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Graça Franco
Opinião de Graça Franco
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Centeno contra Centeno (Novo Banco – 1.º episódio)

03 set, 2020 • Opinião de Graça Franco


Será possível que Centeno desconhecesse a impossibilidade do pedido formulado ao seu predecessor ou, simplesmente, na luta cerrada movida a Carlos Costa não olhou a meios para atingir os fins?

A prova de que Centeno nunca deveria ter passado diretamente para o Banco de Portugal está aí: Centeno inicia o mandato a negar conhecimento ao Governo, enquanto governador, de uma auditoria que o Centeno ministro exigia a Carlos Costa. Mais: o novo Centeno reconhece que se divulgasse o texto estaria sujeito a pena de prisão por divulgação de segredo bancário. O ridículo mata. E a vingança de Costa à perseguição do ministro serviu-se fria. Gélida mesmo.

Será possível que Centeno desconhecesse a impossibilidade do pedido formulado ao seu predecessor ou, simplesmente, na luta cerrada movida a Carlos Costa não olhou a meios para atingir os fins? Não houve nem uma telefonadela a explicar o porquê da recusa e a falta de senso da insistência?

A oposição ao Banco de Portugal levou o ministro à imprudência de, como governante, ter insistido em solicitar ao banco central acesso a uma auditoria interna sobre a resolução do BES que todos sabiam ter sido executada, não apenas pelo Banco de Portugal, mas sobretudo em conexão direta com o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia, uma vez que foi realizada em plena vigência da "troika" ( estamos a falar de 2014), quando Portugal estava sobre resgate e os resgates bancários impunham uma nova lei de resolução de que o BES foi cobaia.

  • A história é conhecida. A nova auditoria da Deloitte, e o fim da Geringonça, veio por a nu uma espécie de dupla personalidade do ex-ministro. O BE será implacável e não haverá nenhum meio do ex-ministro se sair bem deste episódio. E sem a menor dúvida outros se seguirão, uma vez que Centeno apesar de alheio às decisões do Fundo de Resolução enquanto principal financiador do mesmo torna-se corresponsável, pelas operações autorizadas à nova gestão.
  • Além disso, se os erros da resolução são imputáveis ao ex-governo e ao ex-governador a partir de 2017, os erros do novo contrato de venda são integralmente imputáveis ao ex-ministro e ao Governo da Geringonça.
  • Claro que se o Novo Banco não fosse vendido a tempo perderia rapidamente a licença bancária por se tratar de um banco de transição e não parecia haver muitos interessados para além do Lone Star que, como Centeno não ignorava, era simplesmente um dos chamados “fundos abutre”. Desculpa-se, por isso, a péssima escolha do comprador, mas já não se desculpa o branqueamento posterior.
  • Havia, portanto, oito anos para acertar as contas. E a expectativa praticamente certa de que viriam a ser gastos. Talvez mais lentamente, mas, sempre, gastos. E se não havia certeza, havia a possibilidade conscientemente omitida ou subvalorizada.

A Lone Star faz parte da categoria de fundos que, por definição, investem para limpar balanços e largar a presa logo que possível com chorudas mais valias. O Governo, da altura, e o Centeno ministro, incorreu aí talvez apenas em dois erros: omitir a verdade óbvia de que a venda do Banco era sobretudo para cumprir as imposições de Bruxelas e o contribuinte pagar, e garantir o que já sabia que não podia cumprir, ou seja, que os contribuintes não voltariam a colocar mais dinheiro no Novo Banco. Como ministro conhecia bem o contrato onde estava expressa a obrigação de o Estado reforçar o capital até mais 3,9 mil milhões de euros se se viesse a provar a má avaliação de ativos, ou carteiras de crédito, até ao limite máximo de 850 milhões por ano (isto até 2026).

Onde está a surpresa então? Às vezes vale a pena voltar atrás na história. Depois dos iniciais quase 4 mil milhões de capitalização do novo banco (“bom!”) o Estado conseguiu vendê-lo por mil milhões de reforço de capital, quando o comprador avaliava o balanço em menos 3,9 mil milhões do que a avaliação do vendedor. Foi o que se pode arranjar. E talvez com isso se tenha evitado nova crise bancária. Não se sabe por isso nada a dizer.

A diferença acabou contemplada na tal cláusula, o que em linguagem vulgar corresponde no fundo ao seguinte: (invento) “se tiverem razão e os ativos não valerem o que nós pensamos, estamos prontos a cobrir a diferença, mas desde que isso se prove nas contas apresentadas ano a ano, depois de uma auditoria independente e nunca superem uma entrada de 850 milhões por ano que é o máximo que estamos dispostos a suportar de agravamento de défice”. Mas, “se, entretanto, conseguirem lucros, não haverá reforço nenhum”. Além disso “esta garantia é válida por oito anos e depois de 2026 acaba”. A venda foi feita mais ou menos assim. Mas aos portugueses não foi contada esta parte da história.

Resumindo, quando as faturas começaram a cair, do primeiro-ministro ao Presidente da República todos se mostraram surpreendidos. Como se não estivesse a acontecer o óbvio e os ativos tóxicos estivessem a ser limpos o mais rápido possível para que o banco pudesse, ao fim de quatro anos, entrar em velocidade de cruzeiro.

O pior é que, exatamente agora quando tudo se complica para a banca como um todo, o Novo Banco sofre uma dupla pressão que quase leva António Ramalho às lágrimas. Os danos de reputação do banco bom, todos os dias apresentado como “banco péssimo”, destroem todo o trabalho de recuperação feito até aqui. Quanto valerá o banco agora?

Afinal, a boa gestão “premiada” acaba debaixo de um escrutínio muito superior ao da concorrência com uma agravante: o que estava previsto no contrato desde início, leva os próprios contratantes a abrir a boca de pasmo e pedir explicações.

E os portugueses? Os contribuintes estão simplesmente fartos. Por mais injusto que isto pareça ao gestor pago para limpar o banco do lixo que para lá passou, como se de excelentes ativos se tratasse, a verdade é que, desta vez, os contribuintes querem ter uma palavrinha a dizer.

Não basta o ex-advogado de negócios José Miguel Júdice vir à televisão dizer que todas as operações além de legais lhe parecem “totalmente normais” e mesmo a questão das imobiliárias de vão de escada (criadas por uns testa de ferro totalmente desconhecidos a acreditar no relato sempre bem informado do Público) “é sempre assim”.

Legais, todos imaginamos que tenham sido. No meio de tanta auditoria, relatórios, supervisores, acionistas, controladores internos e externos, não resta a menor hipótese de ilegalidade. Além disso, António Ramalho tem fama de impoluto e, certamente, o proveito. O problema é mesmo de normalidade. Os contribuintes deixaram de não querer saber como se fazem negócios e passaram e exigir conhecer como se gerem, como se vendem e como se compram os ativos dos bancos, especialmente se passaram a ser vistos como ativos do povo. Os bancos fazem o mesmo com o dinheiro que nos emprestam. A desconfiança é mútua.

Mariana Mortágua será implacável. Vai certamente perguntar se é normal que as empresas concorrentes a um negócio de compra de 5 mil imóveis acabem por ser duas ou mais recém-criadas imobiliárias de vão de escada que o único negócio que alguma vez realizaram até ali foi de 500 euros (leu bem 500 euros!).

Irá perguntar se é normal que sejam precisas duas ou mais imobiliárias para esse efeito e porque não uma? E que as ditas sejam criadas para aquele exato concurso, por uma também recém criada e obscura sucursal, do Luxemburgo, de um fundo criado, mais uma vez aparentemente para aquele negócio , nas ilhas Caimão ? E, esse sim gerado por um outro Grande Fundo abutre americano já devidamente conhecido (o Anchorage) e finalmente “imputável”.

Já agora, uma vez que o número pelo qual aquela carteira de imóveis (Viriato) estava registado no balanço passou a ser comprado por muito menos, gostávamos de saber e Mariana voltará a perguntar, o que ia no pacote para confirmar que entre o lixo imobiliário não iam um ou dois imóveis mais apetecíveis, em que alguns compradores ligados aos ex-proprietários do BES pudessem ainda estar interessados. Isto para justificar o interesse ou desinteresse dos interessados.

E porquê tão poucos candidatos e porquê exatamente aqueles? Que levantam também a suspeição de uma vaga ligação ao Lone Star, que por acaso é o atual detentor da maioria do Novo Banco.

Por último, a questão do empréstimo do dinheiro pelo vendedor ao comprador (quase 70 por cento). Sendo uma prática corrente em boa parte da Europa, merece também uma explicaçãozinha só para ficarmos mais sossegados.

Mariana Mortágua será implacável. Não por ser do Bloco nem por ser economista, mas porque já mostrou perguntar o que o contribuinte comum gostaria de perceber em tudo isto. Coisas banais para quem está no negócio bancário, mas muito estranhas para o comum dos mortais.

Ora, isto que nos interessava saber a todos parece que não consta da auditoria. Diz quem já a leu que vem lá tudo o resto desde 2000. Mas, para isso já temos vários livros muito interessantes que nos contam as várias patifarias que constam da acusação do caso BES imputáveis ao “último banqueiro”.

Os portugueses precisavam apenas de respostas a quatro ou cinco destas perguntas, com respostas capazes de encher meia dúzia de páginas A4. Exatamente as que escapam à tão esperada auditoria. Azar dos diabos!

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  • Joao Ferreia
    03 set, 2020 14:52
    Bem visto Graça Franco. Ninguém se atreve a abordar este assunto na generalidade da Comunicação Social, amordaçada com os 15 milhões. Estamos a viver um tempo da ditadura em que tudo é permitido, nada é escrutinado, nem há oposição que modere o caminhar para o abismo.