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Entrevista à Renascença

Carvalho da Silva. "Sociedade portuguesa tem o dever de valorizar o percurso da CGTP"

01 out, 2020 - 06:32 • Ana Carrilho

A central sindical assinala nesta quinta-feira 50 anos e, durante mais de metade da sua existência, foi liderada por Manuel Carvalho da Silva que, em entrevista à Renascença, sublinhou os contributos da organização para a evolução da sociedade e a melhoria das condições de vida dos trabalhadores portugueses.

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1 de Outubro de 1970 é a data da convocatória para uma reunião intersindical a realizar no dia 11, que seguiu para cerca de duas dezenas de sindicatos oposicionistas que nos meses anteriores tinham conquistado direções de sindicatos corporativos. Marca o nascimento da Intersindical.

Sem perder de vista os desafios futuros, cada vez maiores para os sindicatos, o papel da concertação social e as ligações ao PCP, e embora sem querer falar das situações mais delicadas, o agora investigador social Manuel Carvalho da Silva saiu da CGTP há nove anos. Mas não consegue despir a pele de sindicalista.

Deixou a central há quase nove anos, no congresso de 2012. Como é que vê a CGTP ao fim destes anos, eventualmente, já com algum distanciamento?

Quando se evocam estes 50 anos, o que penso mais é o que fazer para que esta grande central sindical se projete no futuro. O mais importante é discutir os próximos 50.

Já é a visão de investigador social ou ainda a de sindicalista que sempre admitiu ser uma pele difícil de despir?

Não tenciono, nunca, despir o meu compromisso de sindicalista. Era negar-me a mim próprio. Embora, desde há bastantes anos, o meu foco não seja tanto o sindicalismo nas suas práticas do dia-a-dia, mas o trabalho: para onde é que vai o trabalho na sociedade atual, que perspetivas relativamente ao futuro? É por aí que ando mais agora, mas há uma relação profundíssima entre o sindicalismo e o trabalho.

Há uma necessidade imperiosa de os trabalhadores se organizarem, do sindicalismo existir. Não há democracia sem estruturas de representação coletiva e de intermediação que, com os poderes executivos e legislativo, vão trabalhando para regular as relações de trabalho. Além disso, os trabalhadores, individualmente considerados, estão em situação de fragilidade perante a entidade patronal e, portanto, é imperioso existirem sindicatos e a organização dos trabalhadores.

Uma coisa é ter sindicatos e outra, é ter sindicatos fortes.

Exatamente. Essa é uma questão importante.


"Sociedade deve valorizar os contributos que a CGTP lhe tem dado nestes 50 anos"


Nós não temos sindicatos fortes neste momento, em Portugal e ao nível global, porque têm vindo a perder cada vez mais poder. Por exemplo, em relação à CGTP, pode dizer-se que a fase em que teve mais poder, em que esteve mais próxima dos trabalhadores foi nos seus primeiros anos de existência e no pós-25 de Abril?

Não, é uma visão muito linear e precisa de ser confrontada com um conjunto de factos objetivos que se passaram.

Os sindicatos estão debaixo de vulnerabilidades crescentes e eles próprios, intrinsecamente, também têm as suas debilidades, era um absurdo negar. Mas estamos debaixo de uma pressão enorme, desta cartilha neoliberal, onde o individualismo conjugado com os apelos ao consumo e a financeirização da economia levou à mercantilização acelerada do trabalho. E outros fatores que possibilitam uma divisão social e mundial do trabalho, uma divisão que tem potenciado uma espécie de espiral regressiva, onde há sempre um qualquer lugar do mundo com uns milhões de trabalhadores em condições de serem mais explorados. E tudo isso gera vulnerabilidades imensas nos sindicatos.

Tem efeitos negativos sobre a agenda sindical que é possível construir e sobre a qualidade dos dirigentes, porque esta pressão desgasta e há possibilidade de os inimigos dos sindicatos atacaram mais objetivamente e de forma mais direcionada quadros que possam perturbar os seus objetivos.

Mas o Sindicalismo, ao longo da sua história, tem altos e baixos. Costumo dizer que quando as sociedades entram em descalabro, os sindicatos e os trabalhadores “levam porrada de criar bicho”. Mas para se reganhar dinâmicas na sociedade, em democracias, também se fizeram com participação dos trabalhadores e dos sindicatos.

As sociedades têm sempre a ganhar com a existência de sindicatos…

Têm sempre imenso a ganhar. Por isso, ao evocar-se os 50 anos da CGTP, digo que a sociedade tem o dever de saudar e de valorizar este percurso feito pela CGTP-Intersindical Nacional e o seu contributo à sociedade. E tem interesse em ter essa atitude porque eles (sindicatos) são indispensáveis para criar equilíbrios no futuro. Portanto, há aqui uma relação de dever – necessidade que acho que a sociedade precisa de pegar.

Colocou a questão dos poderes e de quando é que a CGTP foi mais influente na sociedade. Obrigava-nos a uma longa descrição, mas sinteticamente digo-lhe que o processo inicial foi muito rico para a sociedade.

Nessa primeira reunião de 11 outubro de 1970, reuniram-se 14 sindicatos, mas já havia muito caminho feito antes: a guerra colonial começou no início dos anos 60, Portugal entrou para a EFTA em 62-63. Há um impulso de industrialização, mas ao mesmo tempo, a saída de muitos jovens para a guerra, o que gera muitas dinâmicas na sociedade e orientações que vinham de trás, do PCP e das organizações católicas, que eram de ir intervindo nos sindicatos, tentar conquistar direções progressistas, anti-corporativas. O que unia era uma visão anti-corporativa.

E, a partir de meados dos anos 60, desenvolve-se um processo em que há um conjunto de ativistas – os organizados eram minoria, os do PCP e os militantes católicos progressistas. Mas essa participação organizada foi muito importante na dinâmica do coletivo.

Gera-se um processo de conquista de direções que, quando chega o período marcelista, estão em condições de começar a reivindicar um edifício da negociação coletiva. Essa é uma das primeiras bandeiras, a redução do horário de trabalho com a célebre luta pela “semana inglesa”, o desenho da Segurança Social. Desde a primeira hora está sempre presente. E vão incorporando questões de liberdade, direito de reunião. Começam a discutir salário mínimo…

Havia uma consciência social, laboral, política que, hoje, provavelmente não é tão intensa.

Essa fase é muito importante para se criar uma agenda e quando o movimento sindical ligado à Inter chega ao 25 de abril já traz uma “entourage”. A 24 de Abril já eram 52 as direções que participavam nas reuniões.

O 1º maio de 74 só é possível com aquela dimensão e com aquele impacto porque a Inter o organizou com uma dinâmica global. Depois, o Congresso de Todos os Sindicatos, que assume a Constituição da República aprovada a 2 de abril de 1976 como o grande ancoradouro do que deveria ser a construção da democracia. E em vários momentos encontra-se com movimentos da Igreja, é uma coisa curiosa.

Nos anos 80, a relação com o bispo D. Manuel Martins foi fundamental.

Sim, tivemos algumas conversas muito interessantes e ele teve um papel muito importante em vários momentos. Por exemplo, nessa luta contra os salários em atraso, o desemprego e a pobreza. E temos que meter na cabeça uma realidade muito objetiva: a pobreza é inimiga do desenvolvimento e não adianta nada virem para aí novos projetos a dizer que vamos restruturar isto e reformular aquilo. Se se mantiverem bases de pobreza, o país não se desenvolve. A experiência dos anos 80 mostra-o, mas hoje vivemos esse momento. Pobreza material: desde logo, quem tem carências não está disposto a fazer participação cívica.

Houve um enorme contributo da CGTP nessa fase e teve continuidade na luta contra o trabalho infantil. Podia-lhe falar da luta pelas 40 horas…

Uma longa luta…

...que levou a um aumento significativo do número de associados. No início dos anos 2000, a Inter chegou a ser a central ibérica com maior número de associados. Ou seja, não houve uma decadência contínua no movimento sindical. Há uma tendência de quebra, mas houve momentos e dinâmicas que levaram ao aumento da sindicalização.

Mas, nas últimas décadas tem sido sempre a descer, parece que há um divórcio crescente entre os trabalhadores e os sindicatos.

Há vários fatores que têm que ser estudados, ainda não estou em condições de perceber alguns mecanismos. Mas há dois decisivos: um é estrutural e global, que é a aceleração da ofensiva neo-liberal, que é demolidora. Com a mercantilização do trabalho, torna-se muito violenta e têm mecanismos de ataque aos sindicatos à escala global. Outro, em Portugal, foi o Código de Trabalho de 2003.


Código do Trabalho de Bagão Félix é o grande “ponto crítico”


Pode dizer-se que é grande derrota da CGTP?

Eu chamo-lhe “pontos críticos”, mas certamente fazemos interpretações próximas. Esse é um deles. Se me pedirem para enunciar dois ou três pontos críticos da vida do movimento sindical nos últimos 50 anos, eu digo: um é a criação da UGT e outro a organização da legislação do trabalho no Código de 2003, com Bagão Félix. Código esse que tem uma história que ainda não está totalmente desvendada.

Já agora faço uma confissão, mas não faço toda porque ainda é cedo: fui convidado para ir à primeira posse do Lula da Silva, a 1 de janeiro de 2003. Em Brasília, estavam o Presidente Jorge Sampaio, o Ferro Rodrigues, o António Guterres, o embaixador António Monteiro e eu. O embaixador resolveu organizar um jantar para os cinco e foi aí que eu fiquei a saber, por um dos participantes, qual era o rumo que as coisas iam tomar em relação ao Código de Trabalho. E esse é um daqueles momentos que tenho como mais penosos, porque acho que não era por ali que se devia ter ido e não eram necessárias determinadas cedências que nunca mais foram recompostas.

Em relação à caducidade dos contratos e ao tratamento mais favorável, não é que se tivesse de manter exatamente as regulações que existiam. Aquilo foi feito foi mesmo para colocar os sindicatos em estado de necessidade. E depois o PS… É profundamente justo que se diga, no tempo presente, ao PS, no Governo, que há uma dívida com os trabalhadores; que já era tempo de fazer correções para que os sindicatos não estivessem em estado de necessidade em relação à contratação coletiva e em relação ao tratamento mais favorável.

Eu desejo que o António Costa continue a ser primeiro-ministro, merece a minha simpatia e espero que o PS consiga manter alguma coerência que teve na primeira legislatura. Digo-o como homem de esquerda. Desejo e tenho esperança que haja soluções à esquerda que suportem a caminhada dos próximos anos, mas não perdoo que não haja coragem para fazer alguma mexida na legislação laboral nesse aspeto.


Governos usam agenda da Concertação de forma pouco inteligente e construtiva


Muitas destas questões poderiam ser resolvidas em Concertação Social. A questão é: temos realmente diálogo social?

Na sociedade portuguesa, a ideia de situar na concertação social certos conteúdos está sobrevalorizada. Mas sou defensor do sistema de concertação em que vivemos, como espaço de diálogo permanente. Não é ocasionalmente, quando na agenda do Governo dá jeito ir lá sancionar determinada decisão ou ir buscar ancoradouro para fazer outras negociatas.

A agenda da concertação social é usada pelos governos de forma muito pouco inteligente, muito pouco construtiva e como oportunidade de gestão política que o Governo quer fazer para determinados dossiers. Não devia ser.

Associado a essa sobrevalorização está um facto que é pouco evidenciado. O campo privilegiado de participação de trabalhadores e patrões chama-se negociação coletiva e a concertação não a pode substituir. Ainda vai ser mais importante no futuro, em função do que vai acontecer com as novas tecnologias, o teletrabalho, a digitalização, a robotização, a inteligência artificial.

Propostas de acordos globais têm sempre conteúdos para deixar a CGTP de fora

Posto isto, queria alertar para dois pontos que são entorses de nascença da concertação social. Primeiro, a composição da CPCS foi determinada sem um debate político sério sobre a posição e distribuição de lugares. E há um enviesamento que é dramático, que está feito de propósito. Isso é que me custa. Mais outra confissão!

Está instituído que a representação sindical é 50% CGTP e 50% UGT e que, desde que uma assine um documento, representa o todo sindical. Não pode ser assim. É preciso que todos participem em pé de igualdade em função de mecanismos de representação que sejam coerentes.

Até porque qualquer que seja o governo tem contado sempre mais facilmente com o acordo da UGT.

...o que leva a outra análise que não vamos fazer agora. Posso não gostar e até considerar pouco valorativa a génese da UGT, mas isso hoje pouco importa. Ela existe e merece respeito, tem que ser tratada como parte do sistema. Mas está criada uma situação que é subversiva. Porque a CGTP, se leva a sua posição até ao final numa perspetiva de compromisso, com os mecanismos que existem, não conheço nenhuma situação de um grande acordo global em que não se tenha tentado embrulhar conteúdos que se sabia, à partida, que a CGTP não podia aceitar. Propositadamente são metidos conteúdos para deixar a CGTP de fora.

A CGTP continua com a fama de não estarna CPCS para assinar acordos

Porque a CGTP não pode usar o seu poder até à última instância para defender as suas posições. A qualquer momento pode ser desarmada pela assinatura de outro, que representa todos. O que era preciso era jogo limpo e poder-se ir até ao limite.

Porque é que a CGTP assinou acordos específicos sobre a formação profissional, a Segurança Social ou o horário de trabalho ou salário mínimo? Porque eram matérias específicas. E era possível ir até ao fim.


PCP e CGTP : é preciso equilibrar a “influência” com a “interferência”


Existe uma dependência mais ou menos notória das centrais sindicais em relação às agendas partidárias. E, na CGTP, a ligação ao PCP é inevitável. Quando é que a "influência" passa a "interferência" e condiciona o movimento sindical?

Estamos a invocar os 50 anos de vida da CGTP e da minha parte, que tive responsabilidades na central e que tenho um apego de toda a vida, todos os dirigentes atuais merecem toda a confiança e apoio para que sejam capazes de fazer caminho para 50 e mais 50 anos. Em tempo de invocação, não é muito apropriado falar de questões que têm outras decorrências de interpretação política que podem gerar perturbações no seio da central.

Posto isto, três notas curtas. Os sindicatos precisam de uma agenda social própria, feita a partir dos problemas que têm de tratar. Tem que ser genuinamente sócio-laboral, mas não pode ser distanciada de uma visão macro e do olhar e da dinâmica política. A ideia de que os sindicatos constroem um conjunto de propostas de reivindicações e não precisam de olhar para o cenário político, é absurda. O que não podem é entregar a agenda social à agenda política.

E isso tem acontecido?

Significa que os partidos têm o dever, e em particular os de esquerda, de darem atenção e terem preocupações com a agenda social. Podem trabalhá-la com os seus militantes.

Usou duas palavras: uma coisa é influência, outra é interferência. Há muitas acusações que se fazem ao Partido Comunista neste quadro do sindicalismo que são injustas, porque qualquer outro partido com uma influência idêntica era capaz de fazer muitas outras tropelias que durante a minha vida sindical vi que o PCP não fazia, respeitava.

Agora, equilibrem-se as coisas entre influência e interferência. A influência é necessária, a luta por uma influência dominante numa organização é importante; o que é preciso é que haja respeito pelos espaços próprios. E essa é uma questão que a central sempre teve e os seus dirigentes terão, com certeza, para o futuro.

Aquilo que se sente é que a partir de uma certa altura o PCP, vou usar uma palavra que pode não ser a mais adequada, mas se “pendurou” na CGTP porque a central tinha maior influência junto dos trabalhadores. E tentou controlar as decisões da CGTP.

Como lhe disse, não queria falar nisso agora. Podemos falar noutra altura.

A CGTP – Intersindical Nacional tem desde a sua génese cinco princípios básicos: assume-se como movimento sindical de classe, unitária, de massas, democrática, independente. E têm que ser aplicados de forma articulada.

E outra coisa em que a história de 50 anos da Inter tem muitos exemplos: as posições das minorias não são secundárias. E por vezes há posições das minorias, que pela sua persistência, se tornam vencedoras. Mesmo dentro da maioria, há por vezes posições minoritárias que transformam as posições da maioria. Julgo que a CGTP tem uma experiência enormíssima que lhe permite conduzir-se forma equilibrada. Agora, o futuro vai trazer continuamente desafios deste tipo.

Em relação ao Partido Comunista, há uma coisa que não posso escamotear: a luta pela influência é uma luta que eu próprio partilhei enquanto lá estive. Embora, mesmo entre os elementos do Partido Comunista, cada um tenha as suas características. Sempre fui considerado como alguém que tinha uma postura especifica, que tem a ver com a minha cultura.

Penso que os partidos políticos à esquerda e desde logo o PCP - até porque tem uma identidade com as causas do mundo do trabalho na sua génese - é a grande justificação da existência deste partido e do seu papel. E tem sido fiel a esse princípio. Eu posso discordar, há alguns anos que não sou militante do partido, mas não escondo essa militância ou as proximidades ou aquilo que me foi inculcado na minha formação, fruto dessa militância. Um partido comunista que abandonasse este foco perdia interesse na sociedade. É importantíssimo que mantenha esse compromisso e desejo que outros partidos também deem forte atenção às questões do trabalho.

E não me choca nada que nas suas agendas políticas – antes pelo contrário – surjam conteúdos. O que não pode é amputar a liberdade e a especificidade da agenda social e sócio-laboral. Essa tem que pertencer ao movimento sindical. Quando há uma apropriação indevida ou se cria, do ponto de vista simbólico, uma apropriação, isso diminui a força do movimento sindical. Mas o PCP também é suficientemente adulto para saber posicionar-se no caminhar da sociedade.

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