28 out, 2020
Foi em 1835 que surgiu publicada em Paris a famosa obra de Alexis de Tocqueville «A Democracia na América», transformando o seu autor num dos mais argutos observadores europeus da vida política do novo mundo norte-americano. A obra de Tocqueville partia do estudo (e do elogio) das instituições políticas americanas – os três poderes do Estado federal, os partidos, os governos estaduais, as associações cívicas, os costumes e a religião – para elaborar de seguida uma teoria política do Estado democrático, como realização de um ideal superior, que casava harmoniosamente a liberdade com a igualdade. Mais do que qualquer povo europeu do tempo, os americanos eram livres porque eram iguais (perante o Estado) e eram iguais porque eram livres (na sua vivência em sociedade). A América, percebia-se nas entrelinhas de Tocqueville, era o grande exemplo, o grande farol, a grande inspiração, com a sua dimensão, o seu pluralismo e a sua vitalidade, para os cidadãos livres de todo o mundo.
Não sei o que Tocqueville diria, se ressuscitado ou de além-túmulo, sobre a situação da América hoje, no outono de 2020, à beira de uma eleição que coloca, frente a frente, o presidente Donald Trump e o candidato Joe Biden. Suspeito, no entanto, que acharia que algo de esquisito, de estranho, de anormal, de indesejável (os qualificativos poderiam multiplicar-se) tinha acontecido, algures, à sua bem-amada América.
Escrevo a menos de uma semana de os americanos e de o mundo saberem quem vai mandar sobre os primeiros e influenciar de alguma maneira o segundo nos próximos quatro anos – para deixar duas notas.
A primeira nota é a da estranheza e da incredulidade. Como é possível que na maior democracia do mundo (acreditemos que ainda o é), com dois séculos e meio de história, a dimensão de um continente e 330 milhões de concidadãos… a corrida eleitoral tenha ficado reduzida àqueles dois? A sensação de declínio é óbvia. Trump faz de George Bush filho um estadista e Biden quase “canoniza” Obama – isto para não os compararmos a Reagan ou a Carter. O presidente que pretende a reeleição tomou de assalto o Partido Republicano, instalou-se na Casa Branca e exibe um estilo histriónico, populista e caótico, mesmo que em seu redor se descubra a vaga ideia de uma América com um Estado menos pesado e com mais sociedade civil. Joe Biden, o antigo vice de Obama, é o rosto inócuo da fronda anti-trumpista, que tem de bom não ter os anticorpos de Hillary Clinton e de mau servir porventura de fachada presidenciável para as ambições de Kamala Harris e da agenda das “causas” radicais da esquerda, que o denegriram como mais do mesmo, até o aceitarem como possível trampolim para a Casa Branca.
Daí a minha segunda nota, de pessimismo. Mais quatro anos de Trump não vão transformar a América numa “democracia iliberal” ou “supremacista branca” ou quejandos, como o acusam, mas vão cavar mais fundo as divisões sociais e entrincheirar os EUA sobre a sua “grandeza”, retraindo-os do mundo. Quatro anos de Biden servirão para descrispar, mas e depois? Que energia, que nervo, que ideia de América e de mundo dele virão, se pouco o candidato tem concretizado?
No imortal texto da Declaração de Independência dos EUA, em 1776, Thomas Jefferson declarou que o rei Jorge III de Inglaterra era “unfit to be the ruler of a free people”. Se pensarmos na América de Tocqueville, e noutras extraordinárias páginas da história americana, poder-se-ia dizer algo de semelhante sobre Trump ou Biden.