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Postal de Quarentena - Washington

Nada como um abraço físico, em carne e osso

26 mai, 2020 - 06:43 • Tiago Nunes Oliveira*

Um português que se mudou recentemente do Mississippi para a capital dos Estados Unidos, Washington D.C., fala da complexidade do combate à pandemia no país que contabiliza mais mortos de Covid-19.

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Depois de sete anos e meio a morar em Jackson, Mississippi (numa América tão mal-amada quanto desconhecida), a nossa família mudou-se para Washington DC no início de janeiro deste ano. Moramos a seis quarteirões do Capitólio, no bairro de Capitol Hill. Tal como em Portugal, a nossa vida mudou drasticamente a meio de março deste ano.

Mas, é bom lembrar que a nossa experiência é local e não representa a realidade de todo o país. Para avaliarmos e entendermos a evolução da pandemia neste país precisamos de reconhecer que os Estados Unidos da América são um país de dimensão e população tal, que análises gerais são simplistas e não fazem jus a uma realidade muito diversa. Politicamente, os E.U.A são uma república federal, com cinquenta estados. O presidente, embora com responsabilidade na liderança do país, tem poderes executivos (não legislativos). Para além disso, cada estado é autónomo e cabe ao respetivo governador (não ao Presidente) definir as regras de combate à pandemia, ou seja, embora o Presidente possa definir as orientações gerais, a autoridade e responsabilidade é de cada governador para ditar as regras que melhor se adequam ao seu estado. Por isso, as estratégias de combate à pandemia nos diferentes estados são muito diversas e de acordo com a situação própria.

Por exemplo, as estatísticas diferem substancialmente de estado para estado. O estado de Nova Iorque, com menos de 6% da população dos Estados Unidos, regista cerca de 25% dos casos conhecidos e das mortes no país devido à Covid-19. Em cinco estados contíguos do nordeste dos Estados Unidos (Nova Iorque, Pensilvânia, Nova Jersey, Massachussets e Connecticut), que representam pouco mais de 15% da população nacional, concentram-se 50% das mortes totais. Não é de admirar, portanto, que as ruas de Nova Iorque estejam desertas, enquanto noutras partes do país já se viva uma certa normalidade.

A complexidade aumenta quando falamos de Washington D.C., onde moramos atualmente. A capital é um distrito federal, o que significa que não faz parte de nenhum dos cinquenta estados. Tem um governo único, liderado pela Mayor Bowser. Por não pertencer a nenhum dos estados, não tem qualquer representatividade na Câmara dos Representantes ou no Senado. A Mayor é responsável por definir as regras de combate à pandemia. Se Maryland e Virgínia já começaram o processo de regresso à normalidade, Washington DC ainda mantém o confinamento.

Felizmente para a nossa família, os níveis de confinamento aqui em Washington DC não foram tão drásticos como em outras cidades. Se em Nova Iorque o confinamento resultou em ruas desertas, aqui em Washington DC nem tanto. A vida foi claramente afetada e o movimento é significativamente mais reduzido: a maioria das empresas fechou (à exceção dos negócios considerados essenciais), não é possível sentar-se em cafés ou restaurantes, é obrigatório o uso de máscara nos supermercados e a população foi aconselhada a sair de casa só quando necessário. Ainda assim, o movimento nas ruas é real. Num bairro como o de Capitol Hill é possível ver famílias inteiras a passear pela cidade, em especial ao fim-de-semana. A presença policial é mais evidente do que antes, mas apenas para controlar a situação. As máscaras não são obrigatórias e as pessoas, regra geral, cumprem as regras de distanciamento. É possível combater parte do isolamento com os encontros espontâneos nas ruas, com amigos e membros da nossa igreja.

Num país onde mais de um terço da população participa numa atividade religiosa pelo menos uma vez por semana, a prática religiosa também foi grandemente afetada. Tanto a nossa igreja no Mississippi como aqui em Washington DC estiveram impedidas de se reunir desde meados de março. A esmagadora maioria das comunidades religiosas no país (independentemente da sua religião ou confissão) submeteu-se às regras e orientações governamentais. Para a nossa família, isso significou uma mudança estrutural na nossa vida. Somos cristãos e a igreja não é apenas uma atividade semanal, é o que somos. Como a igreja é aquilo que somos, as novas tecnologias ajudaram a minorar os efeitos do confinamento. Mas nada se assemelha ou se compara ao abraço físico e à reunião em carne e osso.

Na próxima semana regressaremos ao Mississippi e o nosso entusiasmo é evidente. A nossa igreja no Mississippi já se reuniu nos últimos dois domingos e, se Deus permitir, iremos pela primeira vez juntar-nos à nossa igreja em adoração passados quase três meses. Não podemos estar próximos nem abraçar os nossos irmãos. Mas vamos poder cantar, orar e ouvir a Palavra de Deus ser lida e pregada.


*Tiago Nunes Oliveira é pastor da Igreja Baptista e vive nos Estados Unidos há vários anos, onde está a fazer um doutoramento em Estudos Bíblicos no Puritan Reformed Theological Seminary.


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