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​“A má relação com o remorso colonial” subsiste, diz escritor João de Melo

17 jul, 2020 - 06:28 • Maria João Costa

Esteve 27 meses na guerra colonial. João de Melo diz que o conflito lhe definiu o destino. Talvez por isso voltou ao tema na sua nova obra, “Livro de Vozes e Sombras”, editado pela D. Quixote. Açoriano, o autor mistura no enredo também a história dos homens que quiseram a independência do arquipélago.

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Diz que não escreve romances históricos, porque iria escrever “com a ideologia de hoje”. O escritor João de Melo acaba de lançar “Livro de Vozes e Sombras”, uma obra que mergulha na História recente portuguesa, retrata as vontades independentistas da Frente de Libertação dos Açores e das ex-colónias portuguesas.

Assume que o livro faz “um questionamento da História”. O autor do premiado “Gente Feliz com Lágrimas” continua a recordar com dor os 27 meses que esteve em Angola na guerra que irá consigo “pela vida fora”. Sobre ataques como o que aconteceu à estátua do padre António Vieira, em Lisboa, diz serem lamentáveis e aponta que “não podemos hoje ter a legitimidade de julgar retroativamente essas pessoas”.

Uma das protagonistas do “Livro de Vozes e Sombras” é uma jovem jornalista que não tem memória de acontecimentos como os que relata no livro. É um piscar de olho às novas gerações?

É claramente a intenção de passar testemunho às chamadas gerações seguintes que são, aliás, muito referidas no livro. Mas comecemos pelo tema. Nunca ninguém tinha transposto para a literatura, desta forma, o tema do separatismo açoriano, isto é, da tentativa de lutar pela independência do arquipélago, ao tempo em que estava na ordem do dia a independência das ex-colónias africanas e o PREC, o Processo Revolucionário em Curso, em Lisboa.

O que o levou a juntar estas duas histórias?

Achei que tudo isto era, não só parte de uma geração, mas sobretudo algo que os meus contemporâneos tinham que assumir e que não podia de modo nenhum ser remetido ao esquecimento. Quando já se escreveu a História, e a crónica desses tempos, talvez possa competir à literatura trazer de regresso ao presente, à memória, à vivência e à cultura aquilo que só uma geração viveu.

A jovem jornalista Cláudia Lourenço desembarca nos Açores com uma missão secreta.

Quis que a protagonista da desvenda de tudo isto fosse uma jovem jornalista que é descrita ao longo do livro, pela sua idade, beleza e coragem. Ela vai ouvir um ex-operacional da Frente de Libertação dos Açores (FLA), mas ele exige levá-la para um sítio escondido e tem de se encontrar com ela no cais de Ponta Delgada, levando-a para as suas terras, na freguesia das Capelas. O facto de ela ter aceitado todo este jogo como preço do desvendamento daquilo que ocorre, é uma nota de coragem da jovem Cláudia Lourenço, jornalista de um jornal que não existe a que eu chamo “Quotidiano”. Tentei cruzar este tema com outro que se vai perdendo na trincheira do esquecimento de uma geração que é o drama do regresso dos retornados.

Como é que coseu toda a trama com essas duas histórias?

O mais difícil foi construir uma estrutura que pudesse comportar tudo isto em sequências alternadas de forma a que o leitor também participasse, e completasse alguns momentos e lacunas. É fácil o leitor também ter a palavra neste livro.

No livro junta as duas vontades de independência, a dos açorianos e a das ex-colónias portuguesas.

Os próprios açorianos eram mobilizados para a guerra colonial para defender as colónias. Quando esse personagem, esse ex-operacional da FLA, evoca o império e a independência das ex-colónias para justificar a necessidade de dar a independência aos Açores, ele faz a equivalência entre os Açores e a Madeira como colónias e, portanto, com o mesmo direito à independência quanto os territórios africanos, nomeadamente os arquipélagos de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. O que faltou aqui para que a FLA tivesse razão, era que ela tivesse nascido e reivindicasse a independência antes do 25 de abril, quando as coisas eram duras e a doer.

Escreve no livro "Portugal não mais quis saber de nós, desta pobreza, da perdição solitária das ilhas". Os Açores sempre foram um território esquecido?

A asfixia e a solidão remeteram o arquipélago para uma espécie de território remoto, longínquo, esquecido e injusto. A grande contrariedade é ver como ilhas tão bonitas como os Açores e a Madeira, afinal foram terras tão madrastas para os seus naturais. Hoje nos Açores, a população não chega a 250 mil pessoas, mas calcula-se que quase um milhão de açorianos esteja fora. Isto não foi emigração, foi despovoamento. Não havia nos Açores meios para albergar tanta gente, nem houve nunca da parte de Lisboa uma estratégia de desenvolvimento dos Açores para que estivesse do lado do todo nacional, sempre!

Este livro revela um profundo trabalho de investigação. E por vezes a fronteira entre ficção e realidade é muito ténue.

Para fazer ficção, tenho de conhecer a realidade. Até para fugir dela! Eu estudei, entrevistei pessoas, tenho documentação, falei com imensa gente, guardo coisas desse tempo. Foi essa investigação, conhecimento e trabalho que tive ao longo de muito anos que me permite esta espécie de compromisso entre a ficção absoluta e a realidade absoluta.

Como não quero deixar para trás o problema de África, da descolonização inventei uma cega que é quem relata a história de uma família africana, de uma colónia que não se diz qual. É pelos olhos da cega que vejo e acompanho o processo do retorno dos portugueses de África. Tendo sempre como intenção, inserir o passado recente que mudou as nossas vidas no livro, e inserir um questionamento da História.

Precisamos de questionar essa História recente da descolonização?

Se olharmos para a narrativa da História de Portugal, não há lugar, ou há muito pouco lugar à derrota e à tragédia. Quem escreve a História é o vencedor e nunca o vencido. Só a literatura pode dar a voz aos vencidos. E essa foi uma das minhas intenções, dar a voz aos vencidos africanos, e açorianos.

A causa independentista dos Açores ainda faz sentido?

Houve uma altura em que se deu uma viragem de 180 graus. Creio que o grande marco dessa viragem foi uma presidência aberta de Mário Soares aos Açores, quando a FLA já estava meio desativada, mas havia ainda grandes ressentimentos escondidos. Mário Soares foi lá e pacificou de todo esse propósito. Quase que chamou os açorianos ao seu portuguesismo. Foi uma coisa extraordinária. Mário Soares era um jogador político e anulava os seus inimigos políticos, chamando-os a si. Foi uma espécie de reencontro da História com a realidade. Deu-me a entender que era um povo perdido que de repente descobriu não só a sua identidade, como o orgulho que podia ter nisso.

Este é, para si, o livro que as gerações mais novas deveriam ler para melhor conhecer a História recente de Portugal?

Dado os problemas de leitura que temos neste país, dado que também nos programas de ensino, sobretudo no domínio da História e da cultura a contemporaneidade é a que está mais prejudicada, os jovens de facto desligaram-se. Dá-me ideia que este deveria ser um livro que essa geração devesse ler, porque nele está um caminho para irem mais fundo e longe na descoberta desse tempo e no imaginário desse país que está na origem daquilo que eles são e do que eles vivem hoje. Hoje somos um país europeu, antes tínhamos províncias ultramarinas que, absurdamente, eram maiores do que o próprio país. Tivemos três frentes de guerra, durante 13 anos, em África e mobilizamos para as guerras 850 mil portugueses.

Este livro também ganha renovado sentido e atualidade numa altura em que vemos a contestação aos antigos colonizadores ganhar expressão.

Traz de volta alguma outra atualidade do tema da nossa relação com o colonialismo, de que forma fomos colonialistas, e de que forma esse colonialismo português foi racista ou ainda o é. O livro trata disso. A infeliz atualidade deste tema que vem da América e se propagou pelo mundo traz de volta a nossa péssima relação com a consciência em relação aos povos africanos.

Ainda temos muito para arrumar no que toca a esse passado africano?

Se olharmos para o nosso quotidiano, nada aconteceu na cabeça e comportamento de um número infinito de pessoas. Parece que essa capacidade de esquecer só tem a ver com o problema da má relação com o remorso colonial. Creio que a expressão não é excessiva. O nosso remorso colonial existiu, na guerra, antes e depois dela; e também a prática da discriminação, do racismo e da grande injustiça social que presenciei em África, em Angola durante 27 meses.

Cheguei a uma altura em que fiquei convencido que não estava a defender coisa nenhuma, nem província, nem colónia, nem povo, nem nada. Estava a defender os interesses dos donos das grandes roças e as cidades brancas que estavam no conforto da retaguarda, estando eu na frente. É uma parte da minha vida que me doeu muito e continua a doer. É a história das guerras que não acabam nunca e vão connosco pela vida fora. Definem o nosso destino.

Como vê movimentos como o "Black Lives Matter" ou manifestações contra certas figuras agora olhadas como colonizadoras?

Se há vultos a quem erigiram estátuas, de gente comprometida com os tempos e com os factos, não podemos hoje ter a legitimidade de julgar retroativamente essas pessoas. Elas estavam num outro tempo, num outro país e num outro mundo. Não é justo julga-los à posteriori. Penso que deveria haver um movimento de caráter cultural, e não de rua, para perceber o que é que nos trouxe até aqui. Aquela triste história de terem em Lisboa atacado a estátua do Padre António Vieira foi um episódio absolutamente lamentável. Não sei porquê o Padre António Vieira! Há estátuas pela cidade de outros que foram, de longe, mais colonialistas e mais militaristas do que ele. Esse não é o caminho.

Qual é no seu entender o caminho?

Eu sou pela solução da consciência cultural desse tempo, da História e de tudo aquilo que nós fomos. Não esquecer que Portugal foi pioneiro de uma civilização. Nós não podemos sofrer hoje os males de consciência dos tempos maus que isso pode representar, nem podemos também fazer nossos os atos e as ações daquilo que pertence ao passado. É um pouco por isso que eu não escrevo romance histórico. Porque, inevitavelmente, eu iria escrever com os sentimentos e, sobretudo, com a minha ideologia de hoje sobre o passado. E isso não me parece legítimo. Os romances tomam sempre partido, sempre!

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  • César Augusto Saraiva
    20 jul, 2020 Maia 20:01
    Muito bem! Deve ser um livro interessante; que no entanto não devo comprar. Diz o escritor que «uma das minhas intenções foi dar voz aos vencidos africanos»... Quais africanos vencidos?! ... Os de Angola que ficaram com tudo de bom e do melhor e que foi construído ao longo dos 500 anos?!... Ou os de Moçambique?!... Também diz que « presenciou injustiça em Angola durante os 27 meses em que lá esteve»!... Uma eternidade!... Volto a perguntar: E há quantos meses cá está ou vive?!... Presumindo eu que se tenha vindo embora no pós-25 de Abril de 74, nesses longos e passados meses até ao dia em que escreveu o livro, não viu nenhuma injustiça em Portugal?!... Claro que Não!.. Um snobe nunca vê nada para lá do seu nariz...

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