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​Pastor em tempo de pandemia às portas de Lisboa. “Não se vende um animal. Nem dados os querem”

06 jul, 2020 - 13:05 • Liliana Monteiro

Na União de Freguesias da Ramada e Caneças, onde foi decretado estado de calamidade e o dever cívico de recolhimento, ouve-se o tilintar dos chocalhos das ovelhas. São mais de duas centenas aquelas que são conduzidas pelo Pastor Virgílio numa freguesia às portas de Lisboa, integrada num concelho que regista mais de 1.100 casos positivos de Covid-19.

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“Eu devia ter sido feito no meio de ovelhas, nascido no meio de ovelhas e vou morrer no meio de ovelhas. A minha sina é esta e só pode ser. De outra maneira não me conheço”. É com esta descrição que se apresenta Virgílio Ricardo.

Tem 69 anos, é pastor na União de Freguesias da Ramada e Caneças, no concelho de Odivelas, às portas de Lisboa, onde foi decretado o estado de calamidade e o dever cívico de recolhimento.

Odivelas regista 1.183 casos positivos de Covid-19, mas Virgílio explica que, pelo seu rebanho, não pode viver confinado. Os animais não aguentam ficar fechados e precisam de comer, argumenta.

O chapéu cinzento tapa os cabelos brancos, na mão de pele engelhada, queimada pelo sol, traz um pau quase da sua altura. A ajudar, tem consigo dois cães grandes, da Serra da Estrela, e os olhos, esses, estão postos nelas, nas 201 ovelhas.

Nos bolsos traz milho e uma espécia de bombom para acarinhar o Manjerico, o carneiro do rebanho, com um agigantado par de chifres em espiral, que facilmente se distingue entre os demais.

Mas há também Mafalda e Amélia, que rapidamente respondem a um assobio e à chamada pelo nome, sabendo que na mão do seu pastor há petisco.

"Não se vende um único animal"

Anda pelos campos, no seu trabalho ao ar livre. Está pessimista. Este pastor, que domina a arte de guardar e alimentar ovelhas, confessa que já pouco acredita no futuro.

“Vamos olhando para trás e para o futuro, e o futuro disto vai ser muito pouco, infelizmente. Noutros tempos, nestes animais tudo era ‘aproveitadinho’. De tal ordem que os meus pais já sabiam como ia ser vendida a pele do borreguinho, a lã , o valor do bicho, o leite para queijo. Hoje, tudo isso acabou”, lamenta.

A Covid-19 veio estragar o pouco negócio que se fazia e, conta o pastor Virgílio, nem dados aceitam os animais.

“Esta época do vírus acabou com o resto do negócio. Ninguém procura os bichos. Eu tinha-os para dar e ninguém os quis. As pastagens são pagas com borregos. No Natal, não os tinha porque a natureza se atrasou. Na Páscoa, queria dá-los e diziam: ‘Não quero porque não vou à terra [as pessoas não podiam sair dos concelhos]’. Depois, diziam ‘não tenho cá os meus filhos’. Não se vendeu, nem se vende, um único animal”, revela, com desalento, à reportagem da Renascença.

Numa altura em que há uma grande procura de produtos naturais e se faz a apologia do biológico, o pastor Virgílio lembra que não há carne melhor do que esta. Os animais percorrem campos com a mais diversa vegetação e bebem água de nascentes.

“Não tem nada a ver. Isto é que se chama carne biológica. Olhe para aquele carro [aponta para o seu automóvel]. Está lá escrito ‘criador de gado’ e não ‘criador de gado à pressão’. Os pequeninos nascem, mamam só leite das mães e depois começam a comer das pastagens. Não há mais nada”, garante.

O pastor dos sete ofícios reclama resposta do Ministério da Agricultura

Foi taxista durante cinco anos, trabalhou na restauração, teve um minimercado e café. Até já dirigiu uma empresa de transporte de fruta, que fazia distribuição aos mercados, e trabalhou numa pastelaria. As atividades laborais foram-se sucedendo e todas acabaram por ter um fim, menos o rebanho.

Virgílio admite que já pensou "acabar com a exploração" e responsabiliza o Ministério da Agricultura por operar de forma errática e desproporcionada.

“Agora tenho 201 cabeças de gado e não sei o que fazer a isto. O Ministério da Agricultura é que quer acabar com isto tudo. Este ano recebi uma carta a dizer que só posso ter dois cavalos, que nunca tive, dois vitelos, que nunca tive, cinco ovelhas ou cinco cabras. Como é que isto acontece, se eu sempre tive área para criar até mil ovelhas, se quisesse?", questiona.

O pastor do concelho de Odivelas não entende por que o ministério faz exigências diferenciadas para cada zona do território. "Que raio de país é este que não tem uma lei para tudo?", interroga-se.

"Tenho uma exploração que já chegou a ter 400 ovelhas. Nunca precisei de ter de levar área dos terrenos de pastoreio, com documentos dos donos, que tenho de incomodar, e de levar declaração a dizer que me permitem pastorear, para se chegar à parcela de área de pastoreio", conta, como reforço da estranheza pela carta recebida.

Contactado pela Renascença, o Ministério da Agricultura admite não ter cadastro de pastores, mas apenas dos dados do sistema nacional de informação e registo animal.

Lã também não dá rendimento

Virgílio tosquiou o rebanho há pouco tempo. Dali retirou vários quilos de lã. O produto, no entanto, também não é fonte de rendimento e o destino, lamenta, é o lixo.

“A lã hoje não vale nada. Recordo-me que o preço mais alto a que foi paga foi a 22 escudos/quilo. Hoje não a querem, nem de borla. Tenho lá a lã cortada há 15 dias e não a querem, ninguém procura. Tudo por causa disto [aponta para a camisola que veste], do sintético. As fábricas da Covilhã estão fechadas. E eu pergunto o que hei de fazer à lã?”.

O Estado envia subsidío, mas o apoio dá para muito pouco. É uma ajuda que não cobre nem metade das despesas com vacinas, análises e veterinário, detalha o pastor à reportagem da Renascença.

Sem rendimento, sobressai a dedicação de Virgílio aos animais. Uma paixão exigente e dura: “Nesta altura, acordo às 5 da manhã, ando até às 10h00, e depois vou fazer coisas minhas. Às 18h00 voltam ao terreno e às 20h00 recolhem, bebem água e eu tomo banho e cama. E há muitas vezes, em que já estou deitado, e tenho de me levantar porque alguma coisa não corre bem”.

As piores surpresas acontecem quando subtraem ovelhas ao rebanho. "Só de uma vez foram 19 borregos e 13 ovelhas", recorda, antes de fazer o restante inventário do assalto.

"Roubaram-me o carro, depois um trator pequeno. Quando lá cheguei nem portas de alumínio e chocalhos eu lá tinha. Roubaram tudo! Eu tinha chocalhada, que era o meu símbolo, o símbolo deste rebanho. E confesso que a partir desse dia comecei a desmoralizar”, reconhece.

Vida no campo combate a Covid-19

Virgílio, no entanto, persiste. A ligação ao seu rebanho, apesar de todas as dificuldades, mantém-se e é com voz embargada que se despede.

"Não é o dinheiro que conta muito. Os meus filhos dizem para acabar com esta 'porcaria', e eu pergunto se vou para a taberna ou para o jardim? Não! No dia em que isto me faltar eu também cá não fico. Sinto-me bem porque faço o que gosto, e desde que o faça estou bem. Já tenho tido dias de rir sem apetite, mas não podemos pensar só no que é mau e temos de ver também o bom. Tenho muito afeto por elas e isso obriga-me a ter mais apetite para a vida", afirma.

Virgílio continua a ser pastor em plena pandemia. Não abandona as suas ovelhas e diz que o campo lhe dá vida e o afasta da Covid-19 que tanto atormenta a União de Freguesias da Ramada e Caneças.

Comentários
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  • 07 jul, 2020 16:42
    Se o primeiro ministro diz que o codavid veio pra ficar " qual o interesse que tenho em tratar do rosto" se a mascara tapa a rugas!

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