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Entrevista Renascença

Daniel Ramos. O treinador que nunca perdeu pelo Santa Clara tem um grande como objetivo

15 out, 2020 - 11:00 • Eduardo Soares da Silva

O Santa Clara, segundo classificado da I Liga, é a grande sensação do arranque do campeonato. Daniel Ramos regressa a um clube que com ele no comando técnico nunca perdeu. O treinador avalia um plantel que tem "um dos cinco melhores avançados" da Liga, os objetivos, de época e de carreira, e o "prémio muito justo" do regresso dos adeptos às bancadas nos Açores.

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Daniel Ramos regressou ao Santa Clara este verão com o mesma registo vitorioso da primeira breve passagem pelo clube açoriano, no início da temporada 2016/17, na altura na II Liga, que lhe valeu o salto para a estreia na I Liga, ao serviço do Marítimo.

A carreira de Daniel Ramos como treinador começou em 2001, no Vilanovense, nos campeonatos distritais da AF Porto, e com passagem por vários clubes nas divisões inferiores, como Trofense, Gondomar, Vizela, Naval, União da Madeira e Ribeirão.

Depois de levar o Marítimo à Liga Europa, em 2017, e de breves passagens por Desportivo de Chaves, Rio Ave e Boavista, o treinador, de 49 anos, regressa ao Santa Clara com objetivos claros e agora com a experiência de mais de uma centena de jogos no principal escalão.

Em entrevista a Bola Branca, Daniel Ramos admite que pretende chegar a um grande do futebol português nos próximos cinco anos, mas foca-se na atual temporada, onde teve a oportunidade, ao contrário do que aconteceu nas suas duas últimas experiências, no Boavista e no Rio Ave onde herdou equipas idealizadas por outros treinadores, de arrancar a época e ele próprio construir um plantel.

Depois de um ano histórico para clube, que com o treinador João Henriques alcançou a melhor classificação de sempre (9.º lugar) e bateu o recorde de pontos conquistados na I Liga, as expectativas estão elevadas, mas a fasquia interna só será elevada para outro nível quando a manutenção estiver garantida.

À passagem da terceira jornada, o Santa Clara continua invicto, é segundo classificado e isso também significa que Daniel Ramos já fez história. Os açorianos nunca tinham estado na vice-liderança do campeonato.

A equipa arrancou uma vitória no terreno do Sporting de Braga, umas das primeiras surpresas da época de muitas que o treinador, natural de Vila do Conde, espera provocar.

Arrancamos com o início de temporada no Santa Clara, que ocupa o segundo lugar da classificação, ainda sem derrotas e já com uma vitória em casa do Sporting de Braga. Esperava um início assim tão bom?

Esperamos sempre. Queríamos arrancar bem, mas uma coisa é querer e outra é conseguir. Este arranque bem positivo vai ao encontro do que queremos, mas tem sempre algo de imprevisível. Sabemos que andar com uma média de pontos por jogo superior a um ponto e meio é bom, para fugirmos às posições mais ingratas.

Conseguirmos sete pontos, o que é uma média superior a dois pontos por jogo. Estamos claramente satisfeitos, ainda por cima com um jogo pelo meio contra o Sporting de Braga, que é uma excelente equipa e vai prová-lo ao longo do campeonato.

Acha que depois deste bom início de época, a derrota pode afetar o grupo?

Acho que não. Tenho tido conversas a preparar o grupo para cada jogo e a palavra derrota não entra, mas em caso de não conseguirmos ganhar um jogo, temos sempre de olhar para a partida, para o que dá, para fugirmos à derrota. É dentro desta perspetiva que encaramos os jogos.

Como estamos num momento positivo, digo-lhes que há que prolongar o momento, esta sequência positiva. Sabemos que teremos altos e baixos, mas temos de fugir às derrotas. E quando acontecerem, voltar logo a somar pontos. É um campeonato de somar. Vencer está presente no dia-a-dia, preparando a equipa para um dia perder. Vai acontecer algumas vezes, desejamos que não sejam muitas.

Os treinadores normalmente não gostam de individualizar, mas há um jogador em destaque neste início de época. O Thiago Santana tem três golos em três jogos, marcou todos os golos do Santa Clara. Será um jogador fundamental para o que o Daniel quer para esta época?

Sem dúvida. Considero o Santana um dos cinco melhores avançados a atuar no futebol português. Se estiver bem, é muito importante para a equipa, como outros também são. Ele tem muito do que a equipa precisa: é um bom finalizador, bom jogo aéreo, seguro, percebe que o que a equipa precisa e joga para a equipa. Tem trabalho defensivo.

Tem os aspetos que eu lhe peço e ele corresponde bem. É um elemento importante, mas também tenho o Shahriar [Moghanlou], que está a adaptar-se, e o Crysan, com outras características. Mas, naquilo que é um ponta de lança, o Santana está preparado até para jogar mais acima.

Voltando ao jogo com o Braga. No final da partida o Daniel não teve problemas em admitir que o resultado foi injusto para o Braga, que não merecia perder. Esse discurso mereceu vários elogios públicos, que comentários lhe merecem esses elogios pelo seu discurso?

Quem me conhece, sabe que sou assim puro, digo aquilo que acho. Não olho para um jogo na diagonal. Olhei para ele como foi. Uma boa primeira parte, equilibrada, chegámos em vantagem ao intervalo e achei que foi o reflexo da primeira parte, mas o Braga foi melhor na segunda parte.

Se foi bom [o discurso], acho que sim. É um bom exemplo para o que acontece no nosso campeonato. Assumir o que aconteceu em campo, foi isso que fiz.

Espera surpreender mais grandes esta época, como fez agora com o Braga?

Espero que sim. No passado já o consegui, na minha ainda curta passagem pela I Liga, porque quero continuar muitos anos cá. Já tenho vitórias contra grandes, faltam-me outras conquistas, mas continuo a desejar resultados destes, de equipas inferiores contra outras maiores e mais apetrechadas.

São mais saborosas e mais valorizadas, em que os jogadores, clube e treinador saem valorizados.

A manutenção é o principal objetivo da época ou o Santa Clara pode ambicionar por algo mais?

O Diogo Alma [diretor-geral] falou ao grupo no dia do fecho de mercado. O objetivo principal é a manutenção, só vamos redefinir objetivos quando esse objetivo estiver concretizado, o que é muito para a frente. Não adianta iludirmo-nos com outras expetativas. Há ainda as taças. Vamos tentar fazer o máximo número de pontos para estarmos tranquilos.

Há objetivos internos, outros pessoais. Eu tenho os meus objetivos, os jogadores têm os deles. Tivemos uma conversa com eles sobre a individualidade, provoquei uma série de objetivos junto dos jogadores para que todos tenham os seus. Faz parte do nosso crescimento. Eu quero chegar a um patamar acima, tenho determinado tempo, certas metas e vou procurar que isso aconteça.

O Daniel voltou ao Santa Clara este verão, depois de ter estado durante um breve período em 2016. Que memórias tem desse período que foi tão positivo e que lhe valeu logo o salto para a I Liga?

Muito boas. Fiz um grande arranque, foram oito jogos, sete vitórias e um empate, daí ter saído logo para a I Liga, para o Marítimo. Fiquei muito agradecido ao Santa Clara pela possibilidade de me deixar sair. Ficou uma amizade forte, o presidente Rui Cordeiro é o mesmo, o Diogo Alma é o mesmo diretor desportivo, passou agora para diretor geral. Há outros aspetos complementares que têm toda a importância.

Na minha primeira passagem, todas as quintas-feiras jogávamos treinadores contra direção, cinco para cinco. Foi um hábito excelente e ficou a empatia. Saíamos de um estado de tensão no dia-a-dia para descomprimir. Agora voltamos ao passado, andamos a jogar padel e, se calhar, vamos voltar aos jogos de futebol. É saudável e um ambiente muito familiar. Isso cativou-me para regressar ao Santa Clara.

O Santa Clara manteve um núcleo de jogadores das últimas épocas, que estão associados ao treinador João Henriques. Houve alguma dificuldade de adaptação do grupo ao Daniel, ou vice-versa? Ou isto faz parte da rotina normal de quando um treinador entra?

Foi perfeitamente natural e houve uma grande recetividade dos jogadores. Quem me conhece sabe que sou humilde, trabalhador e exigente no trabalho, mas também muito próximo dos jogadores. A minha forma de estar é ligeiramente diferente do que a que havia no passado, mas foi bem aceite. Não existe certo e errado, mas foi bem aceite.

Quero retirar o máximo do que os jogadores valem, quero valorizá-los e sair valorizado com isso. Falo-lhes diariamente deste lado recíproco, de dar e receber. Se derem mais todos os dias vamos colher no jogo à frente. Confiar uns nos outros, isso contagia o colega. É assim que funciono com a equipa técnica, com esta ideia de jogo que estamos a implementar.

Queremos jogar o jogo pelo jogo, ir para cada jogo com mentalidade positiva, sabendo que é possível vencer todos os adversários. Trabalhamos de forma clara, não escondo nada, sou verdadeiro com eles. Se não souberem o que é o errado, nunca saberão o que está certo. Tenho pedido isso, de uma forma objetiva e com uma mensagem clara.

É apenas um registo estatístico, mas a verdade é que o Daniel, nestas duas passagens pelo Santa Clara, está ainda invicto, com nove vitórias e dois empates. Parece que existe uma aura vencedora...

É bom que continue assim (risos). Quanto mais tempo estivermos nesta fase, melhor sermos reconhecidos como tal. É sempre bom termos o reconhecimento. Ficamos satisfeitos, porque quando estamos por baixo são poucas pessoas que se lembram de nós. Quando estamos por cima, as pessoas lembram-se. E somos as mesmas pessoas.

Já passei por isso e penso o que poderia estar a fazer mal. Há sempre que tentar dar a volta, quebrar os momentos negativos com mais dedicação. Sou muito defensor de um aspeto que me acompanha na vida, que é olhar para o que estamos a fazer e não para o que fizemos. Procuramos melhorar e potenciar o que estamos a fazer, é assim que tenho feito o meu trajeto.

Nos dois últimos projetos entrou a meio da época, no Rio Ave e Boavista. Sentia falta de um projeto em que entrasse no início da temporada, em que pudesse construir o plantel e ter uma pré-época?

Sentia, era um dos meus objetivos: arrancar. Se não arrancasse, provavelmente, iria dar prioridade a sair do país. Acredito muito no que se faz no início para colher à frente.

Quando há mérito na formação do plantel, também se fazem bons trabalhos e resultados e já provei isso. No Rio Ave, melhorámos, entrei no Marítimo abaixo da linha de água e fomos à Liga Europa, no Boavista também melhorámos a qualidade de jogo e a classificação.

Mas, se pudermos fazer parte do processo de escolha, melhor, até porque é difícil e cada vez menos treinadores fazem parte desse processo em Portugal. Podendo fazer esse trabalho em sintonia com o departamento de futebol, são grandes passos para que exista sucesso.

Fechou o mercado de transferências. Está satisfeito com o plantel que tem à disposição?

Estou satisfeito. Em termos quantidade, temos 27 jogadores, o que é para lá do número razoável. Gosto de um número mais curto, mas devido ao momento que vivemos, possibilidade de contágio e ao facto de não termos equipa B ou sub-23, entendemos que o plantel devia ser mais extenso, apelando à compreensão e tolerância dos jogadores, no que diz respeito aos convocados para o jogo.

A qualidade também satisfaz-me, é um plantel muito competitivo. Tivemos muito critério na escolha. Arriscámos em andar só com dois centrais neste início da época, porque o Fábio Cardoso estava lesionado. Tentámos encontrar qualidade, aliada à juventude, o que não é sempre fácil. Jogadores com potencial para terem retorno financeiro. Esse critério fez-nos atrasar as contratações.

Felizmente acho que conseguimos, temos um plantel equilibrado, competitivo internamente. E tenho uma certeza: temos um grande grupo, de família, que vive muito o dia-a-dia, não gosta de perder, nem nos jogos sete para sete. Isso motiva-nos para que estejamos todos sempre motivados, no máximo, com as baterias carregadas a puxar por eles.

Há um espaço de tempo muito mais reduzido entre este mercado de verão e o próximo, são pouco mais de dois meses e meio. Isto dá mais oportunidade aos clubes voltarem a mexer e reajustar em breve...

Este ano atípico permite que isso aconteça. Não se vai notar muito as dificuldades nos plantéis, até porque não haverá muito tempo para acumular cartões amarelos, vermelhos e lesões.

Provavelmente, os plantéis vão estar com boas hipóteses de ter os melhores a jogar. Isto vai proporcionar um bom conhecimento dos melhores valores das equipas. O ajuste de janeiro será muito criterioso, vamos ter os melhores a jogar muitas vezes, será uma deteção muito especifica no mercado de inverno.

De quem é a responsabilidade da construção deste plantel do Santa Clara? Qual é o papel do Daniel? Há um trabalho conjunto entre equipa técnica e estrutura?

Tivemos um papel muito grande, juntamento com o Diogo Alma, praticamente fomos as duas pessoas que demos aval às contratações, em sintonia e análise cuidada. Foi entre mim e o Diogo Alma.

Em relação aos defesas-centrais, o Santa Clara conseguiu manter o Fábio Cardoso, que era um jogador cobiçado no mercado de transferências, tem ainda o João Afonso e contratou o Mikel Villanueva e Cristian González, dois jogadores com currículo relevante. Como planeia gerir os minutos destes quatro jogadores? Pensa usar sistema de três centrais?

O Mikel é um internacional venezuelano que foi difícil de trazer. Conseguimos convencê-lo e ele está muito contente por ter vindo. O Cristian vem com créditos firmados e vem aumentar a competitividade. Isto são boas dores de cabeça, porque queremos qualidade e competitividade.

Equacionar três centrais? Sim, até porque já o fizemos sem eles. Jogámos com linha de três em Braga, o Mansur entrou nessa linha e conseguimos defender. Trabalhamos as duas formas, linha de três e de quatro.

Muito provavelmente vou equacionar jogos em que criamos nuances defensivas, que são boas do ponto de vista da estratégia, porque não permite ao adversário saber como vamos encarar o jogo. Tem sido um desafio diário grande trabalhar estas duas formas de defender e estamos ainda a aprimorar para que a equipa domine as duas formas.

Para fechar o tema do mercado de transferências, o Santa Clara fez uma venda relevante este verão com a saída do Zaidu para o FC Porto. Ainda integrou a pré-época, contava com ele ou já sabia que poderia estar de saída?

Sabia que poderia sair. Desde cedo que o Diogo Alma me disse que tínhamos jogadores com probabilidades de sair e um era o Zaidu. O Rashid e o Fábio Cardoso também tiveram propostas, mas fui logo informado para não contar com o Zaidu.

Foi integrado porque também interessava-lhe começar a trabalhar, até porque o desfecho poderia ser diferente, mas sempre soube que seria muito difícil a sua continuidade. Saiu por mérito e foi muito bom para o clube.

Desejo aos meus jogadores que se valorizem e saiam. Ele foi valorizado pela equipa técnica anterior e pelos colegas. Andamos todos aqui para o mesmo. Gostamos de futebol mas queremos ter sucesso, ganhar dinheiro e progredir na carreira. Fico feliz quando vejo os meus jogadores a crescer.

Mudando de tema, o Santa Clara recebeu o primeiro jogo com público nos campeonatos profissionais. Foi um clube que abdicou da sua casa para proteger a região na retoma do campeonato e agora teve essa recompensa ao receber o primeiro jogo com adeptos, contra o Gil Vicente. Acha que isso foi considerado?

Não sei se isso foi levado em conta, mas se tiver sido é muito justo. Foi uma medida de grande coragem da estrutura diretiva e teve sucesso, porque fizeram os pontos necessários para atingir o objetivo, mesmo longe de casa.

Se foi um prémio? Não sei, mas foi muito ajustado, porque o Santa Clara deu um exemplo pela forma de estar muito digna de dar a máxima segurança à região.

Qual o balanço que faz desse primeiro jogo com adeptos?

Um balanço bem positivo, mesmo. Foi até um pouco estranho, já estava a habituar-me ao silêncio e ouvir a voz de tudo o que se passava. Deixamos de ouvir o anormal, que era ouvir os jogadores e o outro banco. Foi bom ouvir a vibração de fora, sentir até aquela contestação, o agitar que faz parte de um jogo de futebol.

Já havia essa saudade de recordar esses tempos. Revivemos esse lado do futebol, que tem estado ausente. Desejo que a situação continue a evoluir, mas a prioridade é a saúde e a segurança. Se tivermos de jogar mais tempo sem adeptos, jogamos, mas se pudermos ter público, com as diretrizes da Direção-Geral da Saúde e da autoridade regional, com critério e regras definidas, melhor.

A minha principal dúvida é o acatar das regras por parte dos adeptos. Se o fizerem, vão regressar o mais rapidamente possível.

O Daniel já tem já várias épocas na I Liga, mas uma carreira de quase 20 anos, com passagens pelos escalões inferiores. Alguma vez foi sondado por um grande, é um objetivo seu chegar um clube dessa dimensão?

É um objetivo, sem dúvida. Por norma, defino os objetivos de cinco em cinco anos. Traço uma meta e vou à procura dela. Chegar a treinar um grande é um dos meus objetivos. Tenho de caminhar e vou fazer por isso.

Não vivo obcecado, mas quero continuar a ser melhor. Para lá chegar, tenho de estar preparado para ficar, como consegui manter-me na I Liga.

Experiência no estrangeiro pode estar na mira? Sei que teve algumas abordagens este verão.

Já fui várias vezes tentado, e às vezes penso como é que rejeitei este dinheiro todo. É uma realidade diferente do nosso teto salarial aqui, mas dei sempre prioridade à minha carreira desportiva em detrimento do lado financeiro.

Para sair, tem de valer a pena do ponto de vista financeiro. Sinto que posso semear para colher mais à frente, tenho essa perspetiva de fazer bons resultados, porque algo muito bom pode aparecer mais à frente. Tenho tido sempre esta linha de pensamento na minha carreira.

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