Espanha

Tormenta de casos ameaça afundar o Podemos. “O partido não existe, só existe Pablo Iglesias”

25 ago, 2020 - 08:02 • Fábio Monteiro

Uma auditoria interna cancelada, adjudicações ilegais, desvio de fundos do partido, acusações de assédio e uma empresa sediada no México: eis os elementos do escândalo romanesco que está a abalar o Podemos, partido liderado por Pablo Iglesias. Se o atual vice-presidente do Governo de Pedro Sanchéz cair, o partido de esquerda pode desaparecer, avisa Pablo Simón, politólogo e professor na Universidade Carlos III, em entrevista à Renascença.

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José Manuel Calvente e Mónica Carmona estavam a conduzir uma investigação interna no Podemos, devido a suspeitas de possíveis irregularidades na contabilidade do partido, quando, em dezembro, foram despedidos.

Os dois advogados e militantes do partido de esquerda foram afastados; Carmona foi dispensada sem razão aparente, Calvente foi acusado de assédio sexual e laboral a outra das advogadas do partido, Marta Flor Núñez. (“Uma vingança” devido à investigação que estava a conduzir, acusou o advogado quando saiu a sentença do processo, em julho. A queixa foi arquivada; o juiz considerou não haver nada de ilícito nas mensagens trocadas entre os dois representantes legais.)

Se Pablo Iglesias estava a par ou esteve envolvido nos despedimentos dos dois advogados, não se sabe. Por aqueles dias, o Podemos estava prestes a chegar pela primeira vez ao poder em Espanha. Iglesias estava em festa: abraçou Pedro Sanchéz e tornou-se vice-presidente do Governo, criando assim uma “geringonça” minoritária de esquerda.

Este mês, Calvente parece ter voltado para assombrar Iglesias – e pôr o seu futuro em risco. Na sequência de uma série de denúncias de alegado desvio de fundos e gestão desleal por parte do advogado, um juiz de instrução de Madrid decidiu avançar com uma investigação ao Podemos.

Além de indiciar o Podemos como organização jurídica, o magistrado Juan José Escalonilla chamou três nomes do partido a depor: Juan Manuel del Olmo, responsável pela comunicação e braço direito de Iglesias, Daniel Frutos, tesoureiro do partido, e a gestora Rocío Esther Val.

A denúncia de Calvente (a que o "El Mundo" teve acesso): no interior do Podemos existe uma “suborganização corrupta”; práticas de “coerção”, “silenciamento” de dissidentes e pagamentos de “bónus”; uma rede de “prémios” que incluíam o pagamento de despesas “inflacionadas” em gastos correntes, como viagens de táxi.

Ou seja, tudo aquilo que o Podemos (e Pablo Iglesias) denunciou durante os últimos anos. Agora, a oposição exige a sua demissão.

Oxímoro político

O Podemos, por estes dias, é um oximoro: uma vítima-culpada. Tanto é vítima do desvio de fundos quanto é culpado, já que quem desfalcou o partido foram membros da própria direção.

A investigação sobre este caso ainda está numa fase inicial, mas é inegável que o escândalo causa “desgaste” na imagem Podemos. Estamos a falar de “um partido intransigente com a corrupção”, lembra à Renascença Pablo Simón, politólogo e professor na Universidade Carlos III, em Madrid.

A Pedro Sanchéz, contudo, não lhe interessa nada deixar cair o partido parceiro de Governo e ir a umas eleições antecipadas.

“Os dois partidos [PSOE e Unidas Podemos] querem dar prioridade à recuperação da economia, antes de se voltarem a aventurar numa ida às urnas”, explica Simón. E também o Partido Popular (PP), liderado por Pablo Casado, não tem qualquer interesse numa crise política: iria herdar um país em estado de calamidade financeira. As eleições de 10 de novembro de 2019 foram as quartas no espaço de dois anos; o Vox, partido de extrema-direita, cresceu de forma significativa.

Sem Pablo Iglesias, o Podemos, partido que nasceu em 2014, pode desaparecer. “O Podemos não existe, só existe Pablo Iglesias. Não há líderes internos, figuras que o possam substituir caso saia. Seria uma crise tão grande que podia levar ao fim do partido”, avisa o politólogo.

Paloma Cervilla, jornalista do ABC, partilha da mesma opinião. “O Podemos é Pablo Iglesias. Sem ele, não é nada", indica em entrevista à Renascença. ”Estamos a falar de um partido muito personalista”, que “enfrenta problemas internos” e que foi derrotado nas últimas eleições em que participou, na Galiza e na Catalunha, recorda.

Obras na sede do Podemos... e dinheiros no México

Em 2019, o Podemos fez obras na sua sede em Madrid sem licença para tal e cedeu a obra por ajuste direto. “A adjudicação foi feita a dedo e a licitação foi uma farsa sobretudo porque o preço da adjudicação ascendia a 1.361.055 de euros quando o preço de licitação publicado era de 649.936,68 euros”, revelou o juiz de instrução Juan José Escalonilla.

Ora, como o Podemos recebe fundos públicos, está obrigado por lei a abrir concursos públicos em obras.

Sobre este caso, Calvente entregou ao magistrado o conteúdo de várias mensagens de e entre membros do partido.

Em abril de 2019, um funcionário do partido disse ao advogado: “O Rocío disse-me que os trabalhos vão começar a 20 de maio e temos de tratar do tema da publicitação” - o que indica que as obras estavam já adjudicadas e prontas a serem lançadas ainda antes do concurso se tornar público. Cerca de um mês depois, o mesmo funcionário informou o advogado de que “estavam a chegar os contratos dos empreiteiros”, quando o construtor em causa já estava escolhido.

No mesmo processo de instrução aparece ainda implicada uma empresa de consultoria que é propriedade de uma firma brasileira sediada em Portugal, a ABD Europa Lda, e uma outra, a Neurona Consulting, com base no México, que detém uma larga carteira de clientes entre os grupos de esquerda latino-americanos. Alegadamente, estas empresas terão sido utilizadas para desviar fundos do Podemos.

Fiel ao partido

Apesar de denunciante, Calvente não parece ter perdido a afeição pelo Podemos. Na passada quinta-feira, o advogado fez uma série de publicações no Twitter para se defender, mas também preservar a agenda do partido.

Se era verdade que alguns dirigentes "tinham metido a mão" na "caixa" do partido "em benefício próprio e, supostamente, de amigos", disse, o caso não tem comparação com outros do passado envolvendo outros partidos.

"As diferenças entre todos os casos de corrupção de partidos em Espanha, no Podemos não estamos perante alegada corrupção de um partido, mas sim de uma suposta 'corrupção dentro do partido', um alegado 'financiamento ilegal' de alguns dirigentes", escreveu.

Para o ex-advogado, não estamos perante os casos 'Gurtel' (que envolveu o PP) ou 'Filesa' (que envolveu o PSOE). “Estamos supostamente perante 'alegados desavergonhados' que 'meteram a mão' na caixa do partido para seu suposto benefício e, supostamente, de amigos”.

De acordo com Calvente, o Podemos como partido "é uma vítima" e "devia perseguir" os responsáveis.

Até novembro

A 15 de setembro, o juiz Juan José Escalonilla irá ouvir Gloria Elizo, atual terceira vice-presidente do Congresso e antiga responsável pela equipa legal do Podemos, e Mónica Carmona, advogada que foi dispensada juntamente com Calvente.

Ambas foram chamadas a depor enquanto testemunhas para refutar as denúncias feitas por Calvente. Por sua vez, os três acusados - Juan Manuel del Olmo, Daniel Frutos e Rocío Esther Val - só vão ser ouvidos pelo juiz madrileno a 20 de novembro.

Desde que o escândalo eclodiu, Pablo Iglesias remeteu-se ao silêncio. A ironia da situação não escapa a Paloma Cervilla. “Ele que pediu tantas explicações aos outros partidos, sobre os seus gastos, podia agora vir dar explicações sobre o que aconteceu dentro do seu partido.”

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  • João Lopes
    25 ago, 2020 19:43
    Os comunistas, em todos os países têm muita dificuldade em reconhecer o direito à opinião contrária, não sabem viver numa democracia plural... Ainda não aprenderam! Assim podem vir a desaparecer do mapa político, porque cada vez têm menos votos! Os comunistas já não metem medo a ninguém!

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