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Postal de Quarentena - Valais

Uma quarentena nas montanhas ao som dos “The Doors”

20 out, 2020 - 06:31 • João Viegas*

Sendo um dos poucos países da Europa ocidental com fronteiras físicas e dada o isolamento das cidades e aldeias, a Suíça adaptou-se bem ao confinamento. Mas o isolamento não deixou de custar e deu tempo para este emigrante português pensar na vida e na forma como o homem vive o planeta.

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“Strange days have found us”. Título tão atual para uma música escrita há umas décadas. Aplica-se bem áquilo que possivelmente todos sentimos naquele período inicial de quarentena. Tempos estranhos estes...

Assim de repente, ceifam-nos as pernas sem qualquer pré-aviso.

Uma gripe? A sério? Mas alguém há um ano, se tivesse de nomear uma doença capaz de colocar o planeta em pausa, escolheria a gripe? Com o nosso atual nível de conhecimento científico seria pouco provável.

O certo é que de repente tudo aquilo que dávamos como garantido, deixou de o ser, o que não pode deixar de pôr em causa a nossa forma de encarar o mundo e a vida em geral. Se existe algum ponto positivo nisto tudo, penso que seja o facto de nos obrigar a parar e pensar. Coisa que nos compelem a fazer cada vez menos.

Por aqui na Suíça a quarentena não foi muito diferente do que nos outros países, se bem que ainda somos dos poucos países na Europa mais ao sul que tem fronteiras físicas, daí que fechar as fronteiras foi relativamente pacifico. No entanto, não deixámos de sentir bastante o isolamento. Este é um pais onde as pequenas cidades e vilas estão dispersas e naturalmente separadas por montanhas e vales o que acabou por jogar a nosso favor, tornando a propagação do vírus num período de confinamento relativamente difícil.

Eu e a Sílvia vivemos aqui desde 2012 com as nossas duas filhas, a Maria e a Mathilde, de 11 e 7 anos respetivamente.

Como pais, obviamente que a nossa maior preocupação num cenário destes são as miúdas. Mas mais uma vez foi impressionante verificar a capacidade de adaptação das crianças a esta nova realidade. Pode parecer um lugar comum, mas é extraordinário verificar que ainda nós andávamos a tentar encaixarmo-nos nesta nova forma de viver, olhando para a casa e a ver germes em todo o lado – acho que todos passámos um bocado por isto – já elas faziam todo o protocolo de higiene como se o fizessem desde que nasceram. Aí percebemos que se calhar tínhamos de estar mais preocupados connosco, dado que para elas isto era apenas mais uma nova rotina. Quando os nossos hábitos e experiência de vida se resumem a uma década, o conceito de normalidade é relativamente efémero.

Dai que nunca partilhei daquela máxima: “estes miúdos de hoje em dia... No meu tempo não era assim...”

Acredito piamente nas novas gerações. Acredito que conseguirão fazer melhor, de forma mais sustentável e mais consciente. Será difícil ter certezas sobre a origem deste vírus, não sei se alguma vez as teremos, mas não posso deixar de sentir que a nossa forma de estar no planeta tem a sua quota parte de culpa, seja na Covid-19, no Ébola ou em tantos outros vírus que já dizimaram milhões de pessoas.

Recordo-me daquelas imagens ao fim de meia dúzia de dias de quarentena, de cidades de elevada densidade populacional, completamente desertas, e dos relatos de água mais transparente ou do céu mais azul em locais onde habitualmente predomina o cinzento.

Quero acreditar que alguma coisa mudará para melhor. Não será amanhã, mas já que temos de ficar fechados, que sirva para pensarmos mais, falarmos mais, sermos mais unidos e solidários. O mundo precisa de uma mudança e essa mudança reside em cada um de nós.


*João Viegas é natural de Alverca mas vive e trabalha na Suíça desde 2012, com a mulher e duas filhas menores.

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