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Francisco Sarsfield Cabral
Opinião de Francisco Sarsfield Cabral
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Interrogações sobre o Novo Banco

03 set, 2020 • Opinião de Francisco Sarsfield Cabral


Importa perceber como o “banco bom” se tornou, afinal, num banco péssimo, apurando quem e porquê encheu o Novo Banco de ativos tóxicos. Aquilo que agora se conhece da auditoria da Deloitte não nos esclarece.

A divulgação de partes da auditoria da Deloitte ao Novo Banco suscita mais interrogações do que fornece esclarecimentos. A primeira questão a aclarar é sobre os motivos que levaram a Deloitte a adiar duas vezes a entrega ao governo do relatório de auditoria, em maio e julho, apesar das compreensíveis insistências do Presidente da República. Chegou no último dia de agosto, ao fim de mais de um ano de análise.

A consultora analisou 201 operações de crédito, 26 operações relacionadas com subsidiárias e outras empresas associadas e 56 operações com outros ativos, como títulos e imóveis. E concluiu que a gestão destas operações levou a perdas de 4.042 milhões de euros no Novo Banco.

O presidente do Novo Banco, António Ramalho, em conferência de Imprensa na quarta-feira, adiantou mesmo que “mais de 95% são perdas resultantes de ativos originados previamente a 2014. Não há um único novo crédito que tenha sido concedido posteriormente à resolução".

Mas já todos conhecemos o desastre que foi a gestão do BES, ligada ao grupo BES. A perplexidade que os prejuízos do Novo Banco suscitam decorre de este ter sido considerado um “banco bom”, expurgado dos ativos tóxicos do BES (crédito mal parado, sobretudo). De quem foi a responsabilidade de ter enfiado no Novo Banco uma quantidade aparentemente infindável de lixo?

O PS já veio acusar a resolução (isto é, a extinção) do BES em 2014, quando do governo PSD-CDS, bem como o Banco de Portugal, era Carlos Costa governador. Esquecem os socialistas o empenho da Comissão Europeia em que fosse aplicado neste caso, pela primeira vez, um novo modelo de resolução. As coisas não correram bem, de modo que esse modelo não foi repetido na Europa.

Respondendo às acusações do PS irá certamente o PSD lembrar que foi o governo da “geringonça”, com Mário Centeno ministro das Finanças, quem vendeu o Novo Banco ao fundo americano Lone Star, prometendo-lhe financiar eventuais prejuízos até 3 890 milhões de euros, através do Fundo de Resolução, que pertence aos bancos. O Estado adiantou muito dinheiro a este Fundo para cumprir o contrato com o Lone Star, o tal fundo que comprou 75% do capital do Novo Banco.

Temos, assim, ampla matéria para debate político, o que não facilitará o verdadeiro esclarecimento desta trapalhada. Mas pelo menos haverá a situação curiosa de M. Cento, governador do Banco de Portugal, ter de se pronunciar sobre as condições da venda do Novo Banco negociadas por M. Centeno, então ministro das Finanças. Ainda havia quem garantisse não existir quaisquer incompatibilidades na ida de Centeno para o Banco de Portugal...

Por outro lado, importa lembrar que o Lone Star foi o único candidato à compra do Novo Banco. A eventual compra deste banco não suscitou qualquer interesse no mundo bancário e financeiro, o que é um óbvio sinal negativo sobre o que esse mundo pensa sobre o Novo Banco.

Talvez a esperada divulgação pública da auditoria da Deloitte, mesmo sem passagens que o segredo bancário obriga a ocultar, venha a responder a algumas das interrogações aqui apontadas. Entretanto, podemos consolar-nos com o facto de os reguladores bancários alemães não terem detetado uma enorme fraude de cerca de 2 mil milhões de euros, que desapareceram das contas do banco Wirecard. O escândalo vai ser objeto de um inquérito no Parlamento federal da RFA.

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