​Reportagem

Surto em Reguengos de Monsaraz. A fronteira da esperança

13 jul, 2020 - 15:05 • Rosário Silva

Se pela raia espanhola nem todos partilham da iniciativa dos alcaides de pedir o fecho da fronteira, do lado português a notícia chegou com surpresa. O autarca de Reguengos não alinha em discursos catastrofistas, apesar do impacto da Covid-19 no concelho, e numa olaria de S. Pedro do Corva há gente que resiste e não baixa os braços.

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A fronteira da esperança - Reportagem de Rosário Silva
A Olaria Tavres, em S. Pedro do Corval, concelho de Reguengos, já abriu as portas. Mário e Dora, trabalham a pensar em 2021. Ouça aqui a reportagem

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Entre umas tapas e uma canha para enganar o calor, Hermenegildo Mere aproveita a folga para dar uma léria com os amigos, concentrados pela manhã no quiosque da Plaza de España, em Villanueva del Fresno, do outro lado da fronteira, a 35 quilómetros de Reguengos de Monsaraz, no distrito de Évora, através da fronteira de S. Leonardo. Hermenegildo, tem o nome de um santo espanhol, mas, entre gargalhadas com amigos, diz que de santo nada tem.

A notícia do surto epidémico na cidade alentejana, que faz fronteira com esta localidade raiana da província de Badajoz, surpreende, mas não assusta os seus habitantes, nem mesmo quando sabem pela Renascença que foi o seu alcaide, juntamente com o de Valencia del Mombuey, que escreveu uma carta ao Governo da Estremadura a pedir o encerramento das fronteiras com Portugal, pelo menos até que seja “estabelecido um protocolo de saúde pública transfronteiriço para o controlo da covid-19”, defendendo apenas a passagem dos trabalhadores fronteiriços.

“A doença afeta-nos a todos, mas temos que ser livres, além de que não podemos trabalhar se a fronteira fechar”, diz Hermenegildo Mere, ou simplesmente Mere, como é conhecido.

Vive em Villanueva del Fresno e é um dos 200 habitantes que labora em Portugal, onde está dois a três dias por semana. Se a fronteira tornar a fechar, fica sem sustento. “Profissionalmente trabalho com gado, em exportação para Espanha, Israel, Turquia. Trabalho nos barcos em Portugal”, refere à Renascença este espanhol, natural de Cuenca, na província de Castilla la Mancha, tradicionalmente, uma região de pastoreio e criação de gados.

Olaria de S. Pedro do Corval. Trabalhar este ano para vender em 2021

Se pela raia espanhola nem todos partilham da iniciativa dos alcaides, em Portugal, a cerca de 30 quilómetros, em S. Pedro do Corval, a notícia chegou com alguma surpresa. “Parece que eles querem novamente fechar a fronteira, pois Villnueva del Fresno e a comunidade de Valencia del Mombuey, estão com receio por ter aparecido aqui o surto”, lamenta Mário Cardoso.

Mário tem 42 anos e é casado com Dora Tavares, de 44. Há cinco anos deixou a profissão de eletricista para se juntar à mulher na Olaria Tavares. Um negócio que o pai começou e ao qual a filha dá continuidade, desde os 14 anos, por necessidade, mas também por vocação.

A tradição da cerâmica em S. Pedro do Corval, no concelho de Reguengos de Monsaraz, remonta aos tempos pré-históricos. As mãos de um mestre oleiro, na sua roda, a partir do barro, fazem nascer verdadeiras obras de arte, quer decorativas, quer utilitárias. Com cerca de duas dezenas de olarias, S. Pedro do Corval mantém o estatuto de maior centro oleiro do país e um dos maiores da Península Ibérica.

Os efeitos da pandemia, que a todos trocou as voltas, também se fizeram sentir nesta pequena localidade alentejana, a braços, já depois do desconfinamento, com o surto logo ali ao lado, a meia dúzia de quilómetros, na sede de concelho. Segundo Dora Tavares, este período “tem sido muito complicado, pois vivemos muito do turismo e os turistas afastaram-se, além das lojas, para quem trabalhamos, e que também não abriram, mas temos de ir um dia de cada vez”.

Como o casal tem dois filhos menores, ainda foi necessário tirar tempo à sua atividade para acompanhar as crianças nas aulas online. Apesar das dificuldades, enfrentam a crise com tranquilidade e o foco em 2021. “Pensamos um dia de cada vez, mas também no futuro. O nosso objetivo é trabalharmos este ano e no próximo ano recuperar o que não vendemos este ano, vendendo mais. Ou seja, num ano, fazer dois”, explica Mário Cardoso.

O plano “dois em um” de Mário Cardoso não descarta a plena consciência de que vai ser um ano de muita labuta para tentar compensar os prejuízos, nesta altura, na Olaria Tavares, ainda não contabilizados. Apesar de tudo, em S. Pedro do Corval, as dificuldades enfrentam-se com trabalho, não se falando sequer na possibilidade de encerrar alguma destas casas. Dora Tavares acredita que tudo vai correr bem no país, desde que “todos usemos máscara e tenhamos os cuidados de higiene”.

Autarca de Reguengos: “O nosso discurso não pode ser de catastrofismo”

O comportamento das pessoas é, efetivamente, imprevisível e a resolução de um qualquer problema de saúde pública, como é o caso deste surto, invoca a responsabilidade de cada um de nós. “O grande segredo da condução de processos de natureza sanitária, de saúde publica, é percebermos que isto é uma responsabilidade de todos. Isto acontece porque alguém falhou, porque alguém trouxe o vírus ou foi buscar o vírus, acontece porque houve descuido de alguém. Isso nem sequer é incriminatório, é algo que, tirando aquelas festas, que infelizmente estão a surgir muito, pode acontecer a qualquer um de nós”, declara, à Renascença, o presidente da Câmara de Reguengos de Monsaraz.

José Calixto já fez quatro testes, todos negativos, uma vez que no decurso da sua vida normal, cruzou-se com vários ativos. Para bem e para o mal, o autarca é o rosto da crise sanitária no concelho que lidera há pouco mais de uma década. Incansável na forma como tem colaborado com as autoridades de saúde, enquanto presidente da CIMAC, a Comunidade Intermunicipal do Alentejo Central, viu cair-lhe no colo um surto de uma grandeza que o impressionou. Num concelho que vive sobretudo do turismo de qualidade, com experiências únicas, quase toda a atividade económica desabou, quando já estava a começar, de novo, a reerguer-se.

“Mas continuamos de portas abertas, só que agora temos que nos adaptar ao que está a acontecer à nossa volta”, aponta José Calixto. “Claro que surto veio travar um pouco essa abertura que existiu e tem que continuar a existir, claro que há um período de respeito pelas perdas humanas, mas o nosso discurso não pode ser de catastrofismo e de termos aqui uma perda irreparável ao nível económico. Temos é de puxar pelo tecido empresarial, pela restauração, pelos nossos produtos endógenos”, declara, convicto de que “é um processo ao qual vamos dar a volta”.

Se o verão, de alguma forma, já estava comprometido na região, com este surto, na estrutura residencial para idosos que, por sinal, também é presidida por José Calixto, o surto em Reguengos de Monsaraz acrescenta mais dificuldades.

O mês de agosto pode ser um balão de oxigénio, mas não há garantias de que assim seja. Em curso, a autarquia tem um programa de apoio à atividade económica e social, com dezenas de medidas já em curso, além de prestar apoio aos empresários, no acesso às medidas governamentais. Tarefa hercúlea para um dos piores momentos no percurso do experiente gestor e autarca.

“A minha vida está dividida em duas fases. A primeira enquanto economista e enquanto responsável por algumas empresas de um grupo económico, e na fase inicial dessa vida, era ainda uma fase quente e ainda assisti a algumas ameaças e, inclusive, a atentados à própria vida humana de gestores. Pensava eu que me ficaria por aí em termos de experiências que exigissem bastante, nomeadamente em termos psicológicos, uma força interior muito grande. De fato, esta fase ultrapassou tudo”, confessa o presidente do município alentejano.

José Calixto acredita que esta fase será ultrapassada, num concelho com inúmeros atrativos e que continua de portas abertas. “Vamos, com certeza, passar este surto, vamos continuar a ter o património que ajudou Portugal a ser o melhor destino turístico do mundo, Monsaraz é uma pérola turística de Portugal e continuará a ser, temos uma rede de restauração do melhor que há, podemos escolher entre 40 restaurantes que esperamos, consigam ultrapassar esta crise e temos mais de duas mil camas turísticas”, descreve o autarca, para quem a esperança é a palavra do momento.

“Uma palavra de clara esperança de que iremos ultrapassar, muito mais fortes, esta fase difícil, com os reguenguenses que, genericamente, portaram-se a um nível muito elevado”, revela o responsável, seguro “da capacidade que temos para esquecer o mau desta fase, recordarmos as perdas que tivemos, mas seguir em frente”.

“Reguengos é uma terra de gente feliz”, diz o padre Manuel José Marques

As obras em curso na Praça da Liberdade são uma espécie de prenúncio. Foram adiadas por causa da pandemia, mas a requalificação da zona nobre da cidade, prossegue agora a bom ritmo, como que a querer apontar o caminho do futuro. De um lado da praça, os Paços do concelho, do outro a imponente igreja matriz. Um frente a frente para recordar que o humano e o divino estão bem presentes nesta árdua fase que levanta um sem número de questões a que a ciência ainda não consegue dar resposta.

Aos 60 anos, o padre Manuel José Marques, com 36 de sacerdócio, já leva duas décadas no concelho que aprendeu a amar. Ora se o lado racional e as decisões práticas, ficam para as entidades responsáveis, a Igreja procura cuidar do lado espiritual dos que sentem essa necessidade. E são muitos, os que, de repetente, recorrem ao Divino, percebendo que há muito mais do que a vida “perfeita” que querem mostrar.

“A pandemia trouxe-nos uma evidência: a ciência não responde a tudo, não é tão imediata como queríamos, nem tão exata como pensamos”, diz o sacerdote. “Nós somos humanos e quando nos damos conta disso, precisamos do divino. Não é paliativo. É mesmo, eu preciso de alguém que me dê a mão e me levante de verdade, do meu chão”, acrescenta Manuel José Marques.

O pároco da Unidade Pastoral de Reguengos de Monsaraz confidencia que muitas pessoas se deram conta, apenas agora, que “precisamos uns dos outros e de alguém nos levante por dentro. E só Deus pode fazer isso, não é?”

O sacerdote passa agora o dia em contatos telefónicos, procurando chegar ao maior número de pessoas que estão confinadas em casa. Nos dois lares da Igreja, a gestão também é feita por telefone, tendo reduzido a sua presença ao mínimo possível para a sua própria segurança e dos utentes. Apesar de todos os cuidados, Manuel José Marques já foi sujeito a dois testes, ambos negativos. Confessa que, apesar de sair menos de casa, têm menos tempo para fazer o que gosta, como ler um livro ou até pintar.

Aos habitantes do concelho alentejano, deixa palavras de encorajamento: “Vale a pena termos um sentimento positivo, de alegria e de esperança, pois se as perdermos ficamos caídos no chão. Não! Nós vamo-nos levantar. Temos capacidade e coragem para tal. Por favor, vamos sair de casa, vamos beber um café, vamos até à porta da vizinha saber como ela está, vamos telefonar a quem precisa, isso é importante.”

Ao país, o padre quer dizer que “estamos bem”, apesar das notícias da televisão não darem essa perspetiva. “Há pessoas que não querem cá vir fornecer as lojas ou que levemos os nossos produtos para outros concelhos”, revela. A esses, Manuel José Marques, diz, “não tenham medo, nós estamos bem, apesar de termos algumas pessoas doentes, mas essas estão confinadas e vigiadas”, convidando os portugueses a “vir passar férias a Reguengos, pois não há nenhum problema de contágio neste momento, portanto, venham tranquilos”.

Uma mensagem que apela à esperança e à responsabilidade de todos, para que “Reguengos continue a ser uma terra de sol, de gente boa e acolhedora, e com vontade de vencer. Reguengos é uma terra de gente feliz”, conclui o sacerdote.

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