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Entrevista Renascença/Ecclesia

“A vida normal tem de ser promovida e é preciso ter coragem para o fazer”

09 out, 2020 - 07:00 • Eunice Lourenço (Renascença), Paulo Rocha (Ecclesia)

Bruno Bobone, o primeiro português a liderar a federação internacional de empresários cristãos, alerta que é preciso perder o medo de arriscar. É preciso que o Estado confie mais nas empresas e as empresas confiem mais nos trabalhadores, defende o empresário.

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Empresário, presidente da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa e do Conselho de Administração do Grupo Pinto Basto, Bruno Bobone está desde esta semana à frente da Associação Mundial de Empresários Cristãos (Uniapac).

Tomou posse do novo cargo na última quarta-feira (7 outubro) e é o primeiro português à frente deste organismo que junta associações de 41 países dos cinco continentes, uma grande diversidade.

Em entrevista à Renascença e à Ecclesia, defende o conceito de salário digno e a participação dos trabalhadores nas grandes decisões das empresas, pede a desburocratização, mas defende a fiscalização e alerta que, face à pandemia, é preciso responsabilidade e razoabilidade, mas não se pode deixar o medo dominar.


Uma das prioridades para este seu mandato de três anos é a defesa da gestão e do empreendedorismo como vocação nobre. Como é que isso se faz?

Isso não se faz, a vocação não é uma coisa que se faça, é uma coisa que se recebe. E, portanto, isso é uma dádiva fantástica que os empresários recebem, um dom de serem capazes de organizar os recursos que existem para melhorar a qualidade de vida das pessoas.

Isso é um dom, é um dom nobre, é uma vocação nobre porque é uma vocação que tem uma responsabilidade enorme no mundo que é a responsabilidade de promover o desenvolvimento e ser capaz de o distribuir e de o partilhar com todas as pessoas. E isso é uma vocação nobre que tem de ter resultados nobres: o foco sobre a pessoa, o foco da razão de ser de ser empresário, melhorar a qualidade de vida e a condição de vida das pessoas.

A minha prioridade tem a ver com a vocação nobre, que já é um tema que vinha a ser tratado pela associação, mas é com um passo a mais: o foco na pessoa como o grande objetivo dessa vocação nobre. E isso para mim é que aquilo que dá nobreza à vocação que nós temos: é o foco na pessoa.

Ser empresário significa ser capaz de criar riqueza. Mas só faz sentido criar riqueza se essa riqueza tiver um fim bom. E o fim bom é ser distribuída por todos aqueles que participam na criação dessa riqueza.

É a questão de associar o lucro à defesa do bem comum, de colocar o bem comum à frente do lucro?

O bem comum é claramente uma qualidade. Mas eu ia mais longe: é a pessoa.

Se focarmos na pessoa, vamos ser ainda mais profundos do que o bem comum. O bem comum é alguma coisa que beneficia todos, é verdade. Mas temos de olhar também pela parte individual: é cada pessoa que vale. E, nesse aspeto, é importante também, para além do bem comum, focar no benefício da pessoa. A pessoa é a razão de ser.

O lucro não deve ser um objetivo, uma finalidade, deve ser uma ferramenta para beneficiar as pessoas. E isso é em toda a perspetiva da economia: a economia não deve ser vista como um objetivo, mas como um meio para melhorar a vida das pessoas. Se tivermos uma economia fantástica, mas a vida das pessoas não for cuidada e melhorada não serviu para nada ter essa economia. É preciso focar nos objetivos.

Eu digo, por graça, que a primeira vez que alguém fez uma empresa, juntaram-se provavelmente duas pessoas para aumentar as suas competências muito mais do que a soma dos dois – porque quando nos juntamos conseguimos produzir mais –, mas foi naturalmente para dividirem o benefício dessa mais-valia. É no conceito da divisão que está a razão de ser da empresa.

E um dos aspetos tem necessariamente a ver com o salário. Defende um salário digno em oposição a um salário mínimo. O que é um salário digno em Portugal?

Começo por defender a dignidade da vida! Uma pessoa tem de ter como objetivo, e toda a gente tem de contribuir, para que qualquer pessoa tenha uma vida digna. Por isso, defendo o salário digno. Considero que a discussão sobre o salário mínimo não é um tema que seja razoável. Ninguém pode discutir o valor do salário mínimo como um objetivo para alguém conseguir, mas temos de ir muito além, temos de conseguir de facto chegar ao salário digno.

O salário digno é um salário que permita a qualquer pessoa pagar as suas despesas, ter a sua vida normal, conseguir tratar da educação dos seus descendentes, mas também ter mais do que isso: ter a capacidade de investir no seu próprio desenvolvimento, na sua evolução, no seu crescimento para se tornar uma pessoa mais completa, de maneira a poder fazer um caminho em busca da felicidade, que é o objetivo de todos.

Nós existimos sempre com um grande objetivo que é encontrar a felicidade. E essa é uma preocupação que temos esquecido nas empresas, e temos esquecido na nossa vida em geral, e temos que voltar a trazer. As pessoas acham que é assim um bocadinho lamechas falar da felicidade como objetivo de vida, não é. A felicidade é o objetivo de vida, é o único, não vale a pena escondê-lo, e para as empresas tem de estar presente.

As empresas têm de se preocupar com a felicidade, não é com o rendimento. Claro que têm de fazer criação de riqueza, esse é o objetivo. Mas com o objetivo de trazer felicidade às pessoas.

O salário mínimo em Portugal permite chegar a essa dignidade?

Claro que não, claro que não! E, portanto, temos de trabalhar... Mas, atenção: só se pode falar no salário digno se também estivermos dispostos a falar na produtividade. Não se pode criar um salário digno se não aumentarmos a produtividade, para que essa riqueza criada pela produtividade permita ser distribuída por quem contribuiu para criar esse aumento de riqueza de maneira a que passe a ter um salário mínimo.

Não se pode dissociar as duas coisas.

Não estamos a falar de caridade, que também é uma questão importante, mas não é uma competência das empresas fazer caridade. O que é competência das empresas é criar a maximização dos seus recursos, sendo que as pessoas são o seu recurso principal e a maximização significa criar, através do trabalho das pessoas, uma riqueza maior que possa reverter para as próprias pessoas, tornando-se assim num fator de promoção do salário digno.

O salário digno permite à pessoa ficar mais contente, a pessoa mais satisfeita, mais feliz é uma pessoa que produz mais, portanto, volta a dar maior produtividade, dá uma contribuição maior à empresa. Isto é um círculo virtuoso ao contrário do círculo vicioso que temos vivido nos últimos anos.

E o que é que é preciso para termos esse círculo virtuoso? O que é que do ponto de vista das empresas lhes pode facilitar essa lógica que está a falar?

Não ter medo. O problema que temos todos é ter medo. Todos sabemos que um empregado motivado é um empregado que produz mais, está escrito em todos os livros. Mas a maioria tem medo de arriscar, de dar mais condições a esse empregado com medo que não tenha o retorno para depois o poder aumentar.

Se perderem o medo, vão começar a fazer o círculo virtuoso... Se continuarem com medo, o círculo vicioso mantém-se e é a diminuição da economia, é a diminuição das condições de vida e é uma história perene no nosso país, que é uma pena.

Temos um povo maravilhoso com um potencial extraordinário, competências únicas no mundo, temos inclusivamente representantes nossos em quase todas as organizações mundiais, que sobressaem pelas suas competências.

Vamos lá fora e ouvimos dizer que os trabalhadores portugueses são os melhores trabalhadores que há: fiel, correto, competente, sério, todas as condições... E depois não temos, cá, a capacidade de perder o medo e apostar neles de uma maneira verdadeira e, com coragem, avançar de peito feito. E eu posso garantir, e tenho experiências várias, que funciona, não há dúvida.

Estamos em período de discussão orçamental e várias medidas estão no terreno, outras foram tomadas, como o lay-off simplificado que foi evoluindo e terminou em grande parte. Que medidas ou que incentivos espera deste Orçamento para a situação em que vivemos?

Espero que este Orçamento possa permitir às empresas voltarem a encontrar o seu caminho de êxito, de criação de riqueza. Espero que este Orçamento seja promotor de uma estabilidade que permita às pessoas acreditarem que possam distribuir essa riqueza também pelos seus trabalhadores.

Tenho algumas dúvidas sobre as decisões que estão a ser tomadas relativamente à estatização excessiva de algum investimento. Acho que se devia acreditar mais nas empresas... Assim como as empresas não devem ter medo de promover, de motivar os seus trabalhadores, o Estado não pode ter medo de promover e motivar as empresas. Devia haver mais privados na evolução, na aplicação de todos estes valores orçamentais.

Também tem os seus méritos: tem uma preocupação de crescimento, isso também é importante.

Agora: não há Orçamento nenhum que venha resolver os problemas que temos. O problema é que não estamos a enfrentar esta crise com a coragem com que devíamos enfrentar.

Já percebemos que há uma situação de pandemia que nos deve levar a tomar cuidado e determinados cuidados com os nossos comportamentos, e isso está certo, mas temos de parar aí. Não podemos continuar a espalhar uma ideia de medo, não podemos continuar a criar pânico nas pessoas, porque isso está a inibir muito a recuperação económica do país.

Se não levarmos as pessoas a consumir aquilo que é normal, a utilizar a oferta que existe no país, seja de restaurantes e de hotéis, da parte do turismo, seja também nas compras do dia-a-dia, seja a convivência nas escolas, vamos condicionar o país de uma maneira que não há Orçamento nenhum que nos vá resolver. Estamos a influenciar as nossas crianças de tal maneira negativa que o resultado não vai produzir aquilo que mais tarde vai ser necessário produzir.

Há o Orçamento e o Orçamento é importante, há que acreditar que são os privados que devem produzir e o Estado deve controlar. Eu acho que o Estado naturalmente tem de ter uma postura de verificar que esta distribuição é promovida, mas não pode produzir e as empresas têm de ser ajudadas a fazê-lo. Mas o Estado não pode inibir as pessoas de viverem de novo! A não convivência é um fator extraordinariamente negativo e é mais negativo porque está a ser promovido pelo medo e não pela razoabilidade.

Não é a razão que nos está a manter tão inativos. É pânico que estamos a difundir pelas pessoas.

Um reflexo desse pânico é o teletrabalho? Acha excessivas as medidas de teletrabalho em curso?

O teletrabalho deve ser permitido, mas não deve ser obrigado e acho que devem ser constituídas alternativas que permitam as pessoas conviver no trabalho com o rigor que têm de ter, com o cuidado que têm de ter, mas a estarem presentes, a viverem no dia-a-dia.

A vida normal tem de ser promovida e é preciso ter coragem para o fazer. Não se esqueça que há uma questão muito importante: esta pandemia é mais letal a partir dos 70 anos. Até aos 70 anos não há um risco tão grave da pandemia e até aos 70 anos há muita gente que devia estar a trabalhar todos os dias, devia estar a viver todos os dias, o mundo está a prejudicar-se por uma razão que não existe. E o resultado é que vai haver muita fome, muita morte e muita desgraça por estarmos a tomar esta medida baseada no medo.

Diante da necessidade do teletrabalho, em casos que se justifiquem, que nova abordagem é preciso ter para a conciliação família-trabalho nestas circunstâncias?

Falamos no teletrabalho, mas nunca falamos o suficiente, nas condições que cada um tem para executar esse teletrabalho. Uma família em casa com dois filhos e com um pai e uma mãe tem uma ocupação de espaço em teletrabalho em que todos estão juntos e todos estão a partilhar o mesmo local. Não é possível manter isso durante um tempo indefinido. É preciso trabalharmos no sentido de encontrarmos alternativas.

A pandemia teve os seus méritos, porque ajudou-nos a digitalizar mais, a adaptar-nos a novas realidades, a permitir-nos ter soluções que são de facto efetivas de comunicação, de desenvolvimento de novas formas de trabalhar, mas não é substituir uma coisa pela outra.

O teletrabalho tem de ser entendido e analisado em cada caso, em cada circunstância. Uma pessoa que tenha uma casa grande e que tenha disponibilidade tem naturalmente uma capacidade de praticar esse teletrabalho de uma maneira que quem não tem essas condições não o pode fazer.

Senão estamos a acentuar as desigualdades, não é?

Obviamente! Porque quem sofre é sempre o mais pequeno. Esta forma como estamos a gerir a pandemia vai trazer-nos muitas dificuldades, muita vida difícil, sempre a quem já tem a vida difícil. Quem tem a vida organizada, mais coisa menos coisa vai sair da crise em problemas, quem está mal vai fica pior. Mais uma vez, estamos a ir sobre as pessoas que não têm, sobre as pessoas que têm dificuldades e não estamos minimamente a trabalhar para elas, estamos a espalhar um pânico que não as beneficia, porque ao fechar em casa pessoas que não têm dimensão para estarem fechadas em casa, estamos a prejudicá-las.

E, ao mesmo tempo, são essas pessoas que, provavelmente, vão ficar ou sem empregos, porque, entretanto, não há vida na atividade económica e não vai haver emprego para toda a gente, e essas pessoas são exatamente as mesmas que voltam a sofre.

Estamos sempre a cair sobre aqueles que já sofrem e é aí que temos de trabalhar, temos de arranjar alternativas, fazer o mundo desenvolver de novo para criar oportunidades a essas pessoas para voltarem a ter o seu lugar na sociedade. Mais uma vez vou voltar ao salário digno, porque essas pessoas são aquelas que têm de ser defendidas com o salário digno, não são as pessoas que já o têm, essas já vivem bem. Mas são essas, muitas vezes, que estão a difundir esta pandemia do medo porque estão cómodas, estão em casa e não precisam de sair.

Uma questão que se passa muito nos funcionários públicos, naturalmente: foram postos em casa, nem sequer têm lay-off, têm condições garantidas, têm uma vida garantida e, portanto, já têm uma dignidade de vida e não estão dispostos a partilhar com os outros que estão a sofrer e, por isso, preferem que fique tudo quieto e parado em vez de quererem que se volte a trabalhar. É preciso preocuparmo-nos com aqueles que precisam.

No início da pandemia, em março, o Papa Francisco afirmou que o despedimento não é solução para salvar as empresas. “Mais do que despedir, há que acolher e fazer sentir que há uma sociedade solidária”. Tem sido possível aos empresários cristãos seguir estas indicações do Papa Francisco nos últimos meses?

Àqueles que tiveram a oportunidade de manter a empresa viva e com alguma saúde, não tenho nenhuma dúvida que tem sido possível. Que a vontade de todo o empresário é manter emprego e aumentar emprego também não tenho dúvida nenhuma. Nas circunstâncias atuais, quem não tem atividade económica dificilmente pode manter o emprego e, por isso, volto ao mesmo: não podemos ter medo para conseguir garantir que as empresas tenham recursos para manter o emprego.

É difícil não estar de acordo com o Papa Francisco e não é só o Papa Francisco que tem esta ideia: todas as pessoas, sejam cristãs ou não, têm consciência que não se pode ir pela via do desemprego. Nem agora, nem nunca.

Há que trabalhar para aumentar o emprego, para dar melhores condições. Para isso é preciso coragem, não podemos viver escondidos. A primeira frase que o Papa João Paulo II nos disse foi ‘Não tenham medo’ e é a frase que mais marcou na minha vida, porque o medo é a maior condicionante que nos inibe de fazer o bem e temos de fazer o bem.

Na nova Encíclica, o Papa diz que “Existem países poderosos e empresas grandes que lucram com este isolamento e preferem negociar com cada país separadamente” (FT, 153). Acha que a pandemia está a ser uma ocasião aproveitada pelas grandes empresas para a exploração dos mais pobres?

Tenho dificuldade em analisar generalizações, porque haverá empresas que se comportam de uma maneira e empresas que se comportam de outra. Não tenho dúvidas de que houve empresas que tiraram vantagens desta crise. Todas as empresas ligadas à digitalização, às novas tecnologias beneficiaram com esta pandemia; se isso significa que estão a tentar tirar proveitos e a não distribuir esses proveitos já teria de ser avaliado caso a caso, com conhecimento daquilo que se passa.

Nomeadamente o comércio online, está a destruir muito do negócio que havia porta-a-porta?

Aí tenho uma opinião um pouco diferente. Acho que esta pandemia obrigou a uma adaptação com uma velocidade muito grande às novas tecnologias; houve aqueles que foram capazes de se adaptar mais depressa e aqueles que não foram capazes de se adaptar, mas isso é o que se passou toda a avida em todas as circunstâncias.

Cada vez que há um avanço na tecnologia, há sempre uns que ganham e uns que perdem, sendo que é uma pena que haja quem perca e devíamos tentar arranjar apoios e ajudas para essas organizações e pessoas não fiquem a perder. Também aí é preciso fazer um esforço de acompanhamento. Não podemos dizer 'não vamos evoluir para não prejudicar ninguém', temos é de encontrar soluções de ajuda, de apoio e funcionarmos mais como rede.

Nas últimas décadas, o mundo desenvolveu o individualismo e a prova que temos hoje é que o individualismo nunca nos leva mais longe do que estávamos, antes pelo contrário. Temos de voltar à fraternidade, vamos ter de voltar à comunidade, à sociedade, ao bem comum e voltar a pôr isso na realidade do mundo.

Temos de reconhecer que o liberalismo económico puríssimo não funcionou, temos é de aceitar que a economia de mercado é uma economia boa e, portanto, temos de transformá-la numa economia social de mercado, que é uma economia de mercado preocupado com a sociedade.

É isso que o Papa também defende nesta nova Encíclica e nas suas intervenções sobre economia quando diz que o modelo neoliberal, tanto económico como político, falhou? Isto significa que o capitalismo falhou ou tem é de ter limites?

Aquilo que aconteceu é o que acontece no mundo, desde que o mundo é mundo. O capitalismo funciona. Não gosto de chamar capitalismo, gosto é de falar sobre economia de mercado, porque acho que a economia de mercado define melhor aquilo que vivemos do que o capitalismo em si mesmo.

O capitalismo pode ter várias formas, está baseado no capital e o capital pode funcionar de maneiras diferentes. A economia de mercado pressupõe concorrência, todas as condições que fazem o mercado funcionar de uma maneira mais efetiva e aí a economia de mercado está provado que funciona.

Mas é no centro que está a virtude e, portanto, tudo o que são visões extremistas de qualquer circunstância acabam por ser fora da realidade e acabam por não dar resultado. A economia de mercado funciona desde que seja economia social de mercado; não é propiamente ter limites, mas ter controlos e funções acrescidas.

O Estado não existe só para consumir o dinheiro dos contribuintes; o Estado existe para ter alguma função e a função do Estado é, exatamente, preocupar-se com a sociedade e, por isso, tem de definir onde vai funcionar. Existem leis, há que fazer cumprir as leis. Isso, infelizmente, no nosso país funciona pouco porque até temos leis que são normalmente boas, mas depois na prática não as aplicamos porque dá muito trabalho fazer a avaliação, dá um trabalho muito grande confrontar os erros.

As pessoas, em Portugal, não gostam de confrontar as outas e, portanto, quando se descobre um erro obrigam-nos a ter a coragem de ir falar com uma pessoa a dizer que está errado.

É o princípio da correção fraterna que, tantas vezes, também custa na vida pessoal ....

Mas que é fundamental. Não temos que não gostar das pessoas, antes pelo contrário. Temos de gostar das pessoas todas, temos de nos preocupar com as pessoas todas de tal maneira que temos de lhes disser quando estão erradas. A começar pelos nossos filhos, o que muitas vezes não acontece e, depois, as pessoas não têm comportamentos sociais positivos.

Temos de confrontar as pessoas com os seus erros, o Estado tem de nos confrontar com os nossos erros e, depois, tem de fazer o trabalho de acompanhamento.

E há outra questão: em Portugal, quando alguém descobre que houve um erro quer multar, quer penalizar o erro. Eventualmente, isso também é importante, mas mais importante ainda é explicar como é que não se erra e vamos junto de alguma entidade pública perguntar como é que devemos fazer bem e nunca ninguém nos diz como é que devemos fazer bem, ficam à espera que façamos para depois dizerem que fizemos mal.

Ora, isto é uma mentalidade que temos de mudar. O Estado, o setor público também tem de ter a coragem de arriscar connosco e explicar-nos como devemos fazer para que não haja depois o problema de fazer mal.

Uma discussão que temos tido muito nos últimos dias e que tem a ver com isso é a questão da lei da contratação pública. Há, de facto, um excesso de burocracia nos concursos públicos, nos concursos para fundos europeus que dificulta a vida das empresas e que é necessário alterar?

Há claramente. Como toda a gente tem medo que alguém venha roubar e como não queremos confrontar as pessoas e descobrir os erros, a forma de o fazer é criar burocracia a fingir que isso vai evitar o erro. O que não se quer é verdade, porque o erro acaba por acontecer na mesma, demora-se o triplo do tempo, criam-se novas oportunidades de erro e aumenta o problema.

O que temos de fazer é diminuir a burocracia, mas levar as pessoas a cumprirem as suas funções e quem fiscaliza deve fiscalizar e quem acompanha devem acompanhar e se isso acontecer não vamos ter o mesmo problema. Confrontamos as pessoas com o erro e resolvemos. Agora, uma coisa não funciona sem a outra.

Tal como o salário digno não pode existir sem produtividade, a desburocratização não pode existir sem haver uma fiscalização correta, consciente, que não pode ser baseada na busca do erro, como hoje em dia faz, por exemplo, a Autoridade Tributária.

A ideia é, em conjunto com o contribuinte, descobrir a maneira de fazer bem, assim como na adjudicação dos concursos a ideia deve ser descobrir de selecionar corretamente, com o objetivo do melhor resultado. É preciso entregarmos para depois recebermos e nós vivemos num mundo em que toda a agente quer receber e ninguém está disposto a entregar.

O Papa lançou o projeto A Economia de Francisco, que desafia as novas gerações de empresários e gestores. Que revolução está em curso e que pontes ligam este projeto do Papa Francisco às ideias dos empresários cristãos?

O Papa Francisco teve esta ideia extraordinária que é ‘se chegamos à conclusão que o que vivemos até agora não funciona, temos que trabalhar no que vai funcionar a seguir’ e nada melhor do que trabalhar naquilo que vai funcionar a seguir do que envolver a geração que vai trabalhar a seguir.

Basicamente, é isto que está na essência da Economia de Francisco. Naturalmente, o Papa Francisco não tem uma ideia económica definida porque, senão, a economia de Francisco já estava escrita; o que se pretende é, em conjunto e envolvendo as pessoas, chegar a uma conclusão.

Há outra coisa que, em Portugal, nós temos pouco hábito de fazer que é envolver as pessoas nas decisões. Nada se deve ensinar de cima para baixo. Uma mudança como esta só se faz com a participação de todos.

As pessoas devem ter um salário digno e procurar a sua felicidade, mas devem também participar nas grandes decisões da sua empresa porque, se a empresa é o local em que vivo e trabalho durante anos a fio, eu tenho todo o direito e a responsabilidade de também ser participante nas grandes decisões dessa empresa. Não é natural que a empresa faça uma evolução sem que tenha estado envolvido.

Não quero dizer com isto que só possa fazer evolução desde que os trabalhadores estejam de acordo; o que quer dizer é que os trabalhadores têm de participar na sua estratégia, têm de ser parte da decisão, porque uma pessoa, quando é parte de um projeto, concorda com ele de outra maneira e envolve-se e, depois, defende-o ainda mais. E, portanto, é bom para ele porque se realiza enquanto pessoa e aproxima-se da sua felicidade, mas é bom para o projeto porque ganhou um apoiante, uma pessoa que participa e que é parte desse projeto.

Essa questão da participação, como na Economia de Francisco, é essencial. Se isto não for um tema apropriado por todos, pode-se dizer já não vai acontecer e, portanto, seria uma perda de tempo e não acredito que o Papa Francisco fosse dedicar o seu tempo a alguma coisa que não fosse acontecer.

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