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Opinião de Graça Franco
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Suceder a Centeno: um acto de coragem

15 jun, 2020 • Opinião de Graça Franco


Aceitar ser ministro das Finanças, depois de Centeno, é um acto de coragem. Em tempos de mudança de ciclo e à beira do que se anuncia como a maior catástrofe económica do século, não apenas em Portugal, mas no mundo, é ter, no mínimo, muita coragem. Talvez João Leão tenha mais informação do que qualquer outro

Perdemos a marca Centeno. Em economia, algumas marcas tem um valor intrínseco não negligenciável. A marca Centeno (o ministro das Finanças mais popular do que o primeiro-ministro) não tinha apenas um valor interno inestimável, em termos de confiança, a quem António Costa ficou a dever seguramente a reeleição, era também importante enquanto garante de consistência e rigor externo que nos fará certamente falta nos próximos tempos. Saiu no pior "timing" possível e na pior crise do século. Foi pena. Ficou João Leão, uma espécie de sua sombra a quem apenas podemos desejar as maiores felicidades, porque a sua sorte será a nossa sorte e o seu fracasso o nosso fracasso. Mas não vai ter tarefa fácil.

Aceitar ser ministro das Finanças, depois de Centeno, é um acto de coragem. Em tempos de mudança de ciclo e à beira do que se anuncia como a maior catástrofe económica do século, não apenas em Portugal, mas no mundo, é ter, no mínimo, muita coragem. Talvez João Leão tenha mais informação do que qualquer outro, quer sobre os pontos fortes (se restar algum…) quer sobre as fragilidades da nossa economia, mas, sobretudo, sobre as nossas finanças porque já leva cinco anos de Governo a gerir orçamentos que acabaram na mais forte austeridade de sempre e num excedente orçamental inesperado. É caso para lhe desejar boa sorte.

Não houve tempo de dissecar, como merece, o orçamento suplementar apresentado no próprio dia da demissão do ex-ministro. Apesar disso, podemos já levantar o véu sobre dois ou três pontos que se vão colocar, rapidamente, como desafios certos ao novo ministro:

1. Gerir a nova equipa

Mourinho Félix (Finanças) não era propriamente um dos secretários de Estado fáceis de substituir. O número dois de Centeno foi várias vezes apontado como sucessor natural e tinha nas Finanças uma credibilidade assegurada. João Nuno Mendes com um passado guterrista, enquanto secretário de Estado do Planeamento de 1996 a 1999, fez depois uma incursão privada no grupo Amorim para entrar posteriormente na Galp e por lá ficar a tratar da inovação de 2007 a 2012, apanhando boa parte do consulado Sócrates. A seguir teve passagem direta para as Águas de Portugal. O insucesso relativo nas negociações das ajudas de estado à TAP, como chefe de missão já nomeado há poucas semanas, não é um grande certificado de eficácia e a passagem pela energia esperemos que ajude, agora, na utilização de fundos de Bruxelas porque, em termos de combate às rendas da energia, não são grande passaporte. Fica o benefício da dúvida.

Álvaro Novo de perfil mais discreto será substituído por Miguel Cruz, também ele com passagem na gestão de fundos de energia e indústria e participações estatais (ex-presidente da Parpública) . No processo da TAP era nada mais nada menos que o defensor dos interesses do Estado e fica conotado mais como um “dono” distraído do que com um acionista atento (foi a ele que foi entregue o primeiro pedido de empréstimo da transportadora, já este ano, quando ainda ia em 350 milhões, muito longe dos mais de mil de que agora precisa). Mesmo assim, o conhecimento da situação da transportadora talvez ajude a que não se venha a perder ainda mais com a “renacionalização “da companhia aérea. O risco de um novo, Novo Banco é grande. Em 2021 são dois casos bicudos que se vão somar um ao outro. Para o orçamento do próximo ano preparemo-nos porque, senão for antes, poderemos vir a assistir ao voo de mais dois mil milhões dos contribuintes.

O substituto . Para lhe suceder, no cargo de secretário de estado do Orçamento, João Leão vai contar com a ajuda de Cláudia Joaquim. No governo da Geringonça era secretária de estado da Segurança Social do ministro Vieira da Silva. Esperemos que não tenha o sucesso do antecessor porque a política que agora se reclama é exatamente oposta. João Leão fica conotado com a política de cativações que nos levou a um excedente orçamental para Bruxelas ver, mas responsável pela ruína anunciada não apenas do Serviço Nacional de Saúde, mas de muito mais. Nas escolas públicas, nas polícias, na defesa, nos tribunais os cortes disfarçados fizeram mossa. E nenhum serviço público escapou, sobretudo os que só tiveram as verbas desbloqueadas a tempo de já não as conseguir executar.

À míngua de dinheiro tudo isto piora e enquanto andamos distraídos com o Covid a coisa nota-se menos, mas não tarda vai ficar à vista de todos. A chuva de fundos, com que sonha Pedro Nuno Santos, não vai ser chuva e chegarão lá para o próximo ano. Até lá vamos ter de arriscar e arriscar em grande. De Cláudia Joaquim espera-se o oposto de João Leão, que saiba sobretudo “gastar”. Assim ele deixe.

2. Manter a credibilidade

Centeno tornou-se conhecido como uma espécie de Salazar da modernidade. Tudo contado ao tostão. Dizem que afinal foi João Leão o inventor das cativações (o garante do sucesso: promete cinco milhões e desbloqueia um) que como quinto filho de uma boa família usou desde sempre essa estratégia de sobrevivência para fugir à exploração dos mais velhos. Lá por casa o meu quinto filho também é conhecido por ser “um tio patinhas” pelas mesmas razões. Acredito, por isso, que seja um “pão duro” o que é uma vantagem quando há risco de desperdício, mas péssimo em tempos de recessão.

Vai ser preciso abrir os cordões à bolsa. E quando não se tem para dar é preciso muita criatividade. Os fundos a chegarem, virão tarde demais e não é garantido que as prioridades fixadas pela Europa sejam as que mais se ajustam às nossas necessidades.

O cenário macro do orçamento suplementar é super-optimista: PIB a cair menos de 7, desemprego inferior a dez e défice pouco acima de seis. A OCDE que apresentou as últimas previsões admite uma queda do produto entre 9,4 e 11,3, com o desemprego a chegar, no pior cenário, a 13 por cento e o défice a atingir os 7,9 por cento. Todas as previsões são tão más que é difícil qualificar. Mesmo assim, entre o cenário governamental e o pior da OCDE vão quase 4 pontos de diferença quando não mais. Uma coisa é cair num ano mais dois pontos do que na soma dos três da troika, outra é cair mais do dobro. Já é péssimo ter o desemprego a tocar os dez por cento, mas em 13 pode estar em causa a paz social. O caso do défice passar de um excedente a um défice de 8 por cento ronda a calamidade.

Se a tudo isto somarmos uma dívida que vai passar de 117 por cento do produto para 135 ou upa upa!!! Está descrito o cenário em que João Leão vai trabalhar.

3. O que está feito

Nada. Ou quase. Tudo junto, Portugal investiu 2,5 pontos do produto a combater os efeitos do COVID, a Alemanha muito mais rica já gastou 13 por cento. Por cá boa parte são moratórias. Coisas ao estilo vendas a fiado. O Estado nem sequer cumpriu a sua parte, prometeu pagar a um mês as próprias dívidas e atrasou-as ainda mais, apertando o garrote aos próprios fornecedores.

Nos impostos fez o mesmo. Reembolsos do IRS continuam a fazer de reservas de caixa e vai passar o Verão sem que os portugueses possam gastá-los nas férias e se o Estado abdicou da cobrança do PEC é porque era demasiado escandaloso cobrar impostos por “conta” de lucros que já se sabe que não vão haver.

4. O que se vai fazer

No investimento o reforço de verba previsto é de 37 milhões. Mais valia não mexer que se notava menos. 37 milhões servirá para pintar umas tantas escolas e não sei se dá para as pintar por fora e por dentro. Para lustres do Siza não dá de certeza, o que garante que não voltamos aos desmandos do tempo de Sócrates. Nem para a ala pediátrica do S. João deve chegar. Aliás quando é que a dita chegará, sempre cabimentada e nunca feita?

E se o motor não é o investimento, não é o consumo privado certamente. Para esse está prevista uma queda de 4 pontos (pouco, se pensarmos que os impostos sobre o consumo vão ter cortes na receita da ordem dos dez por cento – claro que nos faltarão turistas para animar as hostes!).

O que nos resta? Exportações? Fora de causa. Os nossos clientes estão na maioria dos casos ainda piores do que nós. Além disso, o conteúdo importado das nossas exportações rapidamente nos levaria ao défice e à dívida externa. Aquela que em rigor acabou por trazer a troika.

O turismo, se regressar para animar as exportações de serviços vai levar tempo a produzir efeitos.

Neste caso o facto das exportações já passarem dos 40 por cento do produto, com o turismo a rondar entre 10 e 14 por cento , percentagens vistas como uma das maiores e melhores conquistas nos últimos anos vai virar-se contra nós.

O que nos pode animar? Se conseguirmos vencer a crise sanitária com rapidez e de forma consolidada está feita a primeira parte do trabalho, mas também aqui os 500 milhões de reforço previsto para o SNS é uma ninharia. Miguel Guimarães diz que o mínimo seria uma “injeção de 1200 milhões ao estilo da TAP”, mas pior do que a falta de dinheiro no Serviço Nacional de Saúde é acreditar que o improviso, feito para evitar o colapso no primeiro pico do Covid, é garantia de que vai sobreviver a uma nova leva da doença com a mesma eficácia, ou recuperar dos danos colaterais, em todo o sistema, sem nenhuma reforma que o suporte.

5. E, por último, o pior dos desafios: o combate à pobreza

Aqui Cláudia Joaquim pode ajudar e ser uma mais valia. Primeiro, na Segurança Social e mais recentemente na Santa Casa, a nova secretária de Estado conhece bem o problema: sem transferências do Estado metade da população estraria em risco de pobreza. Agora entre desempregados, situações de lay off e sub-emprego estão quase um milhão de portugueses em idade activa. Há uma geração de sub-30 cuja precariedade atira para um estádio de desilusão permanente.

Há medidas de emergência que vão ser tomadas e terão de ser implementadas junto das famílias e empresas o mais rapidamente possível.

Agora é o antirracismo que nos distrai na rua. Com fome, a instabilidade , e a violência, pode ser bem pior.

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