Entrevista a Nuno Ornelas Martins

"Portugal tem de interpretar o que está a mudar e ver onde se pode posicionar e investir"

13 out, 2020 - 16:07 • Sandra Afonso

Há uma "reconfiguração geopolítica e geoeconómica" em curso que deve servir de alavanca para criar alicerces económicos fortes no pós-pandemia, defende o economista Nuno Ornelas Martins em entrevista à Renascença.

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Nunca como agora uma crise justificou tanto o apoio do Estado às famílias e empresas, defende o professor catedrático Nuno Ornelas Martins.

Em entrevista à Renascença, o professor da Católica Porto Business School lembra que se mantém a exigência de contas certas no Estado, mas que este não é o momento de corrigir saldos -- os equilíbrios fazem-se em tempos de vacas gordas.

No momento da apresentação do Orçamento do Estado para 2021, o economista destaca que “a austeridade não foi particularmente eficaz” no passado. E que, agora que Portugal se prepara para gastar dinheiro novo de Bruxelas, não devia valer tudo, porque esta é uma solução que já está a ser aplicada há muito tempo e “aparentemente com muito pouco resultado”.

A oportunidade criada pela pandemia de Covid-19 também deve ser aproveitada, diz, para reavaliar a organização da economia nacional, demasiado exposta atualmente a setores como o Turismo, onde prevalecem os baixos salários.

Nuno Ornelas Martins sublinha ainda a voz da Igreja em defesa da redistribuição da riqueza e por uma economia mais justa, agora atualizada na última encíclica do papa Francisco. E, apesar de já ter sido antecipada por muitos, não subscreve a morte do capitalismo; quanto muito, admite, a pandemia poderá levar à reconfiguração do modo de produção.

Muitos antecipam neste momento o fim do capitalismo ou, pelo menos, do modelo atual. É da mesma opinião?

Um dos problemas que há quando falamos de capitalismo é que as pessoas muitas vezes estão a falar de coisas diferentes. Há pessoas que estão a falar meramente na economia de mercado, há pessoas que na verdade querem dizer liberalismo, quando dizem capitalismo.

A palavra capitalismo vem de capital. Portanto, para definir capitalismo temos, primeiro, de perceber o que é o capital, um tema que ao longo da História tem levantado muitas questões. Há quem entenda que consiste essencialmente nos meios de produção físicos usados na economia, há quem entenda que capital é a quantidade de dinheiro que eu tenho para comprar esses bens físicos e depois investir na economia.

Se entendemos por capitalismo um sistema de acumulação de capital, ou seja, acumulação de capacidade de compra, de meios de produção, a acumulação de moeda ou de meios financeiros, é uma coisa. Mas muitas vezes as pessoas falam em capitalismo como economia de mercado, que é diferente.

Há mesmo economistas que defendem que não existe um sistema capitalista. Vivemos num sistema capitalista?

Se falarmos de uma economia de mercado, concorrencial, que é o que muitos entendem por capitalismo (isto era, aliás, o ideal liberal do que era o capitalismo), esse sistema realmente não existe! Nós vivemos numa economia onde os sectores fundamentais são, em larga medida, controlados por empresas que são oligopólios, monopólios, e sectores que não têm de todo o grau de concorrência que um autor liberal defenderia que a economia deveria ter. Nesse sentido, de facto não estamos numa economia capitalista. Mas também, nessa definição, eu não sei se algum dia existia uma economia capitalista.

"A análise económica mudou e passou a pressupor que estamos numa situação permanente de escassez, porque os seres humanos querem sempre mais - define-se o ser humano como 'maximizador de utilidade'. A partir do momento em que se perdeu esta visão da economia como um circuito, torna-se também mais difícil ver qual é o tipo de tributação mais eficiente. É preciso repensar como funcionam os próprios circuitos económicos"

Se entendermos capitalismo como um processo de concentração e acumulação de capital, então, de facto, temos tido grande concentração de riqueza, mais até de riqueza do que de rendimento, em número relativamente reduzido de indivíduos.

Muitos autores têm discutido esta concentração de riqueza.

O livro de Thomas Piketty "O Capital" teve muita influência, ao fazer uma análise dessa concentração. Há autores como Shumpeter, que acha que é muito bom que as empresas concentrem muito capital, porque significa que têm capacidade em investir em inovação, etc.

Há outros autores como o Marx que entendem que isto, por um lado, é negativo, porque estas empresas ao tornarem-se de grande dimensão levam a uma concentração de rendimento que é nefasta para a sociedade. Mas também acabam por trazer a superação do próprio sistema, o proprietário é um acionista cada vez mais ausente e quem está realmente envolvido na produção é quem trabalha.

Parece que sim, que existe uma coisa chamada capitalismo, um processo de acumulação de capital, que se manifesta através do controlo que esse capital acaba por ter sobre os meios de produção, mediado através das companhias ou corporações internacionais, que têm personalidade jurídica própria. Muitas vezes pensamos que os acionistas das empresas são os detentores do capital da empresa, mas juridicamente o detentor é a própria empresa, o que o accionista tem é apenas o direito a receber um dividendo ou a transacionar as ações.

A outra definição de capitalismo é apenas um ideal, um sistema pensado e idealizado por algumas pessoas.

Compreendendo o capitalismo como acumulação de capital e controlo dos meios de produção, esta pandemia pode ser um momento de rotura com este sistema, este modelo?

Se me pergunta o que é que acontece, temos primeiro de ver o que é que está a acontecer na pandemia. O que é que acontece, por exemplo, com as cadeias de produção? Juntamente com a pandemia também temos tido situações como os Estados Unidos a não quererem manter o mesmo sistema produtivo a nível global, no sentido em que já não veem a China da mesma forma que viam antes.

Então, temos de perguntar: vamos continuar a ter cadeias de valor globais, em que a Ásia acaba por ser uma plataforma global? Vamos passar a ter cadeias de valor regionais, em que há uma cadeia que abastece a China, outra que abastece os EUA? E a pandemia em que medida é que agrava essa situação?

Uma certa quebra da globalização acaba por levar a cadeias regionais e isso acaba com o capitalismo, enquanto processo de acumulação de capital? Provavelmente não, provavelmente apenas faz com que se alterem as configurações das cadeias de valor global e que passemos a ter cadeias vocacionadas.

Embora a pandemia possa levar a reconfigurações importantes do que é a cadeia de valor, também por pressão dos EUA e deste Presidente [Donald Trump], pode levar também a reconfigurações importantes do que é a organização do trabalho. Mas até as estatísticas mais recentes têm dito que a desigualdade tem sido agravada pela pandemia. Nesse sentido, embora possa levar a um modo de produção diferente, não estou a ver como esse modo de produção deixará de ser capitalista.

Dito isto, nada é determinista, as coisas podem sempre mudar. No entanto, a pandemia por si só não me parece que possa levar a algo diferente, necessariamente. Pode levar a reconfigurações no processo, geograficamente.

O acumular de pressões pode contribuir para uma mudança no sistema? Por exemplo, o Papa Francisco lançou uma encíclica em que é muito crítico do capitalismo, a acumulação de riqueza e capital e o efeito no agravamento da desigualdade.

Contribui certamente. Todas as pressões que sejam feitas por agentes com alguma influência vão certamente ter alguma influência nesse sistema. Mas estas pressões não vêm agora do Papa Francisco. Desde o tempo do Papa Paulo VI, quando escreveu a Encíclica de 1967, a "Populorum progressio", o desenvolvimento dos povos, que a doutrina social da Igreja começou a tratar a necessidade de encarar o bem comum como algo bem mais prioritário e começou a criticar aquilo a que se chama o sistema capitalista, já de um modo mais vincado.

O Papa João Paulo II, quando comemorou os 20 anos dessa Encíclica, também teve palavras bastante críticas, para o que chamava de 'estruturas de pecado', várias estruturas que precisavam de ser revistas. Na "Centesimus Annus" (carta encíclica), estava a comemorar o centenário da encíclica Rerum Novarum, também tinha acabado de cair o muro de Berlim. Portanto, aí a questão era também enaltecer um bocado as virtudes do mercado.

Logo a seguir, temos o Papa Bento XVI com a "Caritas in Veritate" (terceira encíclica de Bento XVI), a chamar também a atenção para os problemas do capitalismo global.

Fomos tendo o desenvolvimento de uma doutrina na Igreja, a chamada doutrina do desenvolvimento humano integral. Aliás, a comissão pontifícia justiça e paz acabou por ser substituída agora pelo Dicastério do Desenvolvimento Humano Integral.

Isto demonstra que a Igreja tem tido uma posição consistente. O Papa Francisco atualizou-a agora, com a questão ambiental?

O conceito de ecologia integral acaba por ser uma espécie de continuação do conceito de desenvolvimento humano integral, mas tendo em conta o problema ambiental, que surge na Laudato si'. Penso que é um papel muito importante e muito relevante, ao consciencializar as pessoas e as nações para estes problemas. Mas, não penso que se possa dizer que seja uma coisa que acontece agora, que de repente a igreja acordou e começou a fazer esta crítica, isto já existe há muito tempo e uma forma de ver que tipo de influência pode ter estas encíclicas é também ver aquela que tiveram as passadas.

Acaba por ser um contributo importante, mas as mudanças estruturais que possam existir ou não resultam sempre de uma conjuntura de vários fatores, em que nunca é um ator único que consegue, por muito influente que seja, fazer isso.

Repare que a doutrina social da Igreja procura dar a sua opinião e aconselhar, mas não tem o papel de política económica em nenhum país. A política económica passa pelos Estados-nação, passa pelas organizações como o FMI, o Banco Mundial, que intervêm também mais diretamente na política económica e financeira de cada nação, passa por instituições como a Comissão Europeia. Portanto, sem mudanças também nessas instituições, não conseguimos uma mudança do sistema. Mas essas mudanças acontecem até quando menos esperamos.

Já mencionou que em alturas de crise as desigualdades se agravam, e é o que está a acontecer. Na prática, como é que se pode garantir que há uma distribuição de riqueza mais equitativa? Thomas Piketty defende um teto às grandes fortunas e a distribuição do excedente em somas consideráveis pelos mais pobres. Pode ser uma medida?

Pode, mas estas medidas têm de ser aplicadas com alguma globalidade. Não digo que sejam aplicadas no mundo inteiro mas, pelo menos, têm de ser aplicadas nas economias mais relevantes.

Ao longo da história do pensamento económico, vários autores defenderam este tipo de ideias. O imposto mais eficiente acaba por ser sobre o património e não tanto sobre rendimentos.

Os fisiocratas defendiam um imposto sobre a terra. O David Ricardo também dizia que o imposto sobre a renda (monopólios) ou a terra acabava por ser um imposto mais eficiente. Mas é preciso entender que os economistas clássicos analisavam a economia como um processo de reprodução de um excedente, ou seja, a economia produzia um excedente que depois podia ser esbanjado em bens de luxo ou podia ser reinvestido em algo útil. O que David Ricardo argumentava é que a tributação mais eficiente é sobre rendimentos que não quebrem este fluxo de reprodução do excedente, nesse sentido tinha propostas semelhantes a Thomas Piketty.

Entretanto, a análise económica mudou e passou a pressupor que nós não estamos numa situação de excedente mas uma situação permanente de escassez, porque os seres humanos querem sempre mais - define-se o ser humano como 'maximizador de utilidade'. A partir do momento em que se perdeu esta visão da economia como um circuito, torna-se também mais difícil ver qual é o tipo de tributação mais eficiente. É preciso repensar como funcionam os próprios circuitos económicos, para ver qual é o tipo de tributação que acaba por ser mais eficiente e contribuir para resolver estes problemas.

A questão da tributação leva-nos ao problema da carga fiscal excessiva. Portugal está acima da média europeia e nunca é o melhor ano para aliviar os impostos, na perspetiva do Estado, porque este precisa sempre de receita. Pode e deve ser dada uma folga às empresas e às famílias nesta altura? Se sim, por áreas?

É preciso perceber qual é o impacto que esta ou aquela opção poderá ter. O que acaba por acontecer é que não conseguimos cobrar os impostos que deveríamos cobrar porque, geralmente, acabam por estar localizados em paraísos fiscais ou noutros sítios onde não os conseguimos alcançar. Isso acontece de várias formas: uma empresa que tem uma subsidiária noutro país e com essa empresa apresenta serviços de valor muito elevado e acaba por fazer com que a que está no nosso país não apresente grande lucro. Foi o que aconteceu com a Amazon, Google e outras empresas no Reino Unido.

Portanto, sempre que se fala de impostos temos de fazer um preâmbulo sobre aqueles que estamos a cobrar e os que devíamos poder cobrar só para não ficarem esquecidos. Porque, propostas como essa do Piketty, é impossível falar delas se não percebermos como funciona o mecanismo de capitais a nível global. Essa deve ser a primeira questão a resolver.

A segunda questão remete-nos para John Maynard Keynes. Ele defendia um longo prazo de orçamentos equilibrados, mas achava que nas alturas de recessão os Estados deviam ter disponibilidade para incorrer em défices, para apoiar aqueles que têm mais necessidade, sendo que quando se sai da situação de recessão, então sim, o Estado então deve ter superávits, de modo a ir repondo a dívida que foi contraindo, de modo a que no longo prazo haja equilíbrio.

"Desde o tempo do Papa Paulo VI, quando escreveu a Encíclica de 1967, que a doutrina social da Igreja começou a tratar a necessidade de encarar o bem comum como algo bem mais prioritário e começou a criticar aquilo a que se chama o sistema capitalista, já de um modo mais vincado"

Neste momento, os Estados e o sector financeiro estão a ser financiados a taxas de juro baixíssimas. Portanto, não é particularmente difícil ajudar as famílias com mais necessidade, é possível fazê-lo sem um agravamento demasiado elevado da dívida do estado. Nestas alturas, a prioridade deve ser essa, mas sempre na ótica do longo prazo. As contas devem estar equilibradas, mas o equilíbrio deve-se fazer sempre na fase do crescimento.

Este é o momento de seguir Keynes e de o Estado gastar mais?

Keynes não dizia apenas que o Estado deve gastar mais. Keynes dizia que quando o investimento privado não era suficiente para resolver situações de desemprego involuntário, o Estado devia intervir enquanto fosse necessário. Não penso que a análise de Keynes seja suficiente para perceber tudo o que está aqui em causa, porque esta crise tem uma diferença face às outras, ela atinge os sectores com uma assimetria sectorial ou, pelo menos, de forma muito diferente do que aconteceu noutras crises.

No passado, outras crises atingiam rapidamente a construção, a manufactura automóvel e uma série de sectores que até tinham salários relativamente elevados, pelo menos no pós-guerra e antes dos choques petrolíferos. Neste caso, esta crise está a afetar setores como o turismo, em que os salários são bastante mais baixos do que os sectores que eram afectados em crises diferentes.

Esta crise tem uma dinâmica diferente e pode até ser mais necessário o apoio do que foi noutras crises, mas também é uma oportunidade para repensar o modo como a economia está organizada sectorialmente e até que ponto determinados sectores poderão ter crescido excessivamente ou não.

A economia está demasiado exposta a sectores como o turismo? Esta pode ser uma oportunidade para corrigir esta situação?

Sem querer pôr em causa a importância do sector para a economia, o turismo teve um crescimento muito elevado mas não é um sector onde os rendimentos são particularmente elevados e não contribui para nos inserir-mos nas cadeias de valor global que estão a ser reconfiguradas, em cuja inserção de modo adequado no processo de industrialização pode trazer uma segurança económica que outros sectores acabam por não trazer, quando são sazonais e quando o tipo de rendimento não permite o mesmo efeito multiplicador que outros sectores.

Nesta altura, qual deve ser a prioridade ou quais devem ser os sectores estratégicos para Portugal? Onde devem ser aplicados os fundos de Bruxelas?

Primeiro é preciso perceber como estão organizadas as cadeias globais e onde é que as competências de Portugal podem inserir-se. Isto depende também do que acontecer nos EUA nos próximos tempos. Está a acontecer uma reconfiguração geopolítica e geoeconómica, Portugal tem de interpretar o que está a mudar, ver onde se pode posicionar e investir nesses setores.

Já no passado tivemos situações em que se repensou isto. Tivemos cá o Michael Porter a dizer onde devíamos investir e quais eram os 'clusters' de inovação. Embora hoje em dia quando se fala de economia parece que só se fala de mercados, na realidade, o mercado, com Adam Smith, vem depois de uma análise do processo de divisão do trabalho, do processo de especialização, ou seja, depois de uma análise da produção.

Para saber em que mercados me posso posicionar eu tenho de perceber que competências é que eu tenho ou posso precisar de desenvolver, mas tenho de partir do que já tenho, porque partir de raiz, quando chegar lá, os outros já estão muito mais avançados.

Recentemente, em entrevista à Renascença, o economista alemão Daniel Stelter defendeu que despejar dinheiro na economia não é solução. Apoiar empresas em dificuldade é adiar o problema?

Despejar dinheiro na economia é, de facto, o que se tem estado a fazer, se formos ver o que tem sido a política monetária do Banco Central Europeu e da Reserva Federal Americana. Não são só os fundos europeus. Isso já está a ser feito, mas sem haver um estudo dos mecanismos de transmissão da política monetária, porque nós assumimos que há um efeito multiplicador que pode ser calculado e, a partir daí, percebe-se o que é que pode acontecer à economia. Quando, na realidade, as coisas não funcionam assim.

Sem perceber quais são os mecanismos pelos quais se transmite esse dinheiro à economia, eu não consigo perceber qual é o efeito que ele tem na economia e, para perceber os mecanismos pelos quais esse dinheiro se transmite à economia, tenho que perceber o contexto produtivo, quais são as indústrias em que se está a apostar. Essas indústrias têm também que perceber o que está a chegar às pessoas, a que camadas de pessoas, porque há população que vai consumir sobretudo em bens de luxo e há população que vai ter tendência a consumir bens que podem ter um efeito multiplicador maior na economia.

A própria palavra, despejar dinheiro na economia, já tem uma carga negativa e já acontece há algum tempo. Observamos que os activos financeiros - ações, obrigações, derivados, etc - têm sido muito valorizados. Ou seja, muito do dinheiro que chega à economia tem estado a ser canalizado para investimento em activos que, pode-se levantar a questão: até que ponto é que estão a ser especulativos?

No caso dos fundos europeus, já está a ser despejado muito dinheiro na economia e, aparentemente, com muito pouco resultado, há muito tempo, por outras vias. O modo como é gasto tem a ver com uma questão que já remonta aos clássicos - o excedente é reinvestido em actividades produtivas ou é esbanjado em bens de luxo? Isto é que determina se a economia prospera ou não. Diga-se que Adam Smith, quando dizia isto, elogiava outros países e dava Portugal e Espanha como maus exemplos, estávamos em 1776.

Podemos estar a travar artificialmente o desemprego com estes apoios para acabar por prolongar esta situação no tempo? Segundo um estudo do Banco de Portugal e do INE, sem o 'lay-off' a destruição de emprego teria sido três vezes maior.

Shumpeter chamava a estes processos "destruição criativa", era preciso algum processo de destruição de empresas e de emprego para que, aquelas que são mais eficientes, conseguissem depois sobreviver e ganhar faixas de mercados que eram deixadas pelas outras, mais ineficientes, que tinham desaparecido. Isso aumentava logo a inovação e eficiência da economia, porque as mais ineficientes e que estavam a ocupar espaço davam lugar às outras.

Opinião oposta tinha Keynes, que achava que o desemprego era um mal demasiado grave e que há um lado humano a ter em conta, dos custos humanos, que tem de se tentar combater o desemprego a todo o custo, independentemente do efeitos benéficos, supostamente, da destruição criativa de que falava o Shumpeter.

Amartya Sen também chamou a atenção para facto do desemprego ter não só custos económicos e sociais, mas também custos humanos muito elevados. As pessoas quando estão desempregadas sentem-se, logicamente, afectadas, podem entrar em depressão, o que não se resolve facilmente.

Em matéria salarial. Os patrões dizem que neste momento não aguentam o aumento do Salário Mínimo, o governo quer aumentar o poder de compra das famílias mas também já avisou que é difícil aumentar os salários do estado. Do ponto de vista económica, qual é o melhor remédio?

O aumento dos salários também aumenta o poder de compra das pessoas, portanto, tem sempre um efeito de estímulo sobre a economia. Principalmente, porque as pessoas que recebem menos rendimento são as que, geralmente, gastam uma maior percentagem do rendimento. Isto é, se aumentar o salário a alguém que ganha o SMN, essa pessoa para o ano vai continuar a gastas esse salário por inteiro. Se usar um milhão de euros para pagar a uma série de pessoas que estão a receber muito pouco, provavelmente esse milhão de euros no dia seguinte está na economia, porque essas pessoas precisam de o gastar. Portanto, a questão tem a ver com as empresas que não vão beneficiar muito desse aumento de procura, porque não produzem o tipo de bens essenciais que será procurado pelas pessoas que receberem esse salário e que, ao ver o salário aumentar, veem os seu custos aumentar sem as receitas aumentarem paralelamente.

Por outro lado, pode haver empresas que a sua estrutura de custos ou salário não seja tão importante, ou que consigam acomodar essa subida e que até, com o aumento de procura que possa ser gerado, porque direccionado para o tipo de bens que elas próprias produzem, possa até beneficiar dessa situação.

Portanto, um aumento de salário é sempre uma situação com efeitos diferenciados, conforme a estrutura de custos da empresa, no caso de ser mais intensiva em trabalho vai sofrer mais com o aumento dos salários, e também o tipo de produtos para o qual está ou pode vir a ficar vocacionada. Agora, com a crise, muitas empresas começaram a produzir desinfectante, máscaras, etc, coisas que não imaginavam.

"Existe imenso financiamento da economia, a questão é garantir que esse financiamento é funcional, canalizado para atividades produtivas, que animem de facto a economia, e não para atividades que muitas vezes são fundamentalmente especulativas, em mercados financeiros com impacto no valor dos preços de determinados ativos, sejam financeiros, mobiliários, etc"

Todas estas questões têm que ser ponderadas - tanto o custo das empresas como a receita adicional criada com este aumento.

Continuamos com a Obsessão do défice, como acusa a esquerda? O que é mais pertinente, o défice ou a dívida?

O défice e a dívida estão ligados porque, basicamente, a dívida é o acumular dos défices. O défice é um fluxo, é algo que acontece durante o ano, enquanto a dívida é um stock, que foi acumulado ao longo dos anos.

Eu consigo resolver a dívida de duas maneiras: posso reduzir os défices ou fazer com que a economia cresça mais do que a dívida, porque a dívida é calculada em percentagem do Produto Interno Bruto (PIB) - se o PIB estiver a crescer mais do que a dívida, então a dívida em percentagem do PIB diminui.

Portanto, posso tentar garantir que a minha taxa de crescimento é superior à taxa de juro, e neste momento é relativamente fácil fazer isso, porque as taxas de juro são tão baixas que basta um crescimento reduzido para garantir essa redução. É naturalmente importante que a dívida não ultrapasse determinados patamares, mas a dívida relevante para o país é sempre em percentagem do PIB, portanto, se for possível que a economia consiga crescer mais do que essa dívida, vai-se resolvendo o problema da dívida.

O factor ambiental e a sustentabilidade começam a ganhar peso nas contas.

Na realidade, o maior problema que vejo aqui é ambiental, o PIB é calculado muitas vezes sem ter em conta os custos ambientais e a composição do PIB raramente é analisada. Isto é, que tipo de produtos é que tenho no PIB? Posso ter uma economia com um PIB muito elevado mas os produtos são todos armamento ou coisas que não têm muito interesse para a humanidade.

Admite austeridade no próximo ano, para salvaguardar o cumprimento das metas?

Neste momento, parece-se que o lado humano é o mais importante a salvaguardar. Já é assim há muito tempo. Desde a crise de 2008 que temos tido essa necessidade. A austeridade não me parece que tenha sido algo particularmente eficaz. Na realidade, foi baseada em teorias que argumentavam que a dívida podia depois trazer uma redução do crescimento económico, que é algo que na realidade não acontece. Num caso específico até havia um erro de cálculo na folha de excel.

No contexto em que estamos, existe imenso financiamento da economia e a questão é garantir que esse financiamento é funcional, passa a ser canalizado para atividades produtivas, que animem de facto a economia, e não para atividades que muitas vezes são fundamentalmente especulativas, em mercados financeiros com impacto no valor dos preços de determinados ativos, sejam financeiros, mobiliários, etc. Existe uma enorme margem para investimento em outro tipo de tecnologias, que possa, de alguma forma, salvaguardar o ambiente. Um tipo de mudança económica nessa direção pode criar margem suficiente para a actividade económica para que a dívida, em função do PIB, acabe por ser uma coisa menos importante do que tem sido até agora e há outra via para conseguir o mesmo resultado, que é reduzir o peso da dívida no PIB.

Ainda não temos todos os números do próximo Orçamento do Estado, mas, passar de um défice de 7% este ano para 4% no próximo, sem austeridade, é possível?

Nós não fazemos ideia quanto é que vai ser o défice.

São as previsões do governo.

Essas previsões são permanentemente revistas. A economia não é uma ciência exacta. Se vamos fazer uma análise económica apenas olhando para a espuma da superfície, para valores que estão permanentemente a mudar, permanentemente a ser recalculados, permanentemente a ser revistos... Eles são importantes, depois no fim, para saber quanto é que foi o défice. Agora, estar nesta altura a pensar, num contexto de pandemia global, que não sabemos qual é o efeito que vai ter, estar a pensar se o défice para o ano vai ser 4%, 5%, 3%, qualquer destes valores vai estar errado, quase de certeza, porque a verdade é que ninguém sabe.

"Quando a matemática se torna o mecanismo que substitui o nosso pensamento, sem ter em conta qual é a realidade que está lá por trás, aí temos um problema. Esse parece-me que é o problema da teoria económica atual"

Um tipo de análise relevante, neste momento, é olhar para a estrutura produtiva e social e ver qual é o melhor modo de redireccionar as finanças e o tal dinheiro que está a entra na economia. Ex post podemos analisar qual é que foi o efeito sobre essas variáveis macroeconómicas, o défice, etc.

Em sistemas abertos, não conseguimos fazer esse tipo de análise técnica. Pensar que conseguimos fazer, é ter a ilusão que controlamos algo e desviar a atenção das estruturas produtivas, sociais e institucionais, para as quais devíamos estar a olhar com mais atenção, e que estão a mudar globalmente.

Escreve o prefácio de “Grandes Pensadores da Economia” (Ed Actual), que vai ser lançado agora em outubro. Diz a certa altura que “a teoria económica deixou de se centrar numa visão realista do ser humano quando tentou ser uma ciência exacta, privilegiando a análise meramente técnica”. Já ultrapassámos essa fase?

Não. Aliás, o prefácio do livro foi escrito este verão, é ainda muito recente. É um processo que já dura há algumas décadas e também não desaparece rapidamente. O que quis dizer com isso é que a economia no tempo do Adam Smith, que era um filósofo moral, era vista como uma ciência moral, social e humana. Chamava-se, aliás, economia política, porque a questão dos valores estava sempre presente e, ao longo do tempo, foi deixando de ser vista tanto como uma ciência social humana para ser cada vez mais "colonizada" por uma vertente mais técnica, em que procura atingir o estatuto de ciência, mas no entendimento em que ciência consiste em ter uma análise o mais matematizada possível.

O problema não é o uso da matemática em si, a matemática é muito bem-vinda e é necessário análise estatística e vários tipos de técnicas matemáticas, para conseguirmos sustentar e analisar as descrições e narrativas que fazemos sobre a realidade económica. O problema é quando a própria descrição que fazemos da realidade económica é determinada pelas possibilidades que estão contidas num determinado modelo e isso faz com que nós deixemos de pensar sobre a realidade económica porque a técnica está a pensar por nós. Daí a necessidade de revisitarmos as pessoas que pensavam sobre a economia e que não se limitavam apenas a ser conduzidos por um exercício técnico, com menos reflexão do que aquela que seria desejável.

Nos últimos três anos, os prémios Nobel da Economia destacaram o combate à pobreza mundial, a inovação tecnológica, alterações climáticas e a economia comportamental. Há também mais espaço para a dimensão social na economia?

Nós podemos fazer uma análise técnica, vocacionada para a pobreza. Eu posso desenvolver imensos indicadores de pobreza, de desigualdade, e isso tem sido feito. O problema é quando toda a nossa compreensão do que é o processo e as estruturas que levam a essa situação é conduzido apenas numa vertente meramente técnica.

Não é que o social não esteja presente como objecto de análise. A questão é, quando falo em ciência técnica e exata versus ciência social e humana, tem mais a ver com a metodologia com a qual é conduzido o processo de investigação científico do que propriamente com qual é esse objecto de análise. Porque esse, concordo, nunca deixou de estar presente na economia e no modo de fazer economia, independentemente de ser feito num determinado paradigma ou noutro.

Ainda assim... A determinada altura, a economia poderá ter-se tornado demasiado técnica e perdido alguma humanidade?

É preciso distinguir entre o objeto de análise económica, em que eu penso que nas várias escolas, e mesma na escola que é atualmente dominante, existe uma preocupação com questões sociais em muitos autores, e o Stiglitz é um exemplo de um autor que usa amplamente as técnicas matemáticas que têm sido desenvolvidas, mas com uma preocupação social.

Mas, de facto, a conceptualização do que é que é o ser humano, o entendimento do que é o pensamento humano, esse é que se afasta um bocado do que é a realidade do ser humano. Um exemplo é que se nós agora passarmos a agir sempre de forma consistente e exata, por exemplo, porque somos condicionados pelas redes sociais com as quais navegamos, isso, segundo uma certa concepção de racionalidade, que é aquela que é dominante, será racionalidade. Mas, segundo a concepção mais ampla, que é a que está subjacente a muitos destes pensadores, que é a capacidade de repensar as minhas preferências, os meus valores, se calhar já não estamos a ser tão racionais, porque vamos perdendo essa capacidade.

As teorias económicas são como a moda, vão ressurgindo e com a atualidade vão ganhando novo fôlego. Este livro destaca 13 nomes, peço-lhe apenas um que melhor represente o tipo de teoria dominante hoje.

Talvez o autor que melhor represente o que temos hoje será Milton Friedman, foi ele que disse que as teorias não têm de ser realistas, os modelos económicos podem ser falsos, desde que sirvam para prever. E o que devemos fazer na economia é estar constantemente com modelos a tentar prever determinados valores, como o défice para o ano, e a matemática é muito útil para ilustrar e tentar validar as nossas interpretações e descrições da realidade.

Mas quando a matemática se torna o mecanismo que substitui o nosso pensamento, sem ter em conta qual é a realidade que está lá por trás, aí temos um problema. Esse parece-me que é o problema da teoria económica atual.

Se quer que eu escolha um autor, que mais dentro desse espírito estará e é aquele que foi também o mais honesto, de facto, admitia que era isso que estava a fazer, ao contrário de outros que andam a fingir que estão a fazer outra coisa diferente. Escolheria o Milton Friedman.
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