Emissão Renascença | Ouvir Online
José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
A+ / A-

A Democracia na América

28 out, 2020 • Opinião de José Miguel Sardica


Não sei o que Tocqueville diria, se ressuscitado ou de além-túmulo, sobre a situação da América hoje. Suspeito que acharia que algo de esquisito, de estranho, de anormal e de indesejável...

Foi em 1835 que surgiu publicada em Paris a famosa obra de Alexis de Tocqueville «A Democracia na América», transformando o seu autor num dos mais argutos observadores europeus da vida política do novo mundo norte-americano. A obra de Tocqueville partia do estudo (e do elogio) das instituições políticas americanas – os três poderes do Estado federal, os partidos, os governos estaduais, as associações cívicas, os costumes e a religião – para elaborar de seguida uma teoria política do Estado democrático, como realização de um ideal superior, que casava harmoniosamente a liberdade com a igualdade. Mais do que qualquer povo europeu do tempo, os americanos eram livres porque eram iguais (perante o Estado) e eram iguais porque eram livres (na sua vivência em sociedade). A América, percebia-se nas entrelinhas de Tocqueville, era o grande exemplo, o grande farol, a grande inspiração, com a sua dimensão, o seu pluralismo e a sua vitalidade, para os cidadãos livres de todo o mundo.

Não sei o que Tocqueville diria, se ressuscitado ou de além-túmulo, sobre a situação da América hoje, no outono de 2020, à beira de uma eleição que coloca, frente a frente, o presidente Donald Trump e o candidato Joe Biden. Suspeito, no entanto, que acharia que algo de esquisito, de estranho, de anormal, de indesejável (os qualificativos poderiam multiplicar-se) tinha acontecido, algures, à sua bem-amada América.

Escrevo a menos de uma semana de os americanos e de o mundo saberem quem vai mandar sobre os primeiros e influenciar de alguma maneira o segundo nos próximos quatro anos – para deixar duas notas.

A primeira nota é a da estranheza e da incredulidade. Como é possível que na maior democracia do mundo (acreditemos que ainda o é), com dois séculos e meio de história, a dimensão de um continente e 330 milhões de concidadãos… a corrida eleitoral tenha ficado reduzida àqueles dois? A sensação de declínio é óbvia. Trump faz de George Bush filho um estadista e Biden quase “canoniza” Obama – isto para não os compararmos a Reagan ou a Carter. O presidente que pretende a reeleição tomou de assalto o Partido Republicano, instalou-se na Casa Branca e exibe um estilo histriónico, populista e caótico, mesmo que em seu redor se descubra a vaga ideia de uma América com um Estado menos pesado e com mais sociedade civil. Joe Biden, o antigo vice de Obama, é o rosto inócuo da fronda anti-trumpista, que tem de bom não ter os anticorpos de Hillary Clinton e de mau servir porventura de fachada presidenciável para as ambições de Kamala Harris e da agenda das “causas” radicais da esquerda, que o denegriram como mais do mesmo, até o aceitarem como possível trampolim para a Casa Branca.

Daí a minha segunda nota, de pessimismo. Mais quatro anos de Trump não vão transformar a América numa “democracia iliberal” ou “supremacista branca” ou quejandos, como o acusam, mas vão cavar mais fundo as divisões sociais e entrincheirar os EUA sobre a sua “grandeza”, retraindo-os do mundo. Quatro anos de Biden servirão para descrispar, mas e depois? Que energia, que nervo, que ideia de América e de mundo dele virão, se pouco o candidato tem concretizado?

No imortal texto da Declaração de Independência dos EUA, em 1776, Thomas Jefferson declarou que o rei Jorge III de Inglaterra era “unfit to be the ruler of a free people”. Se pensarmos na América de Tocqueville, e noutras extraordinárias páginas da história americana, poder-se-ia dizer algo de semelhante sobre Trump ou Biden.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

  • António J G Costa
    29 out, 2020 Cacém 21:57
    Tocqueville viveu no séc. XIX. No séc XIX, na Europa as coisas eram um pouco diferentes das de hoje. Há 200 anos os EUA podiam ser uma referência para uma Europa de reis e imperadores. O séc. XX com 2 guerras mundiais e o fim dos gigantescos impérios coloniais levaram a Europa de regresso, ao conjunto de pequenos países, ao Inicio. "Condenados" a entenderem-se, para evitarem mais guerras, a "Democracia" lá se foi implantando. E os EUA? Adormeceram, e a queda do muro de Berlim ainda piorou mais a situação......
  • Ivo Pestana
    29 out, 2020 Funchal 14:28
    Os americanos não têm democracia. Uma pessoa um voto, não bastam para eleger, logo não é democracia, mas sim outra coisa. Para não falar como tratam os cidadãos de diferentes étnias.