Emissão Renascença | Ouvir Online
Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
A+ / A-

Nem ateu nem fariseu

Pai

26 jun, 2020 • Opinião de Henrique Raposo


Uma coisa é a ética em abstrato; outra coisa, bem diferente, é a ética na prática. Ser decente não é impossível, é só extremamente doloroso.

Pai, sinto-me como um daqueles galeões que aporta semi-destruído após a tempestade. Física e mentalmente, chego de rastos ao final desta quarentena acompanhada de escola à distância em que fui pai, professor, empregada e, por vezes, escritor e cronista. Foram meses de teste e absoluta anulação de mim mesmo. Sei que é um dos caminhos da salvação: sem a anulação do nosso “eu”, como é que podemos servir os outros, a começar na nossa mulher e nos nossos filhos? Mas uma coisa é a ética em abstrato; outra coisa, bem diferente, é a ética na prática. Ser decente não é impossível, é só extremamente doloroso para o ego. E o meu, como sabes, é enorme.

O caminho que colocaste à minha frente é difícil, quase impossível, porque o meu ego é tão grande como meu sentido de missão pela família. Sinto-me esmagado entre estas duas forças, duas placas tecnónicas antagónicas. Sinto-me preso entre a parábola dos talentos, que puxa pelo ego, e o valor supremo da família, que anula o ego. Em muitos dias desta quarentena, este choque geológico destruiu-me por completo. Nalguns dias, senti os dois fantasmas ao mesmo tempo. Por um lado, o medo de não conseguir acabar este livro; o medo de chegar perto dos 50 com sensação de que não vou ter tempo para escrever os livros que quero escrever. Por outro lado, o pânico de não ser um bom pai, de não estar à altura do inerente sacrifício que é criar uma família, o medo de perder a alegria imensa que sinto com o meu papel de stay-at-home-dad.

Como é que saía desse choque? Através da esperança. A esperança não deve ser confundida com o pensamento positivo. A esperança atravessa o medo, não o evita. A esperança não é um afeto ou sentimento, é um treino mental que disciplina a mente para ver o lado positivo de qualquer cenário - um desafio pantagruélico para este que te escreve. Eu seria o primeiro a dar um balázio pessimista no optimismo de Caleb.

Não escrevo uma linha do meu livro há quatro meses? Pois não. Mas a minha filha mais velha leu mais de cinco livros durante estes meses. Já vai no segundo volume das sagas Harry Potter e Clube das Chaves, por exemplo. Vai ser uma leitora compulsiva. No futuro, olharemos para a quarentena como o momento em que ela criou o hábito de ler a qualquer hora do dia. Além disso, ultrapassou algumas dificuldades escolares com a ajuda da mãe-tutora, e reforçou a criatividade artística e a coragem física com a ajuda do pai. Percebe em segundos que tem pela frente um Van Gogh ou um Frida Kahlo. Tem o prazer da escrita e das arts and crafts, papel, tesoura, linha, tecido, lã, desenho. Faz uma ginástica que já é parkour. Na piscina, nada com elegância. Tudo isto foi sedimentado nestes meses de inferno, que ela não sentiu, porque construímos à sua volta uma bateria de mísseis anti covid.

A sensação que temos é que ela cresceu física, mental e escolarmente dois anos em três ou quatro meses. Para a nossa mais velha, esta quarentena terá sido mesmo uma bênção. Sim, ancorada no sacrifício do pai e da mãe, mas não deixa de ser uma bênção. Só que há aqui uma questão que me incomoda: foi uma bênção, porque somos uma família privilegiada. Para milhares de outras meninas deste país, esta quarentena foi o maior dos infernos e a confirmação da morte social e escolar. Mas, se não te importas, esta sensação de culpa social que sinto neste momento fica para outra confissão. Por hoje já chega, pai.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

  • Vera Costa
    26 jun, 2020 18:54
    Ao ler este texto a minha ideia fugiu de repente para Velàsquez! "As meninas de Velàsquez" é este 'quadro' que se adapta mais à sua pessoa! Não estou a vê-lo "num campo de trigo com corvos" como Van Gogh! e depois farto de tudo, despediu-se da vida! Ó Henrique Raposo, vá com calma!!! Eu gosto muito das pinturas de Van Gogh, mas da vida que ele teve, que acabou por morreu "à clara luz do dia"num hospital a olhar para a sua última obra!! Olhe, escreva, escreva tudo que se passa à sua volta! Um jornalista nunca deve parar de escrever! tem muito tempo pela frente e tem muito que escrever! comece pela paisagem que alcança das suas janelas e passe por cima das burrices dos autarcas das freguesias da 'paroleira'! com um pouco de ironia, consegue ir até ao prémio Nobel! Vá por mim, seventy two, years old. Cumprimentos.