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Entrevista a ​Ricardo Baptista Leite

“Sinto que estamos apenas no início de um tsunami”

16 jul, 2020 - 06:35 • Eunice Lourenço

Ricardo Baptista Leite, deputado do PSD e médico, acusa a DGS de não conseguir cumprir a sua missão e defende um novo modelo de saúde pública com participação das Forças Armadas. Em entrevista à Renascença, diz que a crise sanitária e social provocada pela Covid-19 pode estar ainda no início e desafia o Governo a entregar ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) as multas devidas por passageiros sem teste e não à empresa que gere o aeroporto.

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Ricardo Baptista Leite: “Sinto que estamos apenas no início de um tsunami”
Ricardo Baptista Leite: “Sinto que estamos apenas no início de um tsunami”

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A informação é, de momento, a única vacina contra a Covid-19, pelo que quanto mais houver melhor. Mas Ricardo Baptista Leite acusa o Governo e a Direção-Geral da Saúde (DGS) de não disponibilizarem informação suficiente, nem sequer aos pedidos dos meios universitários. O que, diz prejudica o esforço nacional.

O deputado do PSD, que foi presença assídua nas reuniões que juntavam políticos, parceiros sociais e especialistas no Infarmed, diz que voltar àquele sistema de reuniões é prejudicial.

Em entrevista à Renascença, anuncia que o PSD vai entregar, no Parlamento, um pedido para uma mudança mais profunda no boletim diário da DGS, de modo a incluir informação mais precisa, nomeadamente informação mais local.

Tem sido uma presença constante nas reuniões que decorreram no Infarmed. Afinal aquelas reuniões eram úteis ou não?

As reuniões do Infarmed, no momento em que foram criadas por parte do Governo, surgiram na sequência de vários apelos de vários partidos, entre os quais o PSD, para haver uma articulação entre o poder político e os especialistas no sentido de poder ajudar na tomada de decisão. Numa fase inicial, as apresentações eram bastante pragmáticas, com base na incerteza que este vírus comporta, dando de facto orientação no processo de tomada de decisão que, no final do dia, compete aos políticos.

O que se tem verificado de facto nas últimas reuniões é que, pelo facto de ser à porta fechada, o secretismo tem dado origem a um conjunto de interpretações externas que gera incerteza e contrainformação que é prejudicial num momento em precisamos de clareza na informação sobre a pandemia.

Por outro lado, começou-se a gerar um sentimento, nas próprias reuniões, de que não havia uma articulação entre as múltiplas apresentações que eram feitas, diminuindo a utilidade no apoio à decisão. Depois, começaram a surgir várias tentativas de utilização política, até na fase das perguntas, por parte dos representantes partidários. Esse conjunto de fatores levaram a que o PSD apresentasse um requerimento para que pudéssemos ouvir, de 15 em 15 dias, entre a comissão de acompanhamento que já existe e a comissão de saúde, os especialistas e os representantes que o Governo entendesse. Infelizmente com os votos contra do PS e do PCP, apesar do voto favorável dos outros partidos, esta ideia foi chumbada.

O primeiro-ministro diz que vai continuar a fazer reuniões no Infarmed, mas acho que é prejudicial fazermos essas reuniões à porta fechada porque neste momento precisamos de dar informação clara aos portugueses.


Sentia que era possível tomar decisões políticas com base naquelas reuniões?

A informação que nos era dada não tinha o nível de detalhe que me permitiria a mim, se tivesse de o fazer, decidir o que fazer numa determinada freguesia ou concelho. Daquilo que vislumbramos, informação mais detalhada estaria disponível para o Governo e quero acreditar que sim para suportar o processo de decisão.

O primeiro-ministro foi chamando os partidos para tomar as decisões difíceis até final de abril. Depois, a curva da pandemia parecia estar a melhorar e os partidos foram dispensados e o Governo assumiu a totalidade das responsabilidades de decisões a partir do início do desconfinamento. Desde então, nunca mais os partidos foram chamados para discutir políticas públicas relacionadas com a Covid-19.

Quero supor que o Governo tenha acesso a mais dados, creio que como deputados também deveríamos ter acesso a esses dados, mas infelizmente um funcionário público na Direção-Geral da Saúde tem acesso a mais informação que um deputado eleito. Isso parece-me que contradiz o que deveria ser o normal funcionamento das instituições.


O acesso aos dados foi sempre uma questão problemática ao longo deste processo. De tal forma que o Governo num dos decretos obrigava a disponibilizar os dados, pelo menos, às entidades científicas e académicas. Alguma vez, através por exemplo da Universidade Católica onde tem responsabilidades, conseguiu ter acesso aos dados que pediu?

Várias entidades universitárias, incluindo a Universidade Católica, fizeram pedidos e foram negados. Nunca nos foi cedido. Tenho registo na Ordem das centenas de casos pedidos de universidades para potenciais estudos ou acompanhamento da epidemia em que essa informação não foi dispensada, o que me parece prejudicar este esforço nacional.

A informação é a única vacina que nós temos e, nesse sentido, se tivermos um conjunto de personalidades, sejam políticos, universidades, jornalistas ou os portugueses em geral a terem acesso a essa informação, todos podemos contribuir e ter uma melhor noção da gravidade da situação e da sua evolução.

Creio que a pandemia está a colocar uma lupa sobre muitas fragilidades das instituições públicas e, na realidade, aquilo que estamos a ver é que a Direção-Geral da Saúde também tem as suas fragilidades, bem como o Ministério da Saúde e o Serviço Nacional de Saúde e que ficaram mais expostas com esta pandemia.


Em que é que acha que essas fragilidades se têm manifestado? O que tem falhado mais em Portugal: a direção política ou as competências das autoridades sanitárias?

Acho que, neste momento, o foco tem de ser em resolvermos a pandemia e conseguirmos olhar para o futuro. Nesse sentido, precisamos de informação para apoiar as decisões políticas e temos de aplicar o que sabemos que funciona no resto do mundo. Identificar precocemente todas a pessoas infetadas é fundamental, identificar todos os suspeitos e garantir o seu cabal isolamento é fundamental. Assim como controlar as entradas no país

Há aqui problemas estruturais que para o futuro, perante pandemias que são inevitáveis num mundo globalizado, vamos ter de trabalhar, quer a nível nacional, quer a nível global. A nível nacional, parece-me que hoje é consensual que a DGS como existe não consegue cumprir a missão de prevenção e resposta perante emergências ou ameaças biologias e terroristas. Precisamos de repensar o nosso modelo de funcionamento.

Haveria aqui uma oportunidade para criamos uma entidade que possa ficar responsável exclusivamente pela gestão de dados em saúde. Por um lado, ajudaria na questão da vigilância epidemiológica, mas por outro lado ajudaria na própria gestão do SNS, para podermos evoluir de um serviço nacional que está focado na doença para estamos orientados para novos modelos de financiamento com base nos resultados em saúde e, para isso precisamos de dados.

Um segundo aspeto que podia passar da DGS para uma entidade chamada "Saúde Pública Portugal”, que teria a função de fazer muito do que a DGS faz hoje: programas de prevenção, normas de orientação clínica, tradução de diretivas. E depois teríamos de ter uma entidade que se dedicasse exclusivamente à prevenção e intervenção em emergências perante ameaças biológicas e terroristas. E aí teria de ser um esforço conjunto entre a Saúde, a Proteção Civil e as Forças Armadas e teria de ter a capacidade de estar constantemente a ensaiar e a simular cenários para quando o indesejável acontecesse, se acontecer, estivéssemos melhor preparados.

Essa estrutura de proteção e segurança e defesa, do ponto de vista da saúde e das ameaças biológicas é fundamental para manter a nossa economia a funcionar. Não estarmos preparados agora colocou em causa a nossa economia, obrigou-nos fechar. Mas isto aplica-se ao todo internacional.

Neste momento, faltam meios e faltam recursos humanos capacitados. E quando olhamos para o Orçamento Suplementar percebemos que ninguém está a levar isto a sério. Colocar 700 mil euros para a saúde pública não chega nem se perto nem de longe para fazermos esta reforma que é necessária para nos prepararmos em relação ao futuro. Precisamos de repensar o nosso dispositivo de saúde pública porque a nossa economia, quer nacional, quer europeia quer global, não pode voltar a fechar como fechou. Não aguentamos.

O cataclismo social que se está a montar, neste momento, é gigantesco e vai ter um efeito em réplica que nos vai levar gerações a ultrapassar por completo. O mundo tem de perceber, tal como percebeu a seguir às grandes guerras que precisava de apostar na segurança e defesa, temos de perceber que este é o momento de apostar na saúde.


O que é que ainda não sabemos sobre este vírus que está a dificultar a forma de atuar?

Se calhar também temos de olhar para o lado positivo. Já aprendemos alguma coisa.

Então vamos por partes: o que é que já aprendemos?

Há seis meses desconhecíamos este vírus, hoje já sabemos, por exemplo, como tratar melhor os casos mais graves. Temos alguma medicação para os doentes ventilados e pré-ventilados. Ou seja, é expetável que a mortalidade, como já se vai vendo, vá diminuindo devagarinho.

E o que não sabemos?

Por um lado, do ponto de vista do sistema imunitário não sabemos como é que o vírus funciona. Vemos que temos dois níveis de imunidade, mas parece que essa imunidade tem pouca durabilidade no tempo. Depois da pessoa infetada, não é certo que não seja reinfectada. A questão das vacinas, que está intrinsecamente ligada à imunidade, e começamos a ter boas notícias nesse campo. Estamos a investir recursos como nunca foram investidos em nenhuma área da ciência.

Estamos a aprender à medida que estamos a andar. Mas o tempo de ciência não é o tempo da política porque dependemos dos políticos para tomar as decisões acertadas. A ciência é muito mais lenta e a ideia de que basta injetar vários milhões de euros e a vacina sai do outro lado, é errada.

É fundamental ter sentido de urgência na pandemia porque a pandemia é uma pequena parte, mas tem um efeito devastador à sua volta. Veja-se só na saúde o número de consultas canceladas. E de cirurgias e os 15 mil diagnósticos de cancro não forma realizados comparados com o período homólogo. E estamos apenas no início desta crise.

O pedido do PSD para haver reuniões quinzenais no Parlamento foi rejeitado e não está a haver acesso a dados. Como é que se resolve o acesso à informação?

O que foi aprovado, com o voto também do PSD foi um requerimento da autoria do Bloco que solicita o envio quinzenal da informação semelhante àquela que era apresentada nas reuniões do Infarmed e o PSD entrega esta semana um projeto de resolução que vai pedir uma mudança mais profunda no boletim diário da DGS, de modo a incluir informação mais precisa, nomeadamente informação mais regional e mais local nas zonas mais afetados.

Não faz sentido, nem é verdadeiramente útil termos os dados de internamentos ou doentes em cuidados intensivos a nível nacional. Esse boletim devia distinguir por regiões. Aquilo que tem de se fazer é muito simples: é identificar e isolar, não é recomendar o isolamento. E fazer o que for necessário para essas pessoas ficarem em casa, se for preciso pôr-lhe comida na mesa durante 15 dias ou pagar-lhes mesmo para ficarem em casa. Se fizermos isto de forma sistematizada, vamos conseguir garantir que os números se mantêm baixos e o resto do país possa continuar a funcionar. Não faz sentido que, por 20 mil casos ativos a nível nacional, tenhamos 10 milhões de pessoas em situação de semi-confinamento.

Tem insistido também muito na questão das viagens e nos controlos no aeroporto. O que é que ainda está a faltar?

Os Açores e a Madeira desde muito cedo perceberam que esta era uma medida que tinha de ser tomada e conseguiram resolver com a testagem e a medição de temperatura. Em Portugal continental, o Governo hesitou. Começaram a medir a temperatura, mas não havia nenhuma punição para quem tivesse temperatura acima de 37 ou 38 graus e era só dito à pessoa que ligasse para um número que lhe era dado. Esta semana, no Conselho de Ministros finalmente determinaram a obrigatoriedade da medição da temperatura e sanções caso a Ana- Aeroportos falhasse a medição.

Junta-se a isto algo que me deixa profundamente preocupado, que foi a informação que recebi esta semana numa visita ao aeroporto. Tornaram obrigatórios os testes para os viajantes que vêm do Brasil, dos EUA e dos países africanos de língua oficial portuguesa, nas 72 horas antes têm de fazer um teste e tem de vir com comprovativo de teste negativo para entrar no nosso pais. Mas essas pessoas, geralmente, não têm capacidade de fazer o teste nos países de origem com esse prazo.

As pessoas chegando a Portugal, chegam sem o teste feito e o que acontece é que, até ao ultimo Conselho de Ministros, havia uma multa de mil euros que as linhas aéreas tinham de pagar por cada passageiro que autorizaram a embarcar sem comprovativo do teste negativo e essa verba basicamente é para ser entregue via ANAC à empresa privada que gere os aeroportos. Como no início desta semana chegaram três voos de cada destino estes, com 300 pessoas em cada um deles, são 900 pessoas. Se estamos a afalar de quase um milhão de euros em multas pagas por uma empresa pública que é a TAP, em que injetamos mil milhões de euros dos nossos impostos, para agora pagarmos milhões de euros ao longo do verão a uma empresa privada que gere aeroportos. Há algo aqui que não bate certo. E as multas foram aumentadas no último Conselho de Ministros. O governo ainda vai a tempo de corrigir isto. Se é para pagar mil euros para a Ana - Aeroportos fazer um teste cujo custo é muito mais baixo, a minha sugestão é que ponham médicos do SNS no aeroporto de Lisboa e do Porto e do Algarve a fazerem testes e que se paguem esses mil euros por passageiro ao SNS.

Nas últimas semanas, tem sobretudo dedicado atenção a Lisboa. Disse que “se falharmos na resposta em Lisboa, estaremos a falhar ao país”. Como avalia a intervenção do presidente da Câmara de Lisboa e presidente da Área Metropolitana de Lisboa (AML)?

A AML como um todo é que tem de ser vista. Creio que os presidentes de câmara demoraram, de um modo geral, a responder nos concelhos mais afetados. A resposta local é muito importante. No concelho de Cascais temos visto uma ação muito proativa da parte do presidente de câmara.

Creio que os presidentes na parte Norte da AML acabaram por ser mais lentos a reagir fruto de falta de informação. Houve aqui algum atraso, alguma dificuldade na resposta e isso comprometeu a nossa capacidade de intervir.

Vamos ter de lidar com este vírus durante meses, senão anos. Temos de nos deixar do tipo de resposta de emergência para passarmos a ter uma resposta de consistência. Os autarcas têm aqui um papel muito importante, como pessoas que estão na primeira linha, que conhecem no tereno o que se está a passar, que digam de forma clara o que é que precisam.

Um debate em que se envolveu foi a legalização da eutanásia. Acha que a essa legalização já não é evitável?

Ainda antes da votação dos projetos há ainda a votação de um projeto que não me parece que será bem-sucedido, que é uma iniciativa de cidadãos para a realização de um referendo. O Parlamento será soberano nesse momento, mas não antevejo que consiga passar. A discussão dos projetos apenas ocorrerá depois da votação dessa iniciativa de cidadãos. Neste momento, o grupo de trabalho está a escutar um conjunto de entidades. Aquilo que vejo no atual enquadramento parlamentar é a elevado probabilidade de um dos projetos vingar. É de facto abrir uma porta que nunca mais se fecha.

Dados os prazos de que fala, provavelmente o processo legislativo não será encerrado antes do fim do ano?

Há algum grau de imprevisibilidade, na medida em que não sabemos se haverá mais um orçamento retificativo. O Orçamento de 2021 será certamente muito desafiante e tudo isto decorre entre setembro e dezembro. O tempo que sobra mais a votação da iniciativa de cidadãos sobre o referendo poderá empurrar esta discussão para 2021 ou para final de 2020.

Ao longo deste tempo de combate à pandemia e de Orçamento Suplementar, o líder do PSD teve um discurso de união nacional. Acha que é sustentável o maior partido da oposição continuar com este tipo de posição?

Os portugueses querem que o poder político encontre soluções para os problemas reais que estamos a viver. Estamos provavelmente a viver a maior crise de que há memória para a maior parte de nós. Uma crise que tem uma dimensão de incerteza brutal e perante consequências económicas e sociais que não conseguimos vislumbrar. Havia duas formas de lidar com isto: ou era um papel de política partidária de oposição de identificar todas as falhas ou assumir que nesta fase teríamos de estar unidos contra um inimigo comum e marcharmos juntos. Identificar aquilo que são falhas como fizemos ao longo desta entrevista que têm de ser corrigidas para

entendemos que é isso que o povo português espera do PSD.

O PSD tem todo o interesse em substituir-se ao PS no Governo, porque acreditamos que o nosso modelo de sociedade é mais correto, a nossa forma de governo será mais eficiente. Porém, neste momento, devemos estar unidos na nossa frente comum contra o vírus em nome do nosso país e é isso que estamos a fazer, sem deixar de identificar quando entendemos que o Governo ou as entidades públicas não estão a fazer o que é necessário e suficiente. Há também canais informais, nomeadamente entre o líder do meu partido e o primeiro-ministro. Há que colocar o país acima de todos os outros interesses.

Tem aumentado a sua notoriedade, já se começa a falar de autárquicas. O que é que prefere: Cascais ou Lisboa?

Neste momento, o que me angustia é o que estamos a viver e a crise social a que estou a assistir nesses dois concelhos e pelo país fora. E sinto que estamos apenas no início de um tsunami. Antes da onda, há a fase da formação da onda, em que água vai recuando e é nessa fase que nós estamos. Não é o momento para estarmos a pensar em cargos políticos.

A política em momentos de crise tem de ser focada nas soluções, qualquer tipo de ambição agora deve ser canalizada para garantirmos a resposta à Covid-19. Anseio pelo dia em que os dias parecem ter 24 horas em vez de parecerem três meses como parecem estes dias, anseio pelo dia em que a trica político-partidária possa voltar à agenda. Neste momento, temos de estar absolutamente focados na resposta de que o país precisa.

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