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Postal de Quarentena - Isfahan

“A Covid pode fazer colapsar o regime no Irão”

04 ago, 2020 - 06:10 • Anónima*

Mais de 17 mil pessoas morreram de Covid no Irão, segundo dados oficiais, mas os números reais poderão ser muito superiores, segundo dados revelados recentemente pela BBC. Uma jovem iraniana escreve-nos a dar conta de como as sequelas da pandemia podem pôr em risco a própria sobrevivência do regime.

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O Irão foi logo um dos primeiros países para além da China a ser atingido em força pela pandemia. O primeiro caso confirmado foi em Qom, em meados de fevereiro, e desde aí não conseguimos ultrapassar o problema.

Os iranianos têm uma forma muito particular de lidar com estas situações, que é esquecer que os problemas existem.

Com a Covid, por exemplo, primeiro tiveram medo, mas depois de algum tempo tentam esquecer-se do assunto, porque não conseguem viver sem estar em comunidade, sentem a obrigação de visitar a família pelo menos uma vez por semana.

Sem estes convívios familiares ficam de tal maneira deprimidos que ao fim de dois ou três meses tentam regressar à vida normal. Esta situação causou muitos problemas, como por exemplo o aumento do número de infetados e agora está tudo mais perigoso para todos.

Por causa da crise económica as pessoas já não podem estar em casa, porque precisam de trabalhar. Voltaram à sua vida normal e a maioria nem usa máscara.

Felizmente nem eu nem a minha família fomos infetados pelo vírus, pelo menos por enquanto, mas a nível profissional tenho sido afetada. Eu trabalho numa loja de artesanato e dependemos muito do turismo, mas há quase seis meses que não recebemos cá turistas. Em cima de tudo isto temos as sanções económicas internacionais, que tornam a nossa situação económica pior que a de outros países.

Como se sabe, o Irão é um país muito religioso. O Governo é religioso e o povo também. O resultado é que o Governo tem tentado resolver este problema com a religião. Inicialmente mandaram fechar as mesquitas, mas depois de algum tempo voltaram a abri-las e querem até permitir a celebração do Muharram, uma das grandes datas do Islão xiita, em que os homens se autoflagelam e cortam com navalhas para expressar o seu pesar pela morte de Ali, o nosso primeiro Imã, na batalha de Karbala.

Se isto avançar vai causar muitos problemas, porque haverá muitas multidões.

Ao longo da história os governos religiosos sempre tentaram usar a religião para cobrir os seus erros, e no Irão não podemos criticar abertamente o Governo, porque é considerado sagrado. Mas a verdade é que por causa da sua própria incapacidade, e por falta de dinheiro, o Governo não está a conseguir responder a esta situação e se isto continuar assim penso mesmo que o sistema pode colapsar.

O problema é que numa ditadura, quando o regime começa a sentir medo recorre mais à violência e fecha-se mais sobre si mesmo, e é a isso que estamos a assistir.

Isfahan, onde moro e trabalho, é atualmente a terceira maior cidade do Irão mas é uma das mais bonitas cidades do mundo. Já foi duas vezes capital do Império Persa e todo esse património histórico sobrevive ainda. Sobreviveu aos séculos, à queda do império, à queda do Xá e sobreviverá a este regime e à Covid-19.

*A autora deste postal pediu para não ser identificada.

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