Tempo
|
A+ / A-

Postal de Monterrey - México

Se Deus Quiser

04 jun, 2020 - 07:00 • Karol Zetsche Silva*

No México já morreram mais de dez mil pessoas de coronavírus e no Estado de Nuevo Leon foram 96. Por oposição, só na cidade de Monterrey, a maior de Nuevo Leon, são assassinadas cerca de 2.500 pessoas por ano. É deste contexto que nos chega este postal.

A+ / A-

Leia também:


Esperei que adormecessem. Depois esperei maias uma hora, só para ter a certeza. Depois abri a porta e uma corrente de ar penetrou a casa, como se não tivesse mais para onde ir.

Cheirava a fumo de cigarro, ouvi vozes, entrecortados com a música daqueles que não acreditam no perigo. Aqueles que, mesmo nesta altura, fazem festas onde não cabe a decência.

O desejo repentino de ir ter com eles passou-me pela cabeça, mas sabia que um dia destes deixaria de os ouvir. Pessoas na rua, pensando estar a salvo uns dos outros, saindo como cobras na noite, sem saber que todos os caçadores saem quando escurece.

Sem parar para pensar mais volto para dentro de casa; tranco a porta e subo ao segundo andar. Abro a janela para a varanda e observo.

Aqui não precisamos dos noticiários para nos dizer que vem aí o crime, quem vive por cá sabe disso sem precisar de ser avisado. Na distância, sem que a música o ouça, soam disparos. Ouvem-se gritos de criança, gritos de alguém que será ignorado pela justiça. Um, dois, três tiros. Silêncio. Quatro, cinco tiros. Silêncio. Ainda que eu os chame, a polícia não vem para onde eu vivo, e ainda que viesse seria para se tornar parte daqueles que nos “desaparecem” sem remorsos.

Alguém pára a música no sistema de som. Há silêncio entre eles, voltam-se de um lado para o outro, depois ligam a música outra vez.

É complicado viver aqui, sabendo que o boletim meteorológico trará sempre alguma coisa com que nos preocupar. Mas depois de tanto tempo estes problemas tornaram-se o leite que acompanha o pão nosso de cada dia.

Uma pandemia, corrupção, assassinatos, desaparecimentos, violência, agressões, assaltos. Temos uma fórmula para tudo, um feitiço, uma mantra. E sempre que acontece alguma cisa, quer queiramos, quer não, continuamos por aqui.

Acordarei intacta amanhã, se Deus quiser.


*Karol Zetsche Silva é mexicana, tem 19 anos, e está agora de regresso a Monterrey, depois de terminar o 12.º ano no colégio internacional dos United World Colleges, na China.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+