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Postal de Quarentena - Bogotá

O que vale uma vida na Colômbia?

08 jun, 2020 - 06:40 • Miguel Barreto Henriques*

A Covid-19 não é a única doença a fazer vítimas entre os colombianos. O ódio e o ressentimento continuam a matar. Desde o acordo de paz foram assassinados pelo menos 700 líderes sociais.

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Quando, na semana passada, a Renascença me propôs escrever um postal de quarentena sobre a Colômbia, onde resido há oito anos, o país tinha 21.175 casos de contágio e 727 mortes. Hoje, 7 de junho de 2020, registam-se 38.027 casos e 1205 mortes.

O mundo, em tempos de Covid-19, converteu-se num enorme contador da morte, com telejornais a atualizar ao minuto a mórbida matemática. Qualquer outro tipo de assunto, mas até outras expressões da morte, foram enviadas para um lugar marginal da atenção.

No entanto, quando a crise da Covid-19 chegou à Colômbia, em meados de março, já outro aterrador contador estava em marcha no país – o dos assassinatos de líderes sociais após a assinatura do acordo de paz com a guerrilha das FARC em 2016.

Na verdade, o acordo tem tido uma vida e um percurso difíceis, debilitado por um Governo reacionário que fez campanha pelo não no referendo à sua aprovação, e por uma realidade que ficou bem aquém das expectativas e sonhos. Depois da guerra não chegou a paz. Não só o rosto obscuro do paramilitarismo continua bem vivo na Colômbia, e a questão da guerrilha do ELN longe de ser resolvida, como emergiu uma “guerra” a conta gotas – o assassinato seletivo de líderes sociais, camponeses e indígenas, nalgumas regiões do país.

Desde a assinatura do acordo de paz, mais de 700 líderes sociais foram assassinados. Ser defensor de direitos humanos ou sindicalista, continua a ser uma profissão de risco na Colômbia; participar em processos de restituição de terras ou de substituição de cultivos de coca, pode significar uma sentença de morte. Ter pertencido às FARC é outro pecado que pode não ser perdoado, como aconteceu a 24 ex-combatentes assassinados em 2020.

A chegada da Covid-19 à Colômbia não significou uma trégua neste cenário. A quarentena, decretada há dois meses e meio, mantem-se, longe dos holofotes da imprensa internacional, pelo “reduzido” número de vítimas, comparativamente com outros países. No entanto, a caravana da morte avança, com as suas diversas caras. 1045 mortes por Covid-19 desde a identificação do primeiro caso de contágio; 41 líderes sociais assassinados desde o início do confinamento.

A pandemia fez-nos cair numa era de medo. Recordou-nos que a morte pode estar à nossa espera em cada esquina. Mas para quem vive nas zonas mais remotas da Colômbia, onde geralmente as câmaras dos media não chegam, usar máscara e gel desinfectante pode não significar qualquer tipo de proteção. O fim pode chegar pelas mãos de um “sicário” numa mota, como nas séries sobre Pablo Escobar.

São também estes territórios os mais afetados por outras epidemias menos escrutinadas pelos media, como o dengue, que já ceifou dezenas de vida este ano na Colômbia, sem que isso tenha causado muito alarido em Bogotá, ou no resto do mundo.

A morta iguala-nos a todos. “Do pó viemos e ao pó voltaremos.” Mas, talvez, como diria Orwell, haja algumas mais iguais que outras. Uma morte na Lombardia ou em Nova Iorque pesa mais que uma morte em Tumaco ou Buenaventura? No fundo, o que vale uma vida?


*Miguel Barreto Henriques é professor do Departamento de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidad de Bogotá Jorge Tadeo Lozano. É ainda diretor do Observatório de Construção de Paz da mesma universidade.

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