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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

Porque é que olhar para os pobres é tão difícil?

09 out, 2020 • Opinião de Henrique Raposo


Porque ele pensa e age com um código social diferente da classe média e das elites. Ser pobre é ter o corpo à mercê da decisão política. “É, pois, em virtude de uma situação assim que se forma uma cidade de servos e de senhores”, disse Aristóteles há 2.500 anos.

Os pobres estão no ângulo cego. A pobreza é o ângulo morto do século XXI. À direita, fala-se de mercado e de moral sexual. À esquerda, fala-se de minorias étnicas e sexuais. E os pobres? E a pobreza? Não existem. Ou melhor, não estão no centro das perceções.

É por isso que os tais pobres, com ou sem coletes amarelos, estão em revolta eleitoral contra o sistema, contra a economia, contra as elites intelectuais; é por isso que apoiam os tais demagogos que se aproveitam deste desespero popular.

Quem Matou o Meu Pai“Quem Matou o Meu Pai” (Elsinore), de Édouard Louis, é mais um livro que se junta a um corpo literário fortíssimo na qualidade e na relevância sociológica sobre este assunto. À semelhança de Didier Eriborn (“Regresso a Reims”, D. Quixote), J.D. Vance (“Lamento de uma América em Ruínas”, D. Quixote) e Tara Westover (“Uma Educação”, Bertrand), Édouard Louis é de uma família pobre que passou do campo da esquerda para o campo da direita populista, Trump e Le Pen.

Ao contrário de Vance e Eriborn, Louis não está tão interessado em explicar ponto por ponto o porquê desta mudança, mas acaba por ilustrar dois pontos também salientados pelos outros autores: faz a autocrítica à cultura da pobreza, sobretudo aos códigos de masculinidade; faz a crítica às elites de esquerda e de direita que esquecem os pobres. “Ninguém quer saber destas vidas”, diz.

“Quem Matou o Meu Pai” é parecido na estrutura ao “Entre Mim e o Mundo” de Ta-Nehisi Coates (Ítaca). Se Coates escreve uma carta ao filho sobre as dificuldades de ser negro, Louis escreve uma carta ao pai sobre as dificuldades da pobreza. E este pai de Louis é um eco do pai de Eriborn em “Regresso a Reims”: um operário rude de um meio pobre e braçal que transforma os homens em repositórios silenciosos de dor, trauma e violência.

Não sabe expressar amor pelo filho fora-da-caixa, os códigos de masculinidade não o permitem. Como tantos outros na pobreza, este homem vê a escola como uma ameaça à masculinidade: “tu não estudaste", diz Louis, "abandonar a escola o mais depressa possível era uma questão de masculinidade, era uma regra do mundo onde vivias: ‘tens de ser homem, não te comportes como uma menina, não sejas paneleiro’". Ou seja, estamos a falar de um mundo onde a masculinidade é a causa da pobreza, porque recusa os estudos que permitiriam uma vida diferente.

A masculinidade pode ser, de facto, uma automutilação emocional e económica do homem pobre. Esta é a primeira razão, portanto. Porque é que é tão difícil ver e compreender o pobre? Porque ele pensa e age com um código social diferente da classe média e das elites; um código moral que, à luz da racionalidade económica, é irracional e autodestrutivo.

A par desta autocrítica, que também encontramos na saga napolitana de Ferrante, encontramos em “Quem Matou o Meu Pai” a crítica ao sistema. Os pobres, que foram durante o século XX o centro da política, passaram a ser absolutamente secundários para as elites. E até passou a ser ‘cool’ criticar o pobre.

Ficou famoso o rótulo de Hillary Clinton, “os desprezíveis”. Da mesma forma, Macron já teve momentos de um snobismo atroz. Não por acaso, sofreu a revolta dos coletes amarelos. Revolta, essa, que nasceu precisamente do desprezo pelo ponto de vista do pobre: um aumento brutal dos impostos sobre a gasolina não prejudica os mais ricos e não prejudica a classe média do centro das cidades (têm metropolitano e Uber), mas é dramático para as classes mais baixas que fazem de carro o trajeto entre os subúrbios e as cidades.

Como dá a entender Louis, é este tipo de política que torna ainda mais dura a mente de homens como o seu pai. Naquela que é, para mim, a passagem decisiva do livro, Louis oferece-nos uma definição perfeita da pobreza:

“Isto é estranho, são eles que fazem política e, no entanto, a política quase não tem efeito na sua vida. Para os poderosos, na maior parte das vezes, a política é uma questão estética: uma maneira de se conceber, uma maneira de ver o mundo, de construir a sua identidade. Para nós, era viver ou morrer”.

Ser pobre é ter o corpo à mercê da decisão política. A saúde do pai de Louis foi sendo esmagada por sucessivas decisões económicas e políticas. E é esta assimetria brutal que explica a adesão à direita radical do velho povo da esquerda. O ressentimento encontra sempre uma forma de expressão política, sempre. Na “Política”, Aristóteles alertou-nos para o colapso do tecido social gerado por uma excessiva desigualdade e pelo consequente ressentimento:

“Se estes não sabem o que significa propriamente obedecer, mas apenas comportar-se como escravos sujeitos à autoridade, aqueles, por seu turno, não sabem o que é mandar, mas somente exercer domínio como senhores despóticos. É, pois, em virtude de uma situação assim que se forma uma cidade de servos e de senhores, não uma cidade de homens livres, uma cidade em que uns têm inveja e outros revelam desprezo, sentimentos, de resto, muito distantes do que deve ser a amizade e a comunidade política, uma vez que a comunidade implica amizade”.

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  • César Augusto Saraiva
    10 out, 2020 Maia 17:15
    Ao que o humorista angolano diria: «GENTE BURRA!!!»...
  • 09 out, 2020 10:44
    Obrigado!