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​Entrevista a Jacinto Lucas Pires. "O lugar da literatura é cada vez mais difícil e de resistência”

25 set, 2020 - 06:41 • Maria João Costa

O escritor, comentador da Renascença, tem novo livro. “Oração a que Faltam Joelhos” é uma ficção que tem uma escritora como uma das personagens principais. O autor considera que escrever é como “desconfinar”.

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Jacinto Lucas Pires compara a escrita de um romance a uma “longa corrida”, onde há momentos em que apetece desistir. O autor revela que o “prazer de escrever e ler” é poder “ser outro”. “O nosso mundo, de repente, desconfina!”, afirma o escritor que está a lançar “Oração a que Faltam Joelhos”. O livro, editado pela Porto Editora, é narrado numa voz feminina e põe a nu as referências literárias do autor.

Em entrevista ao programa “Ensaio Geral” da Renascença, Jacinto Lucas Pires sente que o lugar da literatura é “cada vez mais difícil e de resistência em relação ao que é o mundo”, mas é também na ficção que são tratadas as “grandes questões”.

De onde surgiu esta história para este novo romance que tem uma escritora no centro da ação?

As histórias estão sempre dentro de nós. Parto sempre sem saber de onde é que as histórias vêm. O que me costuma acontecer é, ao partir de algo que está longe e me dá liberdade para escrever, muitas vezes, percebo só isso depois, as histórias vão aproximando-se de mim, ou daquilo que são os meus anseios e sonhos. Interessa-me mais escrever para ser outros, para aumentar o mundo, do que para olhar para mim.

A personagem Cátia ou Kate Souza vive nos Estados Unidos. Ela lança um olhar para Portugal, visto de fora.

Sim, o romance permite isso e é isso que me interessa. É a partir da história individual, ou de várias histórias como as que aqui se cruzam com a de Cátia ou Kate Souza ter a possibilidade de falar sobre o que é o mundo, sobre questões que às vezes parecem que só cabem nos ensaios, no jornalismo ou na teoria. A literatura, e principalmente o romance, têm um lugar para essas grandes questões. A própria história deste romance parece que encontrou esse movimento de se distanciar para ver melhor.

O pai da Kate, que morre tragicamente, era um emigrante português nos Estados Unidos.

A emigração desloca-nos. Por um lado, temos de fazer o luto daquilo que eramos no país de partida e, por outro, construir - num processo semelhante ao da criação artística - uma nova identidade num outro sítio. Foi muito a história que me levou para aí, não pensei nisso à partida. É engraçado como as vidas ficcionais também ensinam os autores, se estiverem disponíveis para ouvir as personagens.


"O prazer de escrever e de ler. É podermos ser outras pessoas, o nosso mundo de repente desconfina!"

Ao mesmo tempo há neste livro uma grande homenagem à literatura, há muitos livros que são referenciados. O livro tem uma "biblioteca" dentro dele?

Sim, achei graça que isso, a certa altura, acontecesse. A Kate torna-se escritora. Às vezes sinto que há um certo pudor na ficção em indicar referências, em tornar explicitas certas homenagens. Achei graça, aqui, isso ser ao contrário. Os nomes de outros autores e grandes obras não só aparecem, como fazem parte da história.

Que referências são essas que interessam ao escritor Jacinto Lucas Pires e à escritora por si criada, Kate Souza?

Temos o [Jorge Luis] Borges, o [Don] DeLillo, o [Roberto] Bolaño, a Flannery O'Connor e até o português Vicente Sanches. Vários autores que entram e que, por vezes, parece que sabotam a história, no bom sentido. Outras vezes ajudam-na a expandir-se.

Foi muito diferente escrever numa voz feminina?

É sempre diferente. Há escritores que escrevem muito a partir da sua biografia, da sua persona, eu gosto mais de ser outros, escrever a partir de outras figuras e universos. Talvez o teatro também me puxe para aí, a ideia de escrever para atores, mas já tinha escrito outras personagens femininas. No meu primeiro livro "Para Averiguar do Seu Grau de Pureza" havia um conto chamado “Sombra e Luz”, que era sobre uma mãe solteira. Eu tinha na altura 22 anos, e algumas mulheres perguntavam "como é que você sabe o que uma mulher grávida sente? Quase me identifiquei com aquela personagem". Na verdade, não estudei o tema. E isso é que é o prazer de escrever e de ler. É podermos ser outras pessoas, o nosso mundo de repente desconfina!

Reconhece uma escrita cinematográfica no seu livro?

Não especialmente. Percebo que se diga isso. É curioso num romance com muitas referências literárias e autores, é como se afinal a velha dicotomia "isto é mais cinema, ou isto é mais literário", não fizesse sentido. Gosto dessa confusão entre o cinematográfico e o literário. Aliás, digo a brincar que os filmes que fiz foram acusados por quem gostava e não gostava deles de serem literários. E os livros, por quem gosta e não gosta, são cinematográficos! Estou algures nesse dilema. Não dou demasiada atenção a isso, para ser sincero.

Mas deixa-se mais facilmente contaminar pelo teatro?

Também! Os diálogos que aprendemos enquanto dramaturgos, com os atores e encenadores, acabam por trazer algumas lições para os livros. Parece-me hoje impossível escrever literatura ou ficção literária, sem imagens, sem pensar que as vidas das pessoas já são feitas de cinema. Agora, também de outro tipo de imagens, de internet e vídeos. É como se muitas vezes já pensássemos em modo YouTube. A literatura escusar-se a isso, só porque há um preconceito contra as imagens, é recusar falar do que tem à frente.


"Escrever um romance é um pouco como uma longa corrida, há momentos em que só queremos desistir"

É curioso que logo nas primeiras páginas do livro surja uma personagem de máscara, um adorno que agora se vulgarizou.

Escrevi isto muito antes da pandemia, como deve imaginar. Quando recebi as provas, fiquei até assustado porque havia demasiadas coisas que pareciam sobre o mundo de agora, o clima e ambiente que vivemos. É engraçado como, sem saber, as palavras às vezes já têm as antenas mais sintonizadas do que o próprio autor que as escreve.

O que é que a literatura pode, que força tem, no momento que vivemos de pandemia?

Acho que é um lugar cada vez mais difícil e mais de resistência em relação ao que é o mundo. Também, por isso mesmo, é um lugar cada vez mais desafiante, interessante e ousado. Quando se está mais nas margens e a escrever contra, as coisas ganham uma clareza que, se calhar, antes não tinham. Acho que já estávamos antes nesse tempo, mas agora tornou-se claro para todos.

A pandemia pôs muita coisa em causa?

Num artigo que escrevi para o Ponto SJ, há uns tempos, disse que o confinamento, na verdade, vinha revelar uma doença que já existia. Nós já estávamos confinados nas nossas redes sociais, na nossa tecnologia portátil que nos deixa presos numa espécie de presente sem janelas. Já não temos memória suficiente, já não conseguimos olhar nem se quer para a semana passada, quanto mais para a década passada ou para os séculos anteriores.

Isso retira-nos também a possibilidade de olhar para a frente, de projetar o futuro e ter visões políticas de futuro. Acho que a literatura, a escrita e a leitura permitem a criação desses espaços e tempo, para não estarmos presos nesse presente claustrofóbico e tendencialmente totalitário que é um pouco o tempo que vivemos.

Como é que surgiu o título deste livro "Oração a que Faltam Joelhos"?

Os títulos não sei se se devem explicar. Gosto de provocação do mistério de um nome. Mas eu retirei isto de um verso do E. E. Cummings ao qual cheguei via Jorge Luis Borges. Estava no processo de escrita do livro, tudo muito quente e confuso para mim, e apareceu-me o verso com a força de um nome. Tem uma ideia de estranheza. A ideia de oração tem qualquer coisa de desejo, de querer que alguma coisa se faça e, por outro lado, as histórias humanas, e esta da Kate Souza não é exceção, também têm muito de falhado e imperfeição. Foi assim, pela mão do Borges, que cheguei ao Cummings que está na epigrafe do livro.

Passaram dois anos desde a publicação de “A Gargalhada de Augusto Reis”. Como foi o processo de escrita deste livro?

Levei bastante tempo, três a quatro anos. O processo foi o habitual, escrever por blocos e com uma lentidão, entre outras coisas que faço. Aos poucos isto foi crescendo. Escrever um romance é um pouco como uma longa corrida, há momentos em que só queremos desistir, há outros em que pensamos: “não, tenho pelo menos chegar àquela esquina”. Só quando acabamos é que percebemos mesmo o que fizemos. É como acontece na vida, às vezes. Quando olhamos para trás é que descobrimos o que estávamos mesmo a fazer.

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