Pandemia nos EUA

Portuguesa esteve internada com Covid-19 em Nova Jérsia. "Era um campo de batalha lá fora"

06 mai, 2020 - 18:44 • Inês Rocha

Clarisse conta como venceu a doença no meio de um “campo de batalha”, num hospital de Newark, Nova Jérsia. Em Chicago, um médico português teve de cancelar cirurgias de doentes oncológicos para os proteger. No Texas, a pressa em reabrir a economia preocupa uma jornalista portuguesa. Três emigrantes portugueses contam como é viver no país mais afetado pela pandemia.

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Portuguesa esteve internada com Covid-19 em Nova Jérsia. "Era um campo de batalha lá fora"
Portuguesa esteve internada com Covid-19 em Nova Jérsia. "Era um campo de batalha lá fora"

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“Já não sinto mazelas, a não ser o cansaço”. Após semanas em casa, mais dez dias internada, a portuguesa Clarisse Frias parece ter recuperado de vez da Covid-19.

Para trás ficaram dias difíceis, com dificuldade de respirar e medo do que pudesse acontecer. Nas urgências do hospital em Newark, Nova Jérsia, sentiu que estava perto de um “campo de batalha”.

“Toda a noite ouvia ambulâncias a chegar, gritos, ouvia os médicos e o staff a correr para os quartos. Tive noção de que não era uma urgência normal, era uma coisa aflitiva”, conta à Renascença.

Quando teve alta, o médico disse-lhe que era das poucas pessoas que tinham a possibilidade de voltar para casa.

Nova Jérsia é o segundo estado norte-americano com mais casos de Covid-19, logo a seguir a Nova Iorque. Já teve mais de 139 mil casos e mais de 9 mil mortes. Menos de metade dos casos em Nova Iorque (mais de 345 mil e cerca de um terço das mortes, que em Nova Iorque já ultrapassam as 26 mil).

Clarisse vive em Newark, a cidade que alberga uma das maiores comunidades portuguesas nos Estados Unidos. Serão mais de 70 mil os registados no consulado, mas muitos outros não se inscrevem, conta a portuguesa, que trabalha na produção de conteúdos para um programa da RTP Internacional.

Nas últimas semanas, a comunidade foi fortemente abalada pela Covid-19. Clarisse vai sabendo pelas redes sociais das mortes. Conhece “histórias dramáticas” que envolvem portugueses, como um pai jovem que deixou crianças pequenas ou jovens aparentemente saudáveis que de um momento para o outro morreram com a infeção causada pelo coronavírus.

A pandemia está a deixar uma marca pesada na região. Aqueles que escapam à doença, não escapam às consequências económicas da quarentena. “Os portugueses fazem de tudo, mas há uma grande comunidade empresarial. Toda a gente está a ser afetada”.

Mais de 30 milhões de pessoas pediram acesso ao subsídio de desemprego, nos Estados Unidos, nas últimas seis semanas. O desemprego subiu para níveis semelhantes aos da Grande Depressão de 1930. A percentagem ainda não está nos 25% de desemprego registados na época, mas já chegou aos 18%.

Nas últimas semanas, a cidade de Newark distribuiu vouchers que podiam ser trocados por comida. “As pessoas estão sem receber, portanto não pagam a renda ou o seguro do carro, mas precisam de continuar a comer”.

Os parques da cidade começaram a reabrir no dia 2 de maio, mas ainda não há previsão de quando os restantes serviços serão abertos.

“Neste momento há um grande cansaço. As pessoas querem retomar a atividade seja de que maneira for. Mas há preocupação, há medo. Toda a gente usa máscara. Há um medo instalado”, conta a portuguesa.

Com mais de 1,3 milhões de infetados, os Estados Unidos são, de longe, o país mundial com mais casos registados de Covid-19. O segundo país com mais casos, Espanha, tem 260 mil.

Também em número de mortos, os norte-americanos são os mais afetados, com mais de 75 mil óbitos. Se olharmos para o número de casos por milhão de habitantes, os EUA aparecem em 11º lugar a nível mundial.

Illinois está para Nova Iorque como Portugal para Itália

O médico portuense Ricardo Soares mudou-se para Chicago, no estado do Illinois, em 2017. É urologista, trabalha num dos hospitais da Northwestern University, em cirurgia oncológica.

O estado onde vive conseguiu controlar melhor a pandemia do que Nova Iorque ou Nova Jérsia, já que tomou medidas mais atempadamente. Até agora, teve perto de 78 mil casos e mais de 3400 mortes.

Ricardo compara os dois estados com Portugal e Itália. Portugal conseguiu ser menos afetado, depois de ver o exemplo italiano e ter tomado medidas mais cedo, tal como o estado onde hoje vive.

Para Ricardo, o maior trabalho vem agora: operar doentes oncológicos com cirurgias em atraso

O isolamento obrigatório entrou em vigor no estado a 21 de março. Antes disso, Ricardo já tinha tomado precauções. “Cancelamos ginásios, a natação do meu filho e optamos por ficar em casa”, conta à Renascença.

No hospital onde trabalha, tudo mudou. Todas as cirurgias não urgentes foram canceladas e, nestas semanas, Ricardo operou apenas os doentes oncológicos mais urgentes.

Ao contrário dos médicos de Nova Iorque, o especialista português não teve de ser realocado às urgências. Em alguns dos hospitais daquele estado, todo serviço de urologia, desde o interno até ao chefe, teve de reforçar as urgências, assoberbadas com a enorme quantidade de casos diários.

As semanas, assim, foram até mais tranquilas do que noutras alturas do ano. Consegue mesmo passar mais tempo com a família, ainda que com muitos cuidados.

Além dos cuidados no hospital, “mal chego a casa, desço à cave e tomo um banho, antes de contactar com eles”.

O maior trabalho vem agora, que o hospital começa a remarcar as cirurgias em atraso. Mas os cuidados, com estes doentes que são de risco, são redobrados.

“O maior problema é na entubação do doente, na anestesia geral, em que o doente está exposto e há emissão de partículas do trato respiratório do doente para o ar”, explica Ricardo Soares.

“Nesse momento a única pessoa que está dentro da sala é o anestesista, com o fato de proteção. As indicações são para esperar cerca de 20 minutos antes de entrar na sala de operações, que é o tempo em que há rotação de ar e em que este é completamente filtrado. Só aí se começa a cirurgia”, conta o urologista.

Texas reabriu economia quando o número de mortes atingiu pico. “Suponho que os casos vão aumentar”

A jornalista Filipa Rodrigues, a viver no Texas há oito anos, viu o governador do estado onde vive reabrir lojas, restaurantes e cinemas, ainda que com capacidade limitada, no dia 1 de maio, quando as estatísticas do estado, no que toca a Covid-19, não eram as melhores. Um dia antes, o estado tinha registado um novo pico de mortes – morreram 50 texanos, o número mais alto até então – e 1033 novos casos – o terceiro número mais alto até então.

Esta sexta-feira, reabrem os cabeleireiros. A abertura dos ginásios está marcada para dia 18 de maio. “Está tudo a abrir. E o pior é que só vamos ver um impacto daqui a duas ou três semanas”, conta Filipa.

“O facto de o governador ser republicano acelera um pouco as coisas a nível de reabertura”, explica a fotojornalista portuguesa, que considera que esta “urgência” em recuperar a economia tem tudo a ver com as eleições presidenciais deste ano.

Por outro lado, a população não está bem informada. “As pessoas continuam a acreditar que o vírus causa uma simples gripe. Aqui ninguém usa máscara ou luvas. As pessoas não tomam precauções. Suponho que os casos vão aumentar”, prevê.

“Tiveram de fechar pelo menos dois parques em Austin porque iam grupos para lá beber cerveja”, conta.

Filipa diz ser “desconfortável” ver tudo isto a acontecer. Está mais preocupada com a possibilidade de infetar outras pessoas sem querer do que em ser contagiada, e por isso usa sempre proteção quando precisa de sair à rua. Preocupa-a a reabertura precoce e também o sub-reporte de casos.

“O governo não está a deixar passar os números corretos e os testes não são suficientes”, garante.

Trabalha na NPR, uma rádio nacional, como freelancer, e no Knight Center da Universidade do Texas, onde organiza cursos para jornalistas. Faz tudo em casa.

Resposta do Governo federal desiludiu

Luz ultravioleta e injeções com desinfetante. As propostas perigosas de Trump para a cura de Covid-19
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Clarisse Frias confessa-se desiludida com a resposta do Governo federal a uma crise tão grave como esta. “Trump pareceu ignorar e menosprezar o perigo”, afirma a portuguesa. Além disso, “é inegável que há alguma desorganização. Há um consenso geral de que o trabalho poderia ter sido melhor”, diz.

A portuguesa considera que esta fase irá ter uma forte influência nas eleições de novembro. No entanto, caso Donald Trump consiga fazer um bom trabalho na recuperação da economia, Clarisse acredita que possa voltar a ganhar. “As pessoas têm memória curta”, considera.

Ricardo Soares vê na política norte-americana uma espécie de religião, mais do que uma discussão de ideias.

“Há muita coisa a criticar no governo federal, como a negação da verdade”, afirma. “Mas se vemos a CNN, vemos um exagero desse problema; se vemos a Fox News, tudo é perfeito”, critica.

Filipa Rodrigues diz ser impossível prever o que vai acontecer na próxima eleição. “Biden desapareceu um bocado, as notícias são todas à volta da covid-19”, lembra.

Se há muito descontentamento com a atuação do Governo nesta crise, também há quem feche os olhos a muita coisa. “Quem apoia Trump, apoia até morrer”, afirma a jornalista portuguesa.

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