanece e repete-se há décadas, quando devia ser considerado intolerável.

Segundo: A energia queima. Não apenas carvão ou petróleo ou outra fonte qualquer. Queima políticos que pretendam, de uma forma ou outra, fazer face aos lobistas. Temos tantos exemplos de políticos afastados, pelas empresas tuteladas, que nem a mudança de cores do Governo os poupa. Quem se mete com a energia leva (PS, PSD, CDS ou BE). Por isso estamos de tal modo escaldados que somos levados a acreditar mais facilmente em tramóias nesta área.

Terceiro: Em Portugal desde a liberalização do mercado de eletricidade as apostas nas renováveis (energia solar, eólica ou de aproveitamento da força das ondas) tem sempre rentabilidade garantida para os empresários e custos garantidos para os consumidores. Estamos todos um bocadinho fartos para apoiar mais um.

Quarto: Os políticos portugueses acusados do que quer que seja, nunca desmentem com factos e nunca se demitem. Estamos habituados. Primeiro ignoram, depois indignam-se, ameaçam sempre os adversários com processos, raramente contestam com factos, mas alegam sempre boas intenções e má fé de quem os contradiga.

Desta vez, nada de novo. Siza Vieira veio dizer que é “normal”,a pedido dos colegas, encontrar-se com empresas sejam ou não concorrentes a grandes concursos, dependam ou não da sua tutela. E com estas, insistiu como se fosse uma mera curiosidade, o encontro foi a pedido do ministro do ambiente, de quem dependia o concurso. Mas o que se passou na reunião e para que foi chamada a sua presença? Não disse. Desmentiu confirmando parte da acusação.

É tudo normal. Vale a pena lembrar que Armando Vara(julgado e condenado por tráfico de influências) deu uma entrevista, em que mostrou não perceber a diferença entre a pratica do “crime” e o exercício do trabalho para a qual era pago. Não via nisso, aliás, mal nenhum. Acho que ainda hoje não percebeu o que fez de errado. O mesmo trauma atinge outros políticos, e não se restringe a um pequeno grupo de “facilitadores” inconscientes mas profissionais.

Quinto: Um homem tem poucas coisas mais sagradas do que a sua honra profissional e reputação pessoal. Lançarem suspeitas indevidas sobre elas é particularmente indigno. Siza Vieira e João Galamba têm, como todos os cidadãos, direito a vê-las permanecer imaculadas. É preciso que se saiba já (ou quanto antes) se o seu procedimento foi normal ou não. Mesmo que se prove incompetência, é importante que não se manche a sua honestidade.

Sexto: Se os governantes visados deixassem, por sua iniciativa, o Governo podiam esperar em paz pelo tempo da justiça. Permanecendo dentro do Executivo torna-se “tóxica” a suspeita que os atinge e alarga-se ao todo. É essa mancha de suspeição que polui a vida política, aqui e por todo o lado. Isso faz o povo pensar que “são todos iguais”. Não são.

É isso que mina de tal modo a autoridade e o respeito que a governação exigiria, que permite a um simples pivot de televisão sentir-se no direito e no dever de interromper um discurso presidencial para avisar os espectadores que o orador estava obviamente “a mentir”. Aconteceu, esta semana, a meio de uma intervenção televisiva de Trump. Um produto da luta política que pactua com a incompetência e banalizou a desonestidade.

Comentários
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  • João Lopes
    08 nov, 2020 Viseu 19:51
    Artigo interessante! Confiemos na Justiça. «Um Estado que não se regesse segundo a justiça, reduzir-se-ia a um bando de ladrões»: Agostinho de Hipona (354-430).
  • Cidadao
    08 nov, 2020 Lisboa 10:59
    Hidrogénio: mais um "rentismo", mais um Elefante Branco para sustentar. O mesmo que se passou com as Eólicas, Solares e quejandos. Depois das PPP's, depois da Banca, depois da TAP, aí vem mais um "rentismo" para ser pago por nós. E ninguém diz nada...
  • Ivo Pestana
    07 nov, 2020 Funchal 11:56
    Obrigado pela sua sabedoria.
  • César Augusto Saraiva
    07 nov, 2020 Maia 09:21
    Excelente! Que mantenha sempre a sensatez, o rigor e o realismo com que escreve... Longa vida; Parabéns!