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Graça Franco
Opinião de Graça Franco
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Tolerância esgotada

16 jun, 2020 • Opinião de Graça Franco


Estão ultrapassados todos os limites da nossa histórica tolerância perante os maus negócios que o Estado, em nosso nome e sempre por bons motivos e magnificas intenções, vem sistematicamente fazendo com promessas enfáticas de que o dinheiro dos contribuintes, além de protegido, nunca voltará a ser chamado para tapar o mais mínimo buraco.

Marcelo Rebelo de Sousa mostrou-se estupefacto. O ministro das Finanças considerou “extemporâneas” as declarações do gestor do Novo Banco que se resumem a dar conta de que sim, é possível que o Novo Banco receba ainda mais transferências automáticas do Estado, devidas não apenas ao chamado “ mecanismo de capital contingente”, um nome pomposo para esconder a descoberta sistemática de novo crédito “mal parado” (destas já nós sabíamos, mas já só sobram 900 milhões!) e também à “existência das circunstâncias de extrema adversidade”. E nesta, imagine-se, insere-se o Covid. Uma daquelas circunstâncias que a Comissão Europeia achava extremamente improváveis, mas que, afinal, aconteceram. Eu não fico apenas estupefacta, perante esta nova revelação “extemporânea”, fico escandalizada.

É demais. Digamos que estão ultrapassados todos os limites da nossa histórica tolerância perante os maus negócios que o Estado, em nosso nome e sempre por bons motivos e magnificas intenções, vem sistematicamente fazendo com promessas enfáticas de que o dinheiro dos contribuintes, além de protegido, nunca voltará a ser chamado para tapar o mais mínimo buraco que venha a ocorrer dos contratos firmados.

O pior é que sentados à mesa estão sempre meia dúzia de sociedades de advogados que não partilham a nossa bondade e que, por definição, sendo “desconfiadas”, vão colocando umas cláusulas “prudenciais” na esperança de que nunca venham a ser acionadas. O azar é que, frequentemente, o cenário mais improvável (como uma crise sanitária global) acaba por concretizar-se. Vamos por partes:

1. Em 2017, o Estado tinha o Novo Banco, que era um “banco bom”, filho dos restos do ”banco mau”, resultante da resolução do ex-BES a que estava atribuído um estatuto de “transição” prontinho a ver o dito estatuto acabar. Ou o Estado vendia ou o banco falia.

2. A falência, mesmo quando se chama “resolução”, aplicada a um banco é sempre uma desgraça. Por isso, restava vender.

3. Ninguém queria comprar. A té que apareceu um daqueles fundos abutres, que compra uns negócios que não cheiram muito bem, limpam a casa, arejam-na o melhor que conseguem, coloca-os com melhor especto e despacha-os, a grande velocidade e enorme mais-valia para outras mãos.

4. O cliente seguinte, se tiver sorte, consegue manter o negócio e a coisa fica salva e a funcionar.

5. Se o novo cliente tiver azar, a coisa corre mal e volta-se, mais ou menos, ao princípio.

6. O Estado via a licença a acabar. Não queria “resolver” mais coisa nenhuma e estava pronto a vender por tuta e meia. O comprador garantia que estava disposto a enterrar no banco mil milhões, mas facilmente percebeu que havia ali outros 4 mil milhões de créditos que dificilmente iria receber. Os advogados sugeriram, então, que o Estado garantisse que esses quase 4 mil milhões seriam garantidos. Num período de oito anos, se fossem devidamente encontrados e provada a sua má cobrança, o Estado entraria com o dinheiro a prestações ( o teto andava pelos 850 milhões ano!). O dinheiro viria do Fundo de Resolução que vive de contribuições de toda a Banca e de empréstimos estatais feitos a longuíssimo prazo.

7. Com base nisso, Centeno veio garantir que não seriam os contribuintes, mas o fundo de resolução, a pagar o que fosse preciso e até esperava que não fosse preciso mais nada. O empréstimo ao fundo haveria de ser pago um ano destes pelo que os contribuintes podiam dormir descansados. Ele também porque este tipo de empréstimos engordam a dívida mas não contam para o défice.

8. A partir daí, o filme habitual começou a rodar. Nos últimos três anos, o Estado já passou para o Novo Banco mais de 3 mil milhões. Faltam só 900 milhões da verba inicialmente anunciada.

9. Este ano já não leva mais. Para o ano, logo se vê. E o que se vê é que António Ramalho não pretende deixar nem um cêntimo do empréstimo por utilizar.

10. Em 2021, já fomos avisados não serão apenas necessários os restantes 900 milhões que restam “ do mecanismo de capital contingente” irá buscar também o mais que for necessário para colmatar os danos a que o dono ( a Lone Star) não tiver condições de dar resposta devido às ditas “circunstancias de extrema adversidade” em que assentam como uma luva os efeitos da COVID.

11. Resumindo: vamos transferir já para o próximo ano, outra vez , uma “pipa de massa” para o velho Novo Banco.

Eu sei que deixar falir um banco é uma impossibilidade. O dominó que se podia seguir seria algo de tão incerto que ninguém vai arriscar. Sobretudo no meio de uma crise sanitária global, da maior crise económica do século, de uma inaudita crise económica e de uma crise financeira que ninguém consegue imaginar. O Novo Banco lá terá de receber o que necessário for. E não vai ser apenas o novo Banco, outros haverá a pedir igual tratamento, porque também eles terão sofrido perdas inimagináveis até há poucos meses.

Por mim não direi mais nada. Mas também por isto me parece demasiado perigoso que o ministro que liderou este péssimo negócio do lado das Finanças o vá gerir do lado do regulador, enquanto Governador do Banco de Portugal, e tendo como interlocutor um ministro das Finanças que foi seu secretário de Estado, além de um ex-colega, concorrente com ele ao cargo de governador ( Máximo dos Santos) enquanto responsável pelo Fundo de Resolução.

Não vos parece que só neste pequeníssimo caso já vai dar uma grande trabalhada? Nada transparente? Acho mesmo que só não é capaz de ver, quem não quer. Às vezes os nossos sonhos precisam de esperar um bocadinho. Talvez Mário Centeno não precise de esperar 5 anos, e bastem dois ou três mas chamar “perseguição” a quem tenta travar a porta giratória entre os vários poderes de tutela e regulação talvez seja excessivo.

No fundo trata-se apenas de dar tempo para nos podermos esquecer que foi ele que vendeu o Novo Banco à Lone Star. Num texto cheio de buracos que nos meteram num poço sem fundo. Para cúmulo guardado a sete chaves até não poder ser mais escondido. O povo português até tem má memória, mas não é assim tão má.

Comentários
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  • 17 jun, 2020 10:01
    Nao sei como os portugueses " continuam a escolher vigaristas para presidentes de bancos!