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"Já sou eu novamente." Isabel faz ozonoterapia, uma terapia barata que pode ajudar a aliviar a dor

28 set, 2020 - 08:30 • Liliana Carona

Está na Guarda a única unidade do serviço público de saúde do Interior que usa o ozono para tratar a dor, uma terapia complementar que “a grande maioria dos médicos de família nem sabe que temos”. É barata, mas acaba por ser negligenciada “porque prevalece o dinheiro”.

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A Unidade de Tratamento de Dor do Hospital Sousa Martins, na Guarda, no centro do país, foi fundada em 2007. Há dois anos, surgiu o tratamento de ozonoterapia.

Os 15 utentes atendidos por dia nesta unidade falam por si e pelo que sentem quando recebem o gás que é medicinal e “nada tem a ver com o ozono da alta atmosfera”.

Orlindo Ferreira, 78 anos, de Figueiró da Serra, há dois anos que faz tratamento de ozonoterapia. Foi-lhe amputado o pé e ficou uma ferida aberta. “Sentia tanta dor, não conseguia descansar de noite”, conta.

Mas as dores sossegam agora numa espécie de bacia com água a borbulhar. “Eu desconhecia esta terapia. Queixei-me à médica de família e hoje vejo que, se não fosse a ozonoterapia, já me teriam cortado a perna”.

O que restou de uma amputação “ainda não tem autorização para prótese”, observa a enfermeira Sandra Martins, 38 anos, da Unidade de Tratamento de Dor do Hospital da Guarda.

“Era uma ferida crónica que não cicatrizava com os tratamentos tradicionais e neste momento estamos só a fazer o controlo. Estamos a tentar controlar a dor, por causa da pressão que faz para andar. A prótese ainda não é indicada sem cicatrizar a ferida totalmente”, explica.

Além da hidro-ozonoterapia durante 15 minutos, Orlindo faz uma bolsa de ozono, que “é um saco fechado hermeticamente onde introduzimos o ozono de forma a que ajude à limpeza. Funciona como antissético e anti-inflamatório”, descreve a enfermeira.

As feridas podem receber duas a três sessões de ozonoterapia por semana, depende da prescrição médica, da responsabilidade do médico anestesiologista, coordenador da Unidade de Tratamento de Dor, Manuel Alfredo Dias da Costa. Os doentes tratam-no por “Dr. da dor”.

Com uma média de 15 utentes por dia, os tratamentos só foram interrompidos durante o confinamento causado pela pandemia. “Fizemos um acompanhamento não presencial, mas muitos dos nossos doentes vivem com dificuldades, não só materiais, mas também sociais. Para que as pessoas estejam mais contentes e tenham vontade de continuar a viver, temos de estar presentes”, defende Dias da Costa, 70 anos, atestando que criar bom ambiente é fundamental.

“Os doentes vêm de longe, gostam de vir cá, procuram-nos porque levam uma certa esperança de ficarem melhores e terem uma vida adequada às suas limitações”, diz ainda, deixando um lamento. “A grande maioria dos médicos de família nem sabe que temos ozonoterapia”.

“Um dos grandes problemas por que o ozono não é bem aceite na comunidade médica resulta do desconhecimento. A utilização deste agente que tem muito poucos efeitos secundários levou-me a propor à administração utilizar a ozonoterapia como terapia complementar”, recorda o responsável da unidade, sublinhando que, “só na Alemanha, há 11 mil ozonoterapeutas”.

“Aliás, o ozono foi descoberto por um alemão em meados do século XIX”, destaca. O percursor do uso do Ozono foi Werner von Siemens que, em 1857, construiu o primeiro tubo de indução de administração de ozono. As primeiras utilizações sucederam na Primeira Guerra Mundial, como antisséptico local para tratamento de feridas de guerra.

“Este ozono medicinal não é o da atmosfera”

Manuel Alfredo Dias da Costa fundou, em 2007, a Unidade de Tratamento de Dor no Hospital da Guarda, que há dois anos solicitou à administração hospitalar a introdução da terapia complementar de ozonoterapia.

“É o Dr. da Dor", aponta Américo Lourenço, 82 anos. Sofre de artrose avançada nos dois joelhos. "Tinha indicação para prótese, mas como tinha problemas de coração venho cá fazer infiltrações com ozono, uma vez por mês e tenho-me dado muito bem. As dores começam na parte da anca e vêm até ao joelho e não consigo movimentar a perna. Um mês e meio disto e ando muitíssimo bem”, salienta.

A dor crónica é uma dor que perdura além dos quatro, seis meses e “a ozonoterapia está indicada para qualquer tipo de dor, seja a dor neuropática, que resulta da lesão de nervos, seja a dor nociceptiva que resulta da estimulação dos sensores de dor que temos espalhados pelo corpo todo”, explica Dias da Costa, acrescentando que os doentes com artrose são muito frequentes naquele hospital.

“Utilizamos o ozono como agente complementar que nos permite obter efeito anti-inflamatório e analgésico sem prejudicar o organismo (tem muito poucos efeitos secundários)”, assegura, realçando a utilização do ozono no alívio da dor.

“Tem propriedades bactericidas e viricidas e não há possibilidade de esses agentes microbianos adquirirem resistência ao ozono”, refere, advertindo que “convém não esquecer que estamos a falar de dor crónica – é uma entidade, tem à volta dela componentes que condicionam a qualidade de vida da pessoa: a componente psicológica, a limitação física que a dor pode acarretar”.

“O ozono nunca é um tratamento único. É uma terapia complementar. Para controlar a dor crónica, melhorar a qualidade de vida da pessoa, torná-la funcional, capaz”, conclui o médico que indica o protocolo e a concentração de ozono para cada paciente.

O ozono é um gás que pode ser administrado por via sanguínea, endovenosa, intramuscular, subcutânea, intra-articular e “é diferente do ozono da atmosfera”, assim faz questão de ressalvar o coordenador da Unidade de Tratamento de Dor da Unidade Local de Saúde da Guarda.

“O ozono que utilizamos é o ozono médico, é um gás altamente instável que é constituído por três moléculas, é um trioxigénio. Quando estamos a utilizar ozono, estamos a enriquecer os tecidos em oxigénio e é particularmente importante nas feridas que resultam da alteração da circulação, tendo em conta o poderoso bactericida que é o ozono”, clarifica o médico anestesiologista.

O ozono medicinal sai do gerador de ozono, um aparelho que pode custar entre 5 a 10 mil euros. “Obtém-se ozono através de uma reação catalítica de oxigénio medicinal. Por detrás do móvel está uma garrafa de oxigénio. Este ozono medicinal não tem nada a ver com o ozono da alta atmosfera e da superfície terrestre, que é agressivo para as vias respiratórias e pele”, afirma Dias da Costa, fundador da Unidade de Tratamento de Dor do Hospital Sousa Martins, na Guarda.

“Negligenciamos muitos tratamentos baratíssimos”

O Hospital da Guarda é o único no interior do país, no serviço público de saúde, a disponibilizar o tratamento de ozonoterapia, garante João Gonçalves, 57 anos, médico ortopedista e presidente, desde 1991, da Sociedade Portuguesa de Ozonoterapia (com 100 associados) que se dedica à promoção, desenvolvimento e formação de ozonoterapia.

"Temos o Garcia de Orta que utiliza, o Amadora Sintra, temos o Hospital de Setúbal, depois ao nível nacional há uma série de hospitais no privado, mas a Guarda é pioneira no interior, na criação de uma unidade de tratamento dos doentes com dor crónica com ozonoterapia", assegura, denunciando que a terapia complementar é negligenciada em Portugal. “Eu acho que é negligenciada, porque o que prevalece é o dinheiro.

É mais fácil receitar um medicamento e ganhar dinheiro com medicamentos do que com o ozono, porque o ozono tem o investimento inicial do gerador, agulhas e garrafas de oxigénio, é uma prática hospitalar baratíssima. E quando vê os doentes com dor crónica, os medicamentos são caríssimos. Negligenciamos muitos tratamentos que são altamente eficazes e por serem baratíssimos não os utilizamos. Do ozono pouca informação chega e pouca vontade têm para investir”, desabafa.

O presidente da Sociedade Portuguesa de Ozonoterapia não tem dúvidas de que a ozonoterapia constitui a maior indicação terapêutica no tratamento da dor crónica.

“São doentes que sofrem todos os dias e muitos ainda não têm diagnóstico. Nós dizemos que o ozono para a dor crónica está no grupo A, é onde há mais evidência científica da sua utilização”, revela, explicando que o ozono é uma mistura de oxigénio, com O2 + O3, numa percentagem de 95 para 5%, mais de oxigénio e menos de ozono.

É uma dose muito pequenina de ozono – ou seja, uma molécula com três átomos de oxigénio. Quando estamos a injetar ozono, estamos a utilizar muito oxigénio e pouco ozono”, insiste o ortopedista João Gonçalves, ao demonstrar como funciona o gerador de ozono.

“Fazemos circular o oxigénio por umas placas de porcelana e depois provocamos uma descarga de alta voltagem, o que faz com que o oxigénio seja transformado em ozono, que coletamos em seringas. Na prática, enchemos a seringa de ar, a única coisa que tem é cheiro (quando há trovoada sente aquele cheiro na terra… é semelhante)”, desvenda.

Faz ozonoterapia há 10 anos e garante haver "zero de complicações" para os doentes e milhares de pessoas que aliviam a dor recorrendo à ozonoterapia.

“Devia haver mais hospitais e mais investigação. Não estamos só a dar ozono, mas também oxigénio; reativando as células, reativamos o metabolismo celular. Gosto de falar em medicina da evidência. Não há dúvidas nenhumas na dor crónica associada à hérnia discal, do ‘raqui’ da cervical e da lombar; não é só o efeito na dor, mas também o efeito regenerativo, nas artroses, nas artropatias crónicas. O ozono é um estimulador e regenerador da cartilagem no caso de ruturas musculares nos desportistas”, exemplifica.

Dor crónica de difícil controlo

A eficácia do tratamento de ozonoterapia é observada por Rui Venâncio, enfermeiro coordenador da Unidade de Tratamento de Dor do Hospital da Guarda. A dor aguda após cirurgia, as dores que permanecem no tempo que passam a ser a doença e não o sintoma, são os doentes que temos aqui”, diz.

“Temporalmente, quando passa os três a quatro meses ou quando a causa inicial desapareceu, a dor torna-se ela própria numa doença em vez de um sintoma, e de difícil controlo porque os doentes que nos chegam são os que os outros serviços não conseguiram tratar – por isso, de mais difícil controlo. São sempre doentes complexos os que são referenciados para aqui, porque a dor não conseguiu ser controlada noutros serviços”, esclarece o enfermeiro, que nos conduz à Sala Técnica onde decorrem os tratamentos de ozonoterapia.

“Quando introduzimos o ozono, há dois anos, percebemos que podia ser utilizado em vários tipos de dor, em quase todos os diagnósticos: fibromialgias, dores articulares, as dores lombares, dor oncológica, a dor crónica de doentes que ainda são capazes de trabalhar. Se temos cá o doente, investimos tudo nele, vêm de todo o distrito”, afirma, apontando para os utentes na sala de espera.

“Concentramos uma intervenção multidisciplinar desde a nutrição, psicologia e no ozono usamos as técnicas todas: hemoterapia (mistura de sangue do próprio doente), hidro-ozonoterapia (enriquecimento da água com ozono), fazemos as bolsas de ozono e óleos ozonizados por exemplo para problemas de pele”, mostra o enfermeiro Rui Venâncio.

No entanto, no Hospital da Guarda, a ozonoterapia não é o único tratamento disponível. Rui Venâncio enumera: “temos ainda a aplicação de capsaicina cutânea, o bloqueio de nervos periféricos e centrais, a aplicação de bandas neuromusculares, a massagem terapêutica, a mesoterapia, a neuroestimulação eléctrica transcutânea e a colocação de bombas infusoras”, remata o enfermeiro responsável.

Aliviar a dor para poder trabalhar

Trabalhar e recuperar a vida que tinha antes da doença oncológica e da artrite reumatoide só foi possível para Isabel Carvalho, 54 anos, administrativa na Câmara Municipal de Sabugal, depois de começar a fazer autotransfusões e infiltrações de ozono nas zonas mais doridas, pelas mãos da enfermeira Cátia Pragana, 39 anos.

“Dormir bem à noite é essencial para estes doentes” diz Cátia, enquanto elucida sobre um dos processos de ozonoterapia (hemoterapia). “A doente é picada, é removido o sangue para um sistema de vácuo que entra num dispositivo que tem capacidade para se misturar com o ozono, que sai do gerador. Após a adição do ozono prescrito pelo médico, a mescla fica sob agitação e será reintroduzida na doente”. A doente, que começou os tratamentos em novembro do ano passado, admite já conseguir dormir à noite.

Já consigo descansar à noite, tinha muitas dores, aconselharam-me a vir para aqui e fiz muito bem. A dor era nível 10, subia as escadas de gatas, não conseguia estar de maneira nenhuma. Esta paragem do ozono durante o confinamento foi terrível para mim. Fiz medicação muito agressiva para as dores e não aliviou, perdi o cabelo. Agora já consigo andar de salto alto, já sou eu novamente, a eles devo tudo, o melhor que podia ter. Consigo ter uma vida de qualidade e vejo-me com aspeto mais agradável. Posso dizer que não comia, não dormia. Eu sinto-me outra pessoa, ganhei anos de vida com este tratamento e estes profissionais de topo. Uma relação muito humana e especial, um carinho também é muito importante para nós”, ressalva.

O mesmo tratamento está a fazer Ângela Alves, 61 anos, diagnosticada aos 35 com fibromialgia, trabalha numa fábrica de têxteis de Trancoso. Há dois anos que é acompanhada pela enfermeira Piedade Ramos, 55 anos, no tratamento de ozonoterapia.

“É uma doente com fibromialgia que tem vindo a agravar e fazemos um tratamento sistémico com autotransfusões de ozono em sessões bissemanais”, comenta a enfermeira Piedade, ao mesmo tempo que Ângela confidencia: “tinha muitas dores, que davam para desmaiar, nem andar nem falar. Dores de cabeça fortes, dores horríveis. Sinto-me muito melhor. Eram horríveis as dores. Vim para aqui, aliviou muito o cansaço, a fadiga, melhorei muito”, assume Ângela.

A melhorar está também a companheira (que não quis identificar-se) de Carlos Luís, 71 anos, cuidador informal. Chegam de Vasco Esteves de Cima, concelho de Seia, quase a 100 km do Hospital da Guarda.

“Tem incapacidade a 65%, tem síndrome de Sjögren e muitas dores pelo corpo todo e quando faz o tratamento acalma bastante. Era importante manter o estado atual, com benefícios na dor”, conta, esperançado.De mãos entrelaçadas, o casal junto há meio século de vida, completa mais uma sessão de tratamento de ozonoterapia. “Sou eu que cozinho, dou-lhe banho, vou às compras. Sempre foi uma boa companheira, merece todo o meu respeito”, agarra com força na mão da mulher, deitada na cama do hospital a receber tratamento.

De mãos entrelaçadas, o casal junto há meio século de vida, completa mais uma sessão de tratamento de ozonoterapia. “Sou eu que cozinho, dou-lhe banho, vou às compras. Sempre foi uma boa companheira, merece todo o meu respeito”, agarra com força na mão da mulher, deitada na cama do hospital a receber tratamento.

A ozonoterapia está regulamentada como terapia médica da Nomenclatura da Ordem dos Médicos de acordo com a publicação do decreto-lei nº 163/2013 de 24 de abril.

Em Portugal, há atualmente mais de uma centena de ozonoterapeutas.

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