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​“Ergue-te”: Novo nome de partido pode obrigar religiosas a mudar designação de projeto social

27 out, 2020 - 20:29 • Ângela Roque e Marina Pimentel

Irmãs adoradoras “perplexas” com decisão do Tribunal Constitucional rejeitar pedido para que o partido Ergue-te – antigo PNR – fosse obrigado a alterar a designação que adotou no verão, e que é a mesma do projeto, reconhecido e premiado, com que há anos ajudam quem vive em contexto de prostituição na região de Coimbra.

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O Tribunal Constitucional (TC) rejeitou o pedido para que o partido Ergue-te, antigo Partido Nacional Renovador (PNR), fosse obrigado a mudar de nome.

O pedido tinha sido feito pela Fundação Madre Sacramento, das irmãs adoradoras, que não aceitam que o PNR, de extrema direita, tenha adotado a mesma designação da Equipa de Intervenção Social que a congregação religiosa tem em Coimbra, para ajudar pessoas em contexto de prostituição. Uma confusão ainda mais grave - entende a Fundação – quando os valores que norteiam a ação do projeto ‘Ergue-te’ são o oposto do que é defendido por aquele partido.

Numa decisão assinada por Joana Marques Vidal, ex-procuradora-geral da República, a que a Renascença teve acesso, o Tribunal Constitucional reconhece que a designação do partido cria “confusão” e “ambiguidade” com o projeto social da Fundação.

Mas, a ex-PGR entende que aos partidos políticos não podem aplicar-se as exigências que a lei prevê para o registo das empresas e que, embora a legislação os impeça de se registarem usando expressões diretamente relacionadas com qualquer instituição previamente existente, neste caso a Equipa Social ‘Ergue-te’ “não é uma instituição”. Um argumento contrariado pela advogada da Fundação Madre Sacramento.

“A equipa ‘Ergue-te’ é uma instituição, além de uma marca também é uma instituição, explica à Renascença Ana Beatriz Cardoso, sublinhando que “mesmo que se considerasse, na primeira linha de pensamento desta decisão do Tribunal Constitucional, que não se pode aqui ter em conta as regras de se aplicam às marcas comerciais, a verdade é que equipa ‘Ergue-te’ é uma instituição que está a trabalhar no terreno, que interage com muitíssimas pessoas quotidianamente. Se a equipa ‘Ergue-te’ não é uma instituição, não sei o que será uma instituição”.

De acordo com a advogada, a lei não diz o que é uma instituição, estamos no âmbito do que o Direito chama “conceitos indeterminados”, que cabe ao intérprete preencher.

“Não se pode ter uma ideia ou uma visão do que é uma instituição tão ampla que nada caiba aí. A lei, ou este preceito por nós invocado, tem de ter uma aplicabilidade, senão vamos concluir que nada integra esta noção de instituição. Ora, se é só a confundibilidade com outros partidos políticos, desde que não haja essa confusão, então qualquer designação um partido pode ter. Só se o partido se chamasse ‘Família Ergue-te’, e aí sim haveria uma confusão com a instituição familiar, mas não pode ser. Nós discordamos desta interpretação do que é o conceito de instituição, tem de ser numa perspetiva prática”, afirma.

Decisão do Tribunal recebida com “perplexidade”

A irmã Júlia Bacelar é a presidente da Fundação Madre Sacramento, que endereçou a queixa ao Tribunal. Agora que conhece a resposta não esconde a surpresa com a decisão, que acata “com um profundo sentimento de mágoa”.

“A Fundação e o Instituto das Religiosas Adoradoras manifestam a sua total perplexidade perante a desagradável e inequívoca confusão da aprovação, por parte de um órgão de soberania, neste caso o Tribunal Constitucional, que decidiu aprovar um partido político de extrema direita que se apropriou da designação de uma resposta social e de uma marca, por nós registada há anos”, diz à Renascença.

A irmã Júlia confirma que desde que o ex-PNR lhes “roubou” o nome, em julho, tem havido muitos “dissabores e constrangimentos” no trabalho que fazem no terreno, “mais concretamente em Coimbra, com as utentes e técnicos, comunidade religiosa e voluntários”, mas também a nível internacional. “O Instituto está presente em 25 países, e neste mundo global esta confusão da designação faz estragos em diversas vertentes”, refere.

“Custa desprendermo-nos de um nome que significa tanto”

A irmã Júlia admite que podem vir a mudar a designação da resposta social e da marca ‘Ergue-te’ que criaram em Coimbra. O projeto nasceu em 2009, a marca em 2013. “Foi uma designação sempre muito acarinhada por todo o Instituto, pela Fundação, porque resume, em grande parte, a nossa filosofia de intervenção social”. Mas reconhece que face à decisão do Tribunal Constitucional, mudar o nome pode vir a ser o mais acertado, “apesar da consequente trabalheira burocrática junto das entidades estatais: segurança Social, registo de propriedade, etc…”, sublinha.

A decisão final será tomada numa reunião dos órgãos sociais da Fundação Madre Sacramento, marcada para o final de novembro.

“Quem nos conhece está incomodado com isto”

A partir de Coimbra a irmã Martinha Silva, coordenadora da Equipa de Intervenção Social ‘Ergue-te’, conta à Renascença que têm recebido queixas por haver um partido de extrema-direita com o mesmo nome do projeto e da marca registada de produtos que vendem, em burel e linho.

“As pessoas que nos conhecem, que conhecem a nossa marca e usam os nossos produtos, sentiram-se muito incomodadas com isto. Houve muita gente que nos disse: ‘vou deixar de usar a marca Ergue-te, porque não quero ser confundida com outro tipo de ideias”.

“É uma confusão que, de facto, não é bem-vinda e é prejudicial”, diz, lembrando que “esta marca e este projeto têm de ter sustentabilidade económica, porque todos os produtos que vendemos na Estrutura de Empregos da marca 'Ergue-te', e outros que fazemos, também manufaturados, são para financiar os salários das mulheres que são ali integradas temporariamente”.

Um constrangimento que pode prejudicar a ajuda que estão a dar no terreno às mulheres - a maioria estrangeiras, muitas ilegais -, mas também a homens que se prostituem na zona de Coimbra.

Com a pandemia “piorou tudo”

A irmã Martinha conta que as condições de sobrevivência de muitos dos que ajudam se se agravaram nos últimos meses. “Sim, temos percebido que os pobres e as pessoas que estão em situação de maior vulnerabilidade sofrem muito mais com a pandemia, e então a nossa gente, as pessoas que estão neste tipo de contextos de prostituição, viram a situação agravar-se muito. Piorou tudo”, conta.

“Estamos a falar de pessoas que se prostituem para sobreviver, muitas em situação irregular, que por razões óbvias agora estão muito mais expostas ao contágio. Mas também diminuiu o número de clientes, e então temos muitas pessoas, sobretudo as estrangeiras, que estão a passar muitas dificuldades, inclusivamente para satisfação das necessidades básicas”.


Uma nova realidade a que a equipa ‘Ergue-te’ tenta dar resposta, de forma criativa. “A nível de estrutura de emprego temos estado a equacionar formas novas de fazer propostas que vão ao encontro destas necessidades. O nosso objetivo é que nesta situação de carência possamos acompanhar estas mulheres no sentido dizer 'ok , se calhar é o momento certo para pensares o que é que podes fazer de diferente que não seja a prostituição', que possam perceber que de facto podem fazer outras coisas”.

Um projeto com 11 anos

O projeto ‘Ergue-te’ nasceu em 2009, em Coimbra, no âmbito do carisma e missão das irmãs adoradoras, que já estavam na região desde os anos 90, com uma casa de acolhimento para mulheres vítimas de vários tipos de violência, mas que em 2008 decidiram redefinir a sua intervenção, e com o apoio da Segurança Social criaram um projeto para ajudar mulheres em contexto de prostituição, dia e noite. Têm um espaço de atendimento na baixa de Coimbra, e uma carrinha móvel, com que apoiam quem se prostitui na rua, na estrada, em apartamentos ou bares. E já não apoiam só mulheres.

“Percebemos que havia uma população do sexo masculino que também estava desprotegida e decidimos alargar o âmbito do projeto, que passou a ser uma resposta para pessoas em situação de exploração sexual”, explica a irmã Martinha.

O projeto assegura apoio social, psicológico e de prevenção em saúde. Em 2013 criaram a “Estrutura de Emprego Protegido” (EEP), para treinar hábitos e relações laborais nas pessoas que acompanham, tendo em vista a sua inclusão social. E em parceria com o Centro de Formação Profissional para o Artesanato e Património (CEART) registaram a marca 'Ergue-te' para os produtos que manufaturam.

“São em burel e linho, materiais ancestrais e muito portugueses, e são produtos com design próprio. É uma marca de inclusão social no feminino”, diz Martinha Silva, que gostava que fosse possível preservar o nome, porque “significa que queremos cuidar da vida de cada uma destas pessoas”.

A equipa ‘Ergue-te’ é constituída por quatro elementos, “duas com formação em psicologia, duas em serviço social, temos ainda uma jurista e mais elementos no âmbito das parcerias”. Em 11 anos já acompanharam 1.800 pessoas em situação de prostituição, 97% das quais mulheres.

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